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Ricardo Castelo/Observador

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O lar de idosos que é um fenómeno. Dentro e fora da Internet

No Centro da Gafanha do Carmo, os idosos parodiam de Miley Cyrus a Marcelo Rebelo de Sousa, e dão que falar. Os vídeos que fazem tornaram-se virais na Internet e um exemplo em todo o país."

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“Ela é a melhor gerontóloga do país”. Ela, Sofia Nunes, reage sem jeito ao elogio do colega, Ângelo Valente. Tem 31 anos, seis dos quais passados com pessoas que têm o dobro e o triplo da sua idade. Desde que acabou o curso de Gerontologia da Universidade de Aveiro que ela trabalha no Centro Comunitário da Gafanha do Carmo, um lar e centro de dia em Ílhavo que é um sucesso nas redes sociais. A freguesia tem 1.526 habitantes; a página de Facebook da instituição tem 32 mil ‘gostos’. Familiares e amigos são a fatia mais pequena. A maior parte dos fãs nunca estiveram no centro e, provavelmente, nunca sequer pensaram em lares ou centros de dia, porque ainda estão no primeiro terço da vida.

Sofia recorda-se da reação dos amigos quando contava que tinha começado a trabalhar num centro comunitário. “[baixa a voz, em tom de pena] Oh, coitada. Boa sorte, é preciso ter força…” Havia um estigma e os dois não percebiam, porque o que viam era alegria. Quando abriram a página de Facebook e começaram a mostrar publicamente os utentes, as suas rotinas, e algumas brincadeiras, as reações passaram a ser muito diferentes quando os dois dizem que trabalham ali.

Paródias a videoclipes, trailers de filmes, tempos de antena para as eleições autárquicas. Desde 2012, quando a página foi criada, que os vídeos mostram uma realidade diferente daquela que a sociedade tem dos lares e das pessoas da terceira idade, algumas com problemas de saúde. Sofia e Ângelo criaram um perfil de Facebook para o Centro Comunitário da Gafanha do Carmo com o objetivo de mostrar aos familiares emigrados dos utentes como estavam os seus irmãos, pais e avós. As fotos e vídeos serviam para que, a milhares de quilómetros de distância, pudessem partilhar um pouco do ambiente da casa tal como ele é. Descontraído, animado, com um cão chamado Vadio a quem todos queriam dar festas.

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“Acabámos por chegar a outras pessoas, que começaram a partilhar as nossas publicações porque se identificavam com coisas que se calhar elas faziam com os amigos”, recorda a gerontóloga. “Nós aqui também fazemos, simplesmente as pessoas têm mais idade. Para nós, o João e a Ermelinda são pessoas, nós vemos a pessoa despida do número de anos. Para nós o que interessa é a personalidade, a vontade que têm em participar, o facto de nos terem um amor imenso.”

"O problema é que a sociedade afastou a sexualidade, a sensualidade e a nudez da terceira idade. Esquecem-se de que as pessoas são pessoas, não importa a idade, e têm direito a apaixonarem-se e a viver no mesmo quarto."

Nem toda a gente pensa assim. “Já fomos ameaçados de morte”, recorda Ângelo. O animador sociocultural de 34 anos refere-se a janeiro de 2014, quando publicaram na Internet a sua versão do vídeoclip de “Wrecking Ball”, de Miley Cyrus. A cantora surge de top branco e cuecas. Os protagonistas do lar não mostram tanta pele, mas mesmo assim a habitual polémica online estalou.

Sofia e Ângelo continuam a defender a ideia. “Esse vídeo foi essencial para mostrar a realidade às pessoas“, sustenta a gerontóloga. Entre as críticas, havia quem os acusasse de aproveitamento dos idosos. “A proposta partiu do senhor Zé Coelho”, sublinha. Quando há a ideia para um vídeo, “muitos querem participar, e alguns até ficam chateados porque não entraram ou só apareceram um segundo”. Naquele caso, como o vídeo tinha cenas de alguma nudez, várias pessoas “não se identificaram ou não gostaram da ideia” e preferiram ficar de fora. Cinco utentes quiseram entrar. “E nós temos de dar a oportunidade a esses cinco.”

