“Entrou mais um em Lisboa! E mais um no Porto! Quem é que é?”. O frenesim é recordado por todos quantos estavam no Cinema São Jorge, em Lisboa, no dia 4 de outubro de 2015, recebendo incrédulos as projeções sobre aquela que viria a tornar-se a melhor noite eleitoral de sempre para o Bloco de Esquerda — tão boa que nem o partido sabia bem quem eram os candidatos que estavam a ser eleitos deputados, uma vez que não tinha contado, nem de perto nem de longe, chegar tão longe nas suas próprias listas. A vitória tinha um rosto: Catarina Martins, a líder renascida das cinzas da experiência de coordenação bicéfala com João Semedo, que se tinha destacado e ganhado fôlego durante os debates televisivos e que os bloquistas consideram responsável pelo primeiro momento que faria a geringonça nascer, 54 dias depois.
A popularidade da líder que precisava de se impor após a era Louçã — e que pegou num partido traumatizado com o rombo eleitoral pós-queda de José Sócrates — começara a ser percebida por elementos do Bloco nos meses anteriores, graças a pequenos sinais: há quem se recorde de um grupo de cantoneiros que “parou para a aplaudir” no jardim lisboeta da Estrela e, já depois do primeiro debate da campanha eleitoral, as “filas” de pessoas que se formaram para a cumprimentar numa ação em Matosinhos. O caminho levou ao bom resultado nas legislativas e à marca maior do seu mandato: a formação da geringonça.
Mas o segundo resultado mais marcante das suas direções acabaria por ser o oposto: o pior resultado desde há vinte anos, em 2022, precisamente depois da morte da geringonça. No currículo de Catarina Martins ficam registados os melhores e piores números do Bloco de Esquerda, a criação da solução política inédita que deixou os militantes satisfeitos e a decisão de a quebrar que deixou os simpatizantes zangados. Hoje, no partido, a garantia é que todos estavam conscientes dos danos que a decisão provocaria: “Sabíamos que íamos ser castigados eleitoralmente por isso. Sabíamos todos. Todos aceitámos conscientemente o resultado”, recorda Joana Mortágua. E avançaram assim, conscientemente, para uma fase de perda de influência política e para as eleições que resultariam na perda de 14 deputados.
Catarina Martins sai com resultados muito fracos e sob fortes ataques dos críticos internos, depois de ter começado o seu consulado a trabalhar para unir o Bloco. Ainda assim, no partido vaticinam-lhe outros voos: ninguém equaciona que a reforma política de Catarina, que continua a ser considerada um ativo político sólido, seja uma hipótese.
A “consensual” geringonça e os arrependimentos a posteriori
Pergunte-se a quem se perguntar, o diagnóstico é o mesmo: a grande marca dos anos de Catarina Martins à frente do Bloco é mesmo a geringonça. A paternidade da solução é controversa — há muito que Bloco e PCP se contrariam, uma vez que ambos os partidos se consideram responsáveis por desbloquear o caminho para o inédito acordo à esquerda. Mas no Bloco não há quem não recorde o momento em que, no debate com António Costa na campanha para as eleições de 2015, Catarina Martins estabelece as condições para poderem “conversar” a seguir às eleições.
A perceção no partido é que militantes e eleitores ficaram satisfeitos com a iniciativa, e os resultados em 2019 — ligeiramente mais baixos em votos, mas mantendo os mesmos deputados — confirmaram-no. Entre os dirigentes, garante-se mesmo que não houve uma decisão mais consensual tomada no Bloco em anos.
Não há arrependimentos sobre a geringonça em si, mas antes sobre a forma como o Bloco foi entrando num terreno para a qual “não havia mapa”, e, acredita o partido, em que a base para negociar estava fragilizada pela recusa do PCP em negociar a três: juntos, os partidos teriam tido mais força para impor medidas a António Costa.
A partir de certa altura, não a tiveram. Hoje admite-se no partido que, se houvesse nova geringonça, muitas coisas seriam “certamente” diferentes: o Bloco, que nos últimos anos do acordo tinha a perceção, admitida nos corredores do partido, de estar a receber “migalhas” nas negociações com o PS, aprendeu que teria de ser mais duro e estabelecer metas mais concretas, em áreas como a Saúde. Depois dos tempos felizes em que havia um programa comum para reverter as medidas da troika, tudo se complicou. Os bloquistas estavam conscientes de que tinham de romper a corda. Faltava saber quando.
