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Perto do final de 1929, algo surpreendente aconteceu: um sossegado poeta português recebeu uma carta de um extravagante mago inglês, dando início a uma curta mas prolífica correspondência que resultou num dos incidentes mais curiosos do início dos anos 30 em Lisboa, que ficou conhecido como “O Mistério da Boca do Inferno”. O poeta era nada mais nada menos do que Fernando Pessoa, então com 40 anos, e o mago Aleister Crowley, escritor, alpinista, jogador de xadrez, pintor e ocultista de 50 anos que tinha ganho fama entre os seus conterrâneos como “o homem mais malvado do mundo” por causa do seu estilo de vida excêntrico, excessivo, com um desmedido consumo de drogas e diferentes parceiros sexuais, e, na opinião de muitos, depravado. A história de como estes dois homens tão diferentes apenas com um único interesse em comum — o esoterismo — se conheceram é fascinante e inspirou, ao longo dos anos, livros, músicas e filmes. Não apenas por serem quem são, mas sobretudo pela aura de misticismo que criaram em torno do encontro, com aparecimentos e desaparecimentos súbitos forjados para confundir os jornais, os seus leitores e a polícia.
O ponto alto desta estranha amizade, que levou Crowley a embarcar num paquete rumo a Lisboa em setembro de 1930, foi a notícia do seu aparente suicídio na Boca do Inferno, em Cascais. Passados 90 anos, muito continua por explicar, nomeadamente as verdadeiras razões que levaram o fundador de duas ordens esotéricas, que se chamava a si próprio “To Mega Therion”, “A Grande Besta”, a fingir a própria morte. Não existem porém dúvidas de que Pessoa desempenhou um papel fundamental na farsa que procurou até enganar as autoridades portuguesas. O escritor foi responsável por muitos dos detalhes e pela divulgação da história nos jornais portugueses, com a ajuda indispensável do amigo e jornalista Augusto Ferreira Gomes. Porquê, também permanece por explicar, sobretudo quando se percebe que o interesse pessoal em Crowley era quase nenhum — foi Pessoa que pôs um ponto final à correspondência, ao fim de quase dois anos de cartas trocadas com o mago e vários dos seus amigos e colaboradores, em Inglaterra e também fora dela.
Estas cartas foram publicadas pela primeira vez em 2001, com edição e comentários de um sobrinho de Fernando Pessoa, Luís Miguel Rosa Dias, e reeditadas quase dez anos depois, em 2010. Ambas edições encontram-se atualmente indisponíveis no mercado. Uma nova, mais completa e apresentando pela primeira vez todos os fragmentos de The Mouth of Hell, o policial que Pessoa começou a escrever em setembro de 1930 sobre os acontecimentos em torno do alegado desaparecimento de Aleister Crowley em Portugal, saiu neste mês de setembro, pela Tinta-da-China, com um objetivo muito claro — “reconstituir as verdadeiras intenções que levaram Crowley a organizar, no final de agosto de 1930, uma viagem bastante atabalhoada a Lisboa”, através da apresentação filológica e cronológica de “todos os documentos relacionados, direta ou indiretamente, com o encontro Pessoa-Crowley”, explicou o investigador Steffen Dix, responsável pela edição.
Essa viagem teve início no final de agosto. A 1 de setembro de 1930, pelas 8h30, quando estava preso em Vigo por causa do nevoeiro, Aleister Crowley lamentou-se: “Vamos comer albatrozes gelados ao pequeno-almoço. Presos atrás das rochas onde o Highland Pipers teve um acidente no ano passado”, escreveu no diário. O paquete Alcântara estava atrasado um dia e o mau tempo na costa galega parecia não dar tréguas. Navegando no meio de um nevoeiro espesso, como o Drácula a bordo do Deméter, Crowley só chegou ao cais de Lisboa no dia seguinte, da parte da tarde. Tinha à sua espera um escritor alto e magro, com óculos redondos e um pequeno bigode. A história estava prestes a começar.
Capítulo I. Um sossegado poeta português conhece um extravagante mago inglês
A história da estranha amizade entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley começou a 18 de novembro de 1929, quando o poeta português entrou em contacto com a editora londrina Mandrake Press mostrando interesse em adquirir o primeiro volume da autobiografia The Confessions of Aleister Crowley, que tinha acabado de ser publicado. Semanas depois, a 4 de dezembro, acusando a receção da primeira parte de Confessions, de um outro livro que tinha encomendado, e anunciando o envio de “um cheque no valor de 2,7 libras” para pagamento, Pessoa pediu aos responsáveis da Mandrake para alertarem Crowley de que o seu horóscopo estava incorreto. “Se ele julga ter nascido às 23h. 16m. 39s., no dia 12 de outubro de 1875, terá Carneiro 11 como seu Medium Coeli, com respetivos ascendentes e cúspides. Encontrará as suas direções de modo mais exato do que terá encontrado até agora”, disse, alertando que se tratava de “uma mera especulação” e pedindo desculpa por “incomodar com esta intromissão puramente fantasiosa no que é, no fundo, apenas uma carta de negócios”.
O poeta referia-se ao mapa que surgia nas primeiras páginas de Confessions. Pessoa dedicava-se à astrologia pelo menos desde 1914, quando começou a elaborar com regularidade horóscopos e cálculos astrológicos. O escritor português chegou mesmo a descrever-se como astrólogo em alguns dos seus papéis, incluindo nalguns referentes ao caso da Boca do Inferno, e até publicamente. Depois de ter estudado “atentamente” o horóscopo de Crowley, Pessoa chegou à conclusão de que “estava errado devendo ele ter nascido um pouco antes da hora que suponha”, admitiu num texto onde sintetizou o início do contacto com o inglês. Crowley não sabia ao certo a hora do seu nascimento, dispondo apenas da informação de que teria acontecido entre as 23h e a meia-noite. “Perante esta incerteza, e talvez estimulado pela sua imensa curiosidade, Pessoa serve-se dos seus profundos conhecimentos técnicos em astrologia e tenta encontrar a hora verdadeira do nascimento do ocultista britânico”, apontou o astrólogo Paulo Cardoso, no livro sobre as cartas astrológicas de Fernando Pessoa. “Em carta dirigida à Mandrake Press, e datada de 4 de dezembro de 1929, Pessoa sugere uma possível hora de nascimento corrigida, ‘23h. 16m. e 39s.’, com ‘um Meio do Céu a 11º de Carneiro’.”
Crowley terá ficado contente com a correção horária — respondeu pessoalmente a Pessoa alguns dias depois, em carta datada de 11 de dezembro, dando início a uma troca de correspondência que iria durar sensivelmente dois anos. Curiosamente, a sugestão de uma possível viagem a Portugal surgiu logo na segunda missiva. A 22 de dezembro, Crowley, que tinha recebido de Fernando Pessoa a brochura 35 Sonnets e os três volumes de poesia inglesa de 1921, disse, num parágrafo acrescentado posteriormente a caneta, que tinha considerado “realmente” a chegada da sua poesia como “uma clara Mensagem que gostaria de explicar pessoalmente”, questionando se o poeta estaria em Lisboa nos meses seguintes. “Se assim for, gostaria de o visitar: mas sem dizer a ninguém. Por favor, informe-me na volta do correio.” Pessoa mostrou-se disponível para receber o mago, sugerindo que se marcasse o encontro para março seguinte. Pediu, no entanto, que fosse avisado atempadamente da sua chegada