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Catarina Martins sai 11 anos depois de ter começado liderança bicéfala mal sucedida com João Semedo
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Catarina Martins sai 11 anos depois de ter começado liderança bicéfala mal sucedida com João Semedo

LUSA

Catarina Martins sai 11 anos depois de ter começado liderança bicéfala mal sucedida com João Semedo

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O legado de Catarina Martins, a maestrina na "orquestra" do Bloco que sai com o partido em queda

Catarina Martins sai 11 anos depois de ter pegado num partido dividido e em choque. Todos lhe reconhecem méritos na geringonça e na gestão do fim, mas sai com resultados historicamente fracos.

“Entrou mais um em Lisboa! E mais um no Porto! Quem é que é?”. O frenesim é recordado por todos quantos estavam no Cinema São Jorge, em Lisboa, no dia 4 de outubro de 2015, recebendo incrédulos as projeções sobre aquela que viria a tornar-se a melhor noite eleitoral de sempre para o Bloco de Esquerda — tão boa que nem o partido sabia bem quem eram os candidatos que estavam a ser eleitos deputados, uma vez que não tinha contado, nem de perto nem de longe, chegar tão longe nas suas próprias listas. A vitória tinha um rosto: Catarina Martins, a líder renascida das cinzas da experiência de coordenação bicéfala com João Semedo, que se tinha destacado e ganhado fôlego durante os debates televisivos e que os bloquistas consideram responsável pelo primeiro momento que faria a geringonça nascer, 54 dias depois.

A popularidade da líder que precisava de se impor após a era Louçã — e que pegou num partido traumatizado com o rombo eleitoral pós-queda de José Sócrates — começara a ser percebida por elementos do Bloco nos meses anteriores, graças a pequenos sinais: há quem se recorde de um grupo de cantoneiros que “parou para a aplaudir” no jardim lisboeta da Estrela e, já depois do primeiro debate da campanha eleitoral, as “filas” de pessoas que se formaram para a cumprimentar numa ação em Matosinhos. O caminho levou ao bom resultado nas legislativas e à marca maior do seu mandato: a formação da geringonça.

Mas o segundo resultado mais marcante das suas direções acabaria por ser o oposto: o pior resultado desde há vinte anos, em 2022, precisamente depois da morte da geringonça. No currículo de Catarina Martins ficam registados os melhores e piores números do Bloco de Esquerda, a criação da solução política inédita que deixou os militantes satisfeitos e a decisão de a quebrar que deixou os simpatizantes zangados. Hoje, no partido, a garantia é que todos estavam conscientes dos danos que a decisão provocaria: “Sabíamos que íamos ser castigados eleitoralmente por isso. Sabíamos todos. Todos aceitámos conscientemente o resultado”, recorda Joana Mortágua. E avançaram assim, conscientemente, para uma fase de perda de influência política e para as eleições que resultariam na perda de 14 deputados.

Catarina Martins sai com resultados muito fracos e sob fortes ataques dos críticos internos, depois de ter começado o seu consulado a trabalhar para unir o Bloco. Ainda assim, no partido vaticinam-lhe outros voos: ninguém equaciona que a reforma política de Catarina, que continua a ser considerada um ativo político sólido, seja uma hipótese.

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A “consensual” geringonça e os arrependimentos a posteriori

Pergunte-se a quem se perguntar, o diagnóstico é o mesmo: a grande marca dos anos de Catarina Martins à frente do Bloco é mesmo a geringonça. A paternidade da solução é controversa — há muito que Bloco e PCP se contrariam, uma vez que ambos os partidos se consideram responsáveis por desbloquear o caminho para o inédito acordo à esquerda. Mas no Bloco não há quem não recorde o momento em que, no debate com António Costa na campanha para as eleições de 2015, Catarina Martins estabelece as condições para poderem “conversar” a seguir às eleições.

Hoje admite-se no partido que, se houvesse nova geringonça, muitas coisas seriam "certamente" diferentes: o Bloco, que nos últimos anos do acordo tinha a perceção de estar a receber "migalhas" nas negociações com o PS, aprendeu que teria de ser mais duro e estabelecer metas mais concretas.

A perceção no partido é que militantes e eleitores ficaram satisfeitos com a iniciativa, e os resultados em 2019 — ligeiramente mais baixos em votos, mas mantendo os mesmos deputados — confirmaram-no. Entre os dirigentes, garante-se mesmo que não houve uma decisão mais consensual tomada no Bloco em anos.

Não há arrependimentos sobre a geringonça em si, mas antes sobre a forma como o Bloco foi entrando num terreno para a qual “não havia mapa”, e, acredita o partido, em que a base para negociar estava fragilizada pela recusa do PCP em negociar a três: juntos, os partidos teriam tido mais força para impor medidas a António Costa.