Alguns comentários acusavam os responsáveis pelo lar de estarem a ridicularizar os idosos. “As pessoas é que não estavam à vontade com aquilo que estavam a ver, porque o senhor Zé Coelho, a D. Emília e a D. Analide fartaram-se de rir. E estavam conscientes daquilo que estavam a fazer.” Outra das perguntas frequentes era se não tinham medo do que os familiares dos idosos poderiam pensar. Sofia é assertiva. “Nós não temos de responder aos familiares se as pessoas podem responder por elas. E eu tenho de responder e dar o meu melhor à D. Emília ou à D. Ermelinda, que são as nossas clientes, não é aos familiares.

Não têm uma réstia de dúvida sobre se o vídeo deveria ou não ter sido gravado, porque a felicidade de quem passa o dia no Centro é a sua prioridade número 1. “Há uma ideia — e eu vejo isso na minha avó — de que se a pessoa é mais velha e não está em idade ativa, então os filhos agora mandam por eles. Não é assim! Até ao último dia da nossa vida, somos nós que mandamos em nós e vamos fazer aquilo que bem quisermos.

Ermelinda Caçador é, atualmente, a principal protagonista dos vídeos, filmados pelo animador Ângelo Valente. © Ricardo Castelo/Observador

Um dia, dois clientes do lar apaixonaram-se um pelo outro. E pediram à direção do lar para passarem a viver no mesmo quarto. A família era contra, mas a vontade dos dois sobrepôs-se. “Tal como as reações ao vídeo mostraram, o problema é que a sociedade afastou a sexualidade, a sensualidade e a nudez da terceira idade. Esquecem-se de que as pessoas são pessoas, não importa a idade, e têm direito a apaixonarem-se e a viver no mesmo quarto.” Passados uns meses, o casal desentendeu-se. E, tal como outro casal qualquer, deixaram de partilhar o mesmo quarto.

Um centro comunitário diferente que está a servir de modelo de norte a sul do país

Uma das ruas mais próximas do Centro chama-se Rua da Saudade. A emigração foi a saída de grande parte dos habitantes da Gafanha do Carmo. O que criou dois problemas: a saudade, sim, mas também a solidão. Era preciso criar uma estrutura que prestasse apoio aos idosos e a outros cidadãos com problemas de saúde e perda de autonomia.

Maria da Luz, 83 anos, chorou muito no dia em que ali entrou, assustada pela ideia de ir para um lar. “Gritei desde casa até aqui.”

“Este sonho começou a ser planeado há 17 anos”, lembra Ângelo. Na viragem do milénio, um grupo de cidadãos da freguesia mais pequena do concelho de Ílhavo “teve a utopia” de criar uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) com o objetivo de construir um centro comunitário. Entre elas estava Amândio Costa, o atual presidente. O primeiro passo foi constituir a IPSS a 10 de maio de 2000. O sonho de ver erguido um edifício tornou-se realidade uma década depois, em outubro de 2010. Parte do dinheiro doado para construir o edifício veio de familiares a viver e a trabalhar em países como os Estados Unidos e a Alemanha.

Com a casa feita, era preciso constituir uma equipa que pudesse receber os primeiros utentes. Primeiro chegou Ângelo, Sofia viria seis meses depois. “A diferença deste projeto passa um bocadinho pelo facto de sermos uma casa nova, sem vícios, sem ligações políticas nem religiosas“, destaca Ângelo. Apenas ele e outro funcionário já tinha trabalhado num lar. Tudo o resto foi tábua rasa. Pronta para escrever uma história nova que fizesse felizes aqueles que estão na última fase da vida. “As IPSS do país sempre foram geridas por padres e assistentes sociais, que gerem as instituições no sentido de satisfazerem as necessidades básicas das pessoas Raramente o objetivo é chegar à felicidade da pessoa.”

Ângelo Valente, de 34 anos, e Sofia Nunes, de 31 anos, não se limitam a garantir as necessidades básicas dos utentes do Centro. É preciso que vivam felizes. © Ricardo Castelo/Observador

Atualmente moram ali 35 pessoas na vertente de lar, 20 usufruem do centro de dia, ou seja, vão dormir a casa, e 13 pessoas recebem apoio domiciliário. 80% das vagas são ocupadas através da Segurança Social, com mensalidades proporcionais às reformas de cada um. As restantes são geridas pelo lar, e aqui o valor mensal vai dos 800 aos mil euros. A maior parte dos inscritos é da freguesia, embora haja quem prefira ir para a Gafanha do Carmo em vez de ficar no centro de dia da sua terra. Toda a gente se pode inscrever. Contudo, como em qualquer lar do país, há lista de espera — “por isso é que aparecem os lares ilegais”, comenta Ângelo.