O castigo antecipado e a arte de desfazer um “zombie”
“Sabíamos que íamos ser castigados eleitoralmente por isso. Sabíamos todos. Todos aceitámos conscientemente o resultado”. O relato é feito pela deputada e dirigente Joana Mortágua, assumindo que o Bloco teve em conta o óbvio risco de castigo nas urnas quando chumbou pela primeira vez um Orçamento do Estado de António Costa. Mas era um mal necessário, defende, e por isso coloca tanto a criação da geringonça como o ato de a “desfazer” entre os pontos essenciais do legado da líder cessante.
“No momento certo, soube ler o que aquilo significava para o país e quando se esgotou. E ler o percurso do PS, sem acreditar em ilusões; reconhecer as limitações do acordo que foi feito e a sua circunstancialidade no tempo. Teve um contexto histórico e um propósito”, defende Joana Mortágua. No Bloco, a decisão de romper com o PS é descrita como uma espécie de dilema impossível — ou o partido acabava com um acordo que sabia que, passados os primeiros anos, estava a amarrá-lo ao PS e aos seus “anúncios publicitários”, como lhes chama José Soeiro, sem frutos que compensassem essa associação; ou tomava a atitude potencialmente kamikaze de avançar para uma provável derrota nas urnas.
Além disso, a geringonça tinha permitido ao Bloco assumir uma nova posição no espetro político e até uma nova forma de trabalhar internamente que acabou por catapultar o Bloco além do estatuto de partido de protesto. A geração geringonça recebeu um treino intensivo de estudo dos dossiês e treino de negociação com o Governo. “A Catarina foi responsável por uma renovação no Bloco. Puxou novos protagonistas para a frente do partido, Mariana Mortágua, Joana Mortágua, Isabel Pires, José Soeiro, Beatriz Gomes Dias. A direção que encabeça tem um papel fundamental na afirmação do Bloco e recuperação dos tempos de derrota”, diz o dirigente Fabian Figueiredo.
É por isso que no partido também se dá crédito à gestão que Catarina Martins precisou de fazer na passagem difícil de uma fase para a outra: passar do discurso de um partido que tem um acordo com o PS e valoriza esses resultados para uma oposição dura ao mesmo Governo. “Hoje as pessoas dão-nos razão e compreendem. Em muitas manifestações, as mesmas pessoas que olhavam com alguma desconfiança para a decisão pedem-nos que façamos oposição forte ao Governo do PS”, garante Figueiredo. As sondagens não apontam, pelo menos para já, um regresso em força dos supostos arrependidos da maioria absoluta. O tempo o dirá. A prioridade foi dada ao “longo prazo”, explica José Soeiro, confiante em que só assim, mostrando “coerência” nas suas opções, o Bloco conseguiria “manter o seu espaço político”.
Do lado dos críticos internos do Bloco, a leitura é bem menos benevolente: o Bloco devia ter sido mais exigente com o PS e teve uma “incapacidade para sair daquele círculo em que estava envolvido”, diagnostica Pedro Soares, porta-voz da moção E, que se opõe à A nesta convenção. “Na fase final, a geringonça já era um zombie, um nado morto, e o Bloco não conseguia saltar fora”. Consequências disto, e de o Bloco ter insistido em reeditar os acordos: “Este ciclo de maus resultados, e a perda de influência política e social”, lamenta.
Esmagar a ameaça de guerra civil (e uma nova tensão)
A situação do Bloco quando Catarina Martins pegou no partido era única: pela primeira vez, um embate pela liderança tinha dividido o Bloco ao meio (literalmente: a votação para a Mesa Nacional, na convenção de 2014, tinha resultado num empate entre as listas de Catarina Martins e Pedro Filipe Soares). O risco de fratura interna era real, admitem agora os dirigentes partidários, anos depois de as duas correntes terem decidido enterrar o machado de guerra e assumir a paz.