Bloquistas reclamam para Catarina Martins o mérito de ter desafiado Costa para geringonça. PCP discorda

Orlando Almeida

A partir de certa altura, não a tiveram. Hoje admite-se no partido que, se houvesse nova geringonça, muitas coisas seriam “certamente” diferentes: o Bloco, que nos últimos anos do acordo tinha a perceção, admitida nos corredores do partido, de estar a receber “migalhas” nas negociações com o PS, aprendeu que teria de ser mais duro e estabelecer metas mais concretas, em áreas como a Saúde. Depois dos tempos felizes em que havia um programa comum para reverter as medidas da troika, tudo se complicou. Os bloquistas estavam conscientes de que tinham de romper a corda. Faltava saber quando.

O castigo antecipado e a arte de desfazer um “zombie”

“Sabíamos que íamos ser castigados eleitoralmente por isso. Sabíamos todos. Todos aceitámos conscientemente o resultado”. O relato é feito pela deputada e dirigente Joana Mortágua, assumindo que o Bloco teve em conta o óbvio risco de castigo nas urnas quando chumbou pela primeira vez um Orçamento do Estado de António Costa. Mas era um mal necessário, defende, e por isso coloca tanto a criação da geringonça como o ato de a “desfazer” entre os pontos essenciais do legado da líder cessante.

“No momento certo, soube ler o que aquilo significava para o país e quando se esgotou. E ler o percurso do PS, sem acreditar em ilusões; reconhecer as limitações do acordo que foi feito e a sua circunstancialidade no tempo. Teve um contexto histórico e um propósito”, defende Joana Mortágua. No Bloco, a decisão de romper com o PS é descrita como uma espécie de dilema impossível — ou o partido acabava com um acordo que sabia que, passados os primeiros anos, estava a amarrá-lo ao PS e aos seus “anúncios publicitários”, como lhes chama José Soeiro, sem frutos que compensassem essa associação; ou tomava a atitude potencialmente kamikaze de avançar para uma provável derrota nas urnas.

Noite eleitoral das eleições legislativas de 2022 do Bloco de Esquerda no Capitólio: Catarina Martins, candidato pelo Bloco de Esquerda a primeiro-ministro. Lisboa, 30 de janeiro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Na noite eleitoral de 30 de janeiro de 2022, Catarina Martins confirmou aos jornalistas que Costa conseguiria a maioria absoluta

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Além disso, a geringonça tinha permitido ao Bloco assumir uma nova posição no espetro político e até uma nova forma de trabalhar internamente que acabou por catapultar o Bloco além do estatuto de partido de protesto. A geração geringonça recebeu um treino intensivo de estudo dos dossiês e treino de negociação com o Governo. “A Catarina foi responsável por uma renovação no Bloco. Puxou novos protagonistas para a frente do partido, Mariana Mortágua, Joana Mortágua, Isabel Pires, José Soeiro, Beatriz Gomes Dias. A direção que encabeça tem um papel fundamental na afirmação do Bloco e recuperação dos tempos de derrota”, diz o dirigente Fabian Figueiredo.

É por isso que no partido também se dá crédito à gestão que Catarina Martins precisou de fazer na passagem difícil de uma fase para a outra: passar do discurso de um partido que tem um acordo com o PS e valoriza esses resultados para uma oposição dura ao mesmo Governo. “Hoje as pessoas dão-nos razão e compreendem. Em muitas manifestações, as mesmas pessoas que olhavam com alguma desconfiança para a decisão pedem-nos que façamos oposição forte ao Governo do PS”, garante Figueiredo. As sondagens não apontam, pelo menos para já, um regresso em força dos supostos arrependidos da maioria absoluta. O tempo o dirá. A prioridade foi dada ao “longo prazo”, explica José Soeiro, confiante em que só assim, mostrando “coerência” nas suas opções, o Bloco conseguiria “manter o seu espaço político”.

Críticos dizem que Bloco não conseguiu sair a tempo de uma geringonça que já era "um zombie, um nado morto" há muito tempo

Do lado dos críticos internos do Bloco, a leitura é bem menos benevolente: o Bloco devia ter sido mais exigente com o PS e teve uma “incapacidade para sair daquele círculo em que estava envolvido”, diagnostica Pedro Soares, porta-voz da moção E, que se opõe à A nesta convenção. “Na fase final, a geringonça já era um zombie, um nado morto, e o Bloco não conseguia saltar fora”. Consequências disto, e de o Bloco ter insistido em reeditar os acordos: “Este ciclo de maus resultados, e a perda de influência política e social”, lamenta.

Esmagar a ameaça de guerra civil (e uma nova tensão)

A situação do Bloco quando Catarina Martins pegou no partido era única: pela primeira vez, um embate pela liderança tinha dividido o Bloco ao meio (literalmente: a votação para a Mesa Nacional, na convenção de 2014, tinha resultado num empate entre as listas de Catarina Martins e Pedro Filipe Soares). O risco de fratura interna era real, admitem agora os dirigentes partidários, anos depois de as duas correntes terem decidido enterrar o machado de guerra e assumir a paz.