Maria da Luz chorou muito no dia em que ali entrou, assustada pela ideia de ir para um lar. “Gritei desde casa até aqui”, conta ao Observador. Por essa altura, no hospital onde faz diálise, comentou “com a enfermeira Fernanda” que ia para o lar da Gafanha do Carmo. “Ela disse-me: ‘Os seus filhos puseram-na num rico lar. Dê os parabéns aos seus filhos”, reconhece agora. Do que gosta mesmo é de fazer tricô. Mas não esconde o orgulho quando o neto, maquinista, lhe diz que a vê nos vídeos. “Ó , tu entretens-te lá com os vídeos!”, conta a mulher, de 83 anos. Hoje, diz que se sente feliz. “Mais feliz do que em casa.”

João Oliveira nasceu com paralisia cerebral. Tem 62 anos, 37 deles a trabalhar como administrativo na Junta de Freguesia da Gafanha do Carmo. Só um AVC o fez parar. O mesmo AVC que, em 2013, o levou a integrar o lar. João gosta de estar no computador, a escrever poemas e a ver os vídeos que ele e os amigos protagonizam. Gosta de participar nos momentos de ginástica e de sair com Sofia e Ângelo para as conferências em que os dois participam. “Gosto de novos desafios. Isso é que me faz viver.

“Gosto de novos desafios. Isso é que me faz viver”, afirma João Oliveira. © Ricardo Castelo/Observador

Dada a popularidade que a instituição alcançou, são frequentes os convites à dupla responsável para darem palestras de norte a sul do país. Outras vezes, são os lares e centros de dia, gerontólogos e estudantes, que os contactam para saberem se podem ir até à Gafanha do Carmo. Querem perceber como é que uma instituição onde vivem cidadãos por norma afastados das televisões e das partilhas das redes sociais — os idosos, alguns física ou mentalmente incapacitados — se tornaram num fenómeno de popularidade.

Regra número 1: “A ligação às pessoas só existe se for genuína”, sublinha Ângelo, que dá exemplos de ferramentas que ajudam a ligar os utentes entre si e à equipa. É o caso dos animais. Ao Vadio juntou-se uma cadela, Viana, e é ver quem mais disputa as atenções e as festas dos dois habitantes de quatro patas. Ou quem insiste em alimentá-los às escondidas, mesmo que a veterinária tenha recomendado uma dieta. “Os animais aqui são mais do que algo fofo. São um elo de ligação, transmitem amor incondicional a todos os momentos.” Não só. Cabe aos moradores e frequentadores do centro educarem, alimentarem e darem banho ao Vadio e a Viana. “Há um renascer, uma vontade de estar ativo, de cuidar novamente.

"Acho que o que é necessário é haver formação de todos os profissionais, não só dos gerontólogos, no sentido de haver uma humanização de cuidados. É preciso mais atenção àquilo que as pessoas querem, chegar ao pé delas e ouvi-las."

As direções de outros lares querem seguir-lhes as pisadas, mas encontram barreiras. “Muitos profissionais encontram dificuldades em adotar um cão ou um gato, e perguntam-nos como é que nós conseguimos. Não existe nada na lei que proíba”, esclarece Sofia. A direção do Centro da Gafanha também começou por ter dúvidas. Ora porque o animal pode urinar, ora porque arranha os sofás. Por isso, a dupla fez o que tinha a fazer: apareceu um dia com um gato. O segredo, dizem, é não desistir. E acompanhar as propostas com argumentos fortes e validados cientificamente. “Tudo acaba por ser um entrave à adoção de um animal, e põe-se isso acima dos benefícios que o animal vai trazer.” Outro segredo que a dupla aplica: “Temos de ser apaixonados pela ideia. Se o Ângelo for apaixonado pela sua ideia, eu junto-me, a Regina junta-se, a Joana também, e de repente já somos 20 a defender a ideia. E, para a direção, estar contra 20 é mais difícil do que dizer só ‘não’ ao Ângelo.” E se uma ideia conseguiu conquistar várias pessoas, algum valor há de ter.