“A Catarina soube ler muito bem a natureza plural do Bloco, que se expressa como um partido de tendências organizadas”, elogia Joana Mortágua, que estava do lado de Pedro Filipe (e continua a estar, uma vez que vem da corrente da UDP). “Não era o nome [do/a líder] que nos dividia, era a avaliação da linha política. E a Catarina conseguiu protagonizar um afinamento da linha política que teve a capacidade de nos juntar, um equilíbrio para não causar desconforto a nenhum dos lados. Não houve uma cedência, houve um acordo“.
Dos dois lados, a avaliação é hoje consensual: os elogios a uma líder “que não é sectária” e que conseguia falar com todas as partes para “resgatar o passado comum” também se estendem a Pedro Filipe, pela “maturidade” de não ter alimentado lutas entre as barricadas, ainda tensas depois da convenção.
A pacificação não foi fácil nem imediata, mas o Bloco orgulha-se de não ter entrado em guerra civil. “O esforço foi de ambos para convergir esforços e mobilizar conjuntamente o partido para enfrentar o ciclo eleitoral, o pós-troika, voltar a puxar o Bloco para cima. Montaram os dois uma orquestra do Bloco de Esquerda”, resume Figueiredo, vindo também da corrente UDP.
A harmonia foi conseguida numa direção em que as duas partes ficaram alinhadas, mas a era Catarina não acaba sem dessintonias no partido. A partir da segunda metade da geringonça, foi crescendo a insatisfação da ala da tendência interna Convergência (formada em boa parte também por militantes que vinham da UDP) pela falta de exigência com o PS e pelo que diziam ser uma anulação do Bloco em prol dos acordos com os socialistas. Na última convenção, Catarina Martins viu a moção E, liderada pela Convergência, a conseguir 18,6% dos assentos na Mesa Nacional.
Para estes críticos, a consequência da liderança de Catarina Martins e da fase da centralização de decisões na geringonça também é interna: “Houve uma marca clara nos últimos anos de incapacidade da Catarina de promover um espaço de diálogo dentro das diferenças e pluralidade dentro do bloco. Houve acantonamento da direção a volta de duas tendências e uma ostracização dos outros”.
O fator Catarina
Apesar do ciclo de maus resultados em toda a linha que marcam os últimos anos do Bloco, os dirigentes continuam convictos de que “a primeira coordenadora mulher” — “teve um impacto na valorização das mulheres, um impacto real, não é uma coisa meramente simbólica”, diz Joana Mortágua — ainda tem muito para dar à política nacional. A reforma não está para breve: “Ainda não tem 50 anos, em qualquer partido é considerada uma jovem”.
As qualidades próprias da líder cessante também são elogiadas, mesmo num partido em que se costumam destacar os méritos do coletivo. Se o período da sua liderança está associado a “uma série de processos políticos com interlocução direta com setores populares”, incluindo os que não costumavam ser particularmente próximos do Bloco, muito se deve à própria Catarina Martins, defende o dirigente José Soeiro: “Por ser muito contundente e falar de coisas que as pessoas compreendiam, com uma sensibilidade e uma capacidade de articulação e uma linguagem combativa e popular”.
O dirigente destaca a criação de um espaço político para trabalhadores que costumavam estar à margem do sistema, em trabalhos precários, informais ou domésticos, dando a Catarina Martins o mérito de ter protagonizado, na altura, um “alargamento da base de diálogo social” do Bloco.
E recorda momentos como assembleias com trabalhadoras da limpeza na cantina da Assembleia da República, ou os encontros com os trabalhadores das pedreiras da freguesia de Peroselo, em Penafiel — “iam lá uns cem pedreiros discutir com a Catarina, era emocionante”. Nessa “micro-freguesia”, o Bloco acabaria por conseguir uns surpreendentes 24,11% dos votos nas eleições de 2019. Para os apoiantes de Catarina Martins, um exemplo da capacidade de diálogo e de estabelecimento de pontes que a líder conseguiu ir construindo.
“Quando começou a assumir funções teve hostilidade, machismo e misoginia de muitos comentadores; hoje elogiam-na. Alguns criadores de opinião tendiam a desvalorizá-la”, recorda Fabian Figueiredo, convicto de que Catarina Martins se tornou “uma figura incontornável na esquerda portuguesa”. A convicção parece consensual no Bloco, seja entre defensores ou críticos. Mais uma que será testada pelo tempo.