“A Catarina soube ler muito bem a natureza plural do Bloco, que se expressa como um partido de tendências organizadas”, elogia Joana Mortágua, que estava do lado de Pedro Filipe (e continua a estar, uma vez que vem da corrente da UDP). “Não era o nome [do/a líder] que nos dividia, era a avaliação da linha política. E a Catarina conseguiu protagonizar um afinamento da linha política que teve a capacidade de nos juntar, um equilíbrio para não causar desconforto a nenhum dos lados. Não houve uma cedência, houve um acordo“.

Dos dois lados, a avaliação é hoje consensual: os elogios a uma líder “que não é sectária” e que conseguia falar com todas as partes para “resgatar o passado comum” também se estendem a Pedro Filipe, pela “maturidade” de não ter alimentado lutas entre as barricadas, ainda tensas depois da convenção.

A coordenadora nacional do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins (C), acompanhada por Pedro Filipe Soares (D) e Mariana Mortágua (E), participa no comício nacional do partido, no âmbito da campanha eleitoral para as eleições legislativas 2022, no pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, 23 de janeiro de 2022. A 30 de janeiro mais de 10 milhões de eleitores residentes em Portugal e no estrangeiro constam dos cadernos eleitorais para a escolha dos 230 deputados à Assembleia da República. MÁRIO CRUZ/LUSA

Pedro Filipe Soares e Catarina Martins uniram forças depois do embate de 2014

MÁRIO CRUZ/LUSA

A pacificação não foi fácil nem imediata, mas o Bloco orgulha-se de não ter entrado em guerra civil. “O esforço foi de ambos para convergir esforços e mobilizar conjuntamente o partido para enfrentar o ciclo eleitoral, o pós-troika, voltar a puxar o Bloco para cima. Montaram os dois uma orquestra do Bloco de Esquerda”, resume Figueiredo, vindo também da corrente UDP.

A harmonia foi conseguida numa direção em que as duas partes ficaram alinhadas, mas a era Catarina não acaba sem dessintonias no partido. A partir da segunda metade da geringonça, foi crescendo a insatisfação da ala da tendência interna Convergência (formada em boa parte também por militantes que vinham da UDP) pela falta de exigência com o PS e pelo que diziam ser uma anulação do Bloco em prol dos acordos com os socialistas. Na última convenção, Catarina Martins viu a moção E, liderada pela Convergência, a conseguir 18,6% dos assentos na Mesa Nacional.

Para estes críticos, a consequência da liderança de Catarina Martins e da fase da centralização de decisões na geringonça também é interna: “Houve uma marca clara nos últimos anos de incapacidade da Catarina de promover um espaço de diálogo dentro das diferenças e pluralidade dentro do bloco. Houve acantonamento da direção a volta de duas tendências e uma ostracização dos outros”.

O fator Catarina

Apesar do ciclo de maus resultados em toda a linha que marcam os últimos anos do Bloco, os dirigentes continuam convictos de que “a primeira coordenadora mulher” — “teve um impacto na valorização das mulheres, um impacto real, não é uma coisa meramente simbólica”, diz Joana Mortágua — ainda tem muito para dar à política nacional. A reforma não está para breve: “Ainda não tem 50 anos, em qualquer partido é considerada uma jovem”.

As qualidades próprias da líder cessante também são elogiadas, mesmo num partido em que se costumam destacar os méritos do coletivo. Se o período da sua liderança está associado a “uma série de processos políticos com interlocução direta com setores populares”, incluindo os que não costumavam ser particularmente próximos do Bloco, muito se deve à própria Catarina Martins, defende o dirigente José Soeiro: “Por ser muito contundente e falar de coisas que as pessoas compreendiam, com uma sensibilidade e uma capacidade de articulação e uma linguagem combativa e popular”.

O dirigente destaca a criação de um espaço político para trabalhadores que costumavam estar à margem do sistema, em trabalhos precários, informais ou domésticos, dando a Catarina Martins o mérito de ter protagonizado, na altura, um “alargamento da base de diálogo social” do Bloco.

E recorda momentos como assembleias com trabalhadoras da limpeza na cantina da Assembleia da República, ou os encontros com os trabalhadores das pedreiras da freguesia de Peroselo, em Penafiel — “iam lá uns cem pedreiros discutir com a Catarina, era emocionante”. Nessa “micro-freguesia”, o Bloco acabaria por conseguir uns surpreendentes 24,11% dos votos nas eleições de 2019. Para os apoiantes de Catarina Martins, um exemplo da capacidade de diálogo e de estabelecimento de pontes que a líder conseguiu ir construindo.

“Quando começou a assumir funções teve hostilidade, machismo e misoginia de muitos comentadores; hoje elogiam-na. Alguns criadores de opinião tendiam a desvalorizá-la”, recorda Fabian Figueiredo, convicto de que Catarina Martins se tornou “uma figura incontornável na esquerda portuguesa”. A convicção parece consensual no Bloco, seja entre defensores ou críticos. Mais uma que será testada pelo tempo.

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