“Nós temos um ar muito informal, mas tudo o que fazemos aqui tem uma fundamentação científica. A Sofia é a melhor gerontóloga do país.” O reconhecimento e regulamento da profissão de gerontólogo teve o dedo dela, que em abril do ano passado se deslocou à Assembleia da República, juntamente com a Associação de Gerontólogos, para discutirem um projeto de lei. Com ela levou alguns dos utentes, como João. Há cursos de gerontologia cujos planos curriculares já têm o contributo dos dois. “Acho que o que é necessário é haver formação de todos os profissionais, não só dos gerontólogos, no sentido de haver uma humanização de cuidados. É preciso mais atenção àquilo que as pessoas querem, chegar ao pé delas e ouvi-las, em vez de fazermos as coisas porque achamos que está certo.”

A comunicação exterior e consequente mediatização traz muitos frutos. Um deles é ouvir de outros centros que as suas técnicas “são uma inspiração”. “Isso para nós é uma grande alegria, conseguirmos mudar um bocadinho o panorama.” Mas salientam: “Ângelos e Sofias há muitos no país”. O que por vezes não há é uma direção disposta a implementar as ideias deles. Porque há décadas que é assim que se faz. E a mudança, por vezes, assusta.

“Antes de morrer quero…”

Outro dos bons frutos da popularidade da página de Facebook é a oferta de serviços e atividades. Simples curiosos, cabeleireiras que querem oferecer um dia de vaidade aos utentes, músicos como Gabriel O Pensador, são muitos os que já passaram pelo Centro. “Para os nossos utentes não há melhor do que virem aqui pessoas que trazem amor. E isso também parte do ambiente de casa: receber visitas”, agradece o animador. Também recebem convites. Miguel Araújo chamou-os para um concerto privado. Os candidatos à junta de freguesia da Gafanha do Carmo participaram num vídeo de paródia às autárquicas. Em breve vão ter aulas de ioga, que alguém quis oferecer. “Os dias aqui são sempre diferentes.”

O projeto com mais visibilidade, inclusivamente internacional, que tiveram chamava-se “Antes de morrer quero”, baseado no projeto de arte internacional “Before I die”. Em junho de 2015, os utentes escreveram em quadros de lousa o que gostavam de fazer antes de morrerem. Os desejos eram tão variados quanto voltar a um navio, andar de avião, pintar o cabelo de azul, estar novamente com os netos ou tão simplesmente comer tripas de vinha d’alho.

Vitória e Alfredo cumpriram o sonho de andar de avião. © Divulgação

Sofia Nunes admite que a iniciativa não foi feita com a certeza de que os sonhos seriam concretizados. “Fizemo-lo para criar proximidade, porque quando eu partilho com alguém os meus sonhos, aproximo-me.” Mas, sobretudo, a ideia era desmistificar a morte, falando dela. “A morte existe, pode chegar a qualquer altura, e se queremos fazer alguma coisa que nos faz feliz, o momento é agora.” As mensagens tornaram-se virais e as chamadas telefónicas começaram a cair, com gente de todo o lado a oferecer-se para realizar os sonhos dos utentes da Gafanha do Carmo. Alfredo e Vitória andaram de avião. João foi a Lisboa ver um jogo do Benfica. Palmira Simões quis regressar à sua terra, a Figueira da Foz, comer no melhor restaurante da cidade, passar na gelataria e sentir a areia da praia nos pés. E, sim, Palmira da Graça comeu um prato de tripas de vinha d’alho.

No Brasil há uma associação que foi criada com inspiração neste projeto, e que se dedica a visitar lares de todo o país a perguntar o que é que as pessoas gostavam de fazer antes de morrerem. A ideia também tem sido replicada em Portugal. Uma vez, um presidente de Câmara disse-lhe a Sofia que queria mudar o nome da iniciativa, para se evitar a palavra “morrer”. “Nós temos de chamar as coisas pelos nomes, para que a palavra ‘morte’ se torne mais fácil de enfrentar. Os eufemismos só aumentam o medo que temos das coisas”, defende Sofia.

“Toda a gente quer chegar a velho, mas ninguém quer ser velho”

Outra vantagem conseguida com a popularidade dos vídeos: mostrar que os idosos também podem fazer paródias na Internet, e habituar o público a ver no ecrã “pessoas que não preenchem os padrões de comunicação”, diz Ângelo, referindo-se à predominância de homens e mulheres jovens, bonitos, sem problemas de saúde. Num programa televisivo da manhã, para o qual o Centro foi convidado, Tina, que tem uma mancha que lhe cobre metade da cara, nunca foi filmada pelo realizador.

Ermelinda tem 90 anos, não tem um olho, tem a boca ao lado e desloca-se com o auxílio de um andarilho. “No vídeo do PDE eu já estava toda remendada!”, diz a própria, bem disposta, sobre aquele que considera o seu melhor momento: uma paródia às campanhas partidárias para as eleições autárquicas. Quantas protagonistas de televisão ou de vídeos virais conhecemos assim? “Quando assumimos as nossas fragilidades perante todos ninguém as vai ver. Nós não nos lembramos que a Ermelinda tem esses problemas. A Ermelinda é a Ermelinda, e enquanto continuarmos a não ver estas pessoas representadas, vamos continuar a dizer ‘faz-me impressão’. Não tem de fazer impressão!“, afirma Sofia.

Num programa, Herman José disse-lhes em privado que não tinha gostado do vídeo “Wrecking Ball”, porque a imagem que tem da terceira idade é mais recatada do que ali transparece. “Mas ele no Instagram faz imensas brincadeiras com a mãe. Provavelmente não se apercebe que está a fazer exatamente a mesma coisa, porque não vê a mãe como uma pessoa velha. Nós também não vemos as pessoas que estão aqui com 90 anos, vemo-las como pessoas”, sublinha Ângelo. “Toda a gente quer chegar a velho, mas ninguém quer ser velho. Estamos habituados a que nos apresentem uma imagem da velhice que é pouco digna, e em que a pessoa só vai para o lar em más situações, como maus tratos.”

Os dias no Centro Comunitário da Gafanha do Carmo não são um mural de Facebook. Por vezes, é difícil arrancar a alguns dos utentes um sorriso, ou sequer a vontade de participar nas atividades. No dia em que o Observador por lá passou, a atividade matinal era a ginástica. Ângelo e Sofia fazem uma sessão de discos pedidos no YouTube e todos são convidados a partilhar as músicas que ouvem com as outras pessoas. A energia dos dois contrasta com a rigidez de movimentos da maioria. “Nem sempre é fácil”, admite Ângelo. Foi numa dessas manhãs de ginástica que José Coelho se lembrou de mostrar a todos a música “Wrecking Ball”.

Nem todos os momentos são de festa. Há o direito a não participar. E a descansar. © Ricardo Castelo/Observador

Ninguém é obrigado a participar nos vídeos, nos passeios ou nas atividades para os quais é convidado, como o concerto de Miguel Araújo. “O ideal do sr. Marcolino era estar no quarto a ver séries, ou na Internet. Pediu-nos TV Cabo no quarto e nós pusemos. Só o chamávamos para participar em coisas que nós sabíamos que ele gostava, como ir ver o F.C.Porto”, esclarece Sofia.

Alfredo Miranda adorava participar nos vídeos, de filmagem caseira e editados no simples Windows Movie Maker. O homem, que faleceu em fevereiro deste ano, não teve vida fácil, como pescador e pai de 10 filhos. No Centro Comunitário, descobriu uma vocação: ser a estrela da página, com a sua graça natural. Gostou de receber o apresentador da SIC, Daniel Oliveira, que ali se deslocou propositadamente para o entrevistar, depois de um vídeo de paródia ao programa. Mas gostava, sobretudo, quando a neta lhe dizia que na escola falavam dele, por causa dos vídeos da Adele ou do Agir, que falam aos mais novos. “A neta de repente ia para a escola a dizer que o avô dela era o Alfredo.

Há pessoas que, quando entram num lar, acham que vão morrer. “Fazes um vídeo, mostras a 10 pessoas e elas vão-te dizer que gostaram de te ver. Isto é reconhecimento. A autoestima e a motivação crescem, algumas transformam-se em estrelas da Internet, como foi o sr. Alfredo”, destaca Ângelo, que também é o responsável pela comunicação do Beira-Mar, de forma voluntária. O convite veio depois do trabalho feito no centro.

Reconhecidos na rua, como verdadeiras estrelas de TV

Os quartos ficam no primeiro piso. As instalações são recentes e estão bem cuidadas. Há quatro salas diferentes de convívio, lazer ou formação, para quem não quer estar na sala principal, onde há sempre mais confusão. Nos corredores estão penduradas fotografias dos utentes. Há vários computadores espalhados pelo edifício, com ligação à Internet. Todos podem utilizar ou aprender a utilizar, mas quem não sabe ler nem escrever, ou já vê mal, não consegue entrar no mundo digital.

Ermelinda Caçador tem ambas as limitações mas, ainda assim, tem perfil no Facebook. “Ela diz-nos o que quer fazer e quando quer pôr, nós vamos lá por ela e pomos.” O computador está ligado à TV grande da sala e o que se passa online é mostrado lá, para que todos possam ver e ter a noção do que é colocado.

“Que idade me dá?”, pergunta-nos Ermelinda, a mais recente estrela da Internet. Mesmo dentro de casa mantém-se de chapéu. Por cima dos ombros veste um lenço colorido. Depois de uma queda em casa, em 2013, a mulher de 90 anos decidiu integrar o lar a que o sobrinho, Amândio Costa, preside. “Sou feliz. Se não fosse não estava aqui”, responde prontamente, antes de nos deixar entrar no seu quarto. O que chama logo à atenção é uma fotografia colada no espelho. É Marcelo Rebelo de Sousa com o sobrinho de Ermelinda, tirada quando o Presidente da República visitou a fábrica a Vista Alegre, onde o jovem trabalha. Ermelinda tem a foto exposta, não por causa do familiar, mas sim porque adora Marcelo.

Ermelinda tem um ídolo: Marcelo Rebelo de Sousa. © Ricardo Castelo/Observador

Tanto que, recentemente, simularam uma entrevista em que o Presidente admite o amor recíproco por Ermelinda. A mulher não se contenta em ser primeira dama. No vídeo “Vota PDE – Partido da Ermelinda”, os candidatos à junta da Gafanha do Carmo aceitaram entrar. “O presidente ganhou por mais 200 e tal votos”, exclama a idosa. “Ela está convencida de que o candidato só ganhou por causa do vídeo dela”, confidenciam-nos. A auto-estima de Ermelinda vai mais longe. “Se eu soubesse ler era mulher para ser presidenta. As pessoas já me conhecem, tiram fotos comigo!”

Gabriel, ao lado, não diz se votaria na amiga. Prefere contar como foi a sua vida. Se pudesse, contar-nos-ia toda. Quando ficou viúvo, acabou por decidir passar os dias no centro. “Descobri aqui a felicidade. Aqui descobre-se muita coisa, até a felicidade.” Sente-se em casa, apesar de continuar a ir dormir à sua todas as noites. “Já ligaram à minha filha para lhe dizer que me tinham visto num vídeo”, recorda, satisfeito. “As minhas filhas veem-me sempre.”

“Quando fomos a Évora, no final da apresentação havia pessoas que vinham pedir para tirar fotos com o sr. João e com a D. Ermelinda, porque os conheciam dos vídeos. E eles pensam: ‘estamos em Évora, uma cidade onde eu nunca tinha estado, e as pessoas aqui conhecem-me! Para eles é fantástico”, recorda Sofia. Para o Centro, a visibilidade traz uma voz. “Não podemos estar dependentes da solidariedade social e só comunicarmos quando precisamos. Isso não resulta.”

Da primeira vez que foi a Évora, João sentiu-se uma espécie de celebridade. “Eu conheço-o da televisão”, chegaram a dizer-lhe. “Sou como o Quim Barreiros!” Diz-se feliz e realizado. “As pessoas pensam: ‘Um lar? Coitaditos’. Nós aqui fazemos tudo. Eu digo muitas vezes que não estou num lar, estou num hotel! Brinca-se, joga-se, vou à piscina três vezes por semana. Nunca me encostei ao muro das lamentações.”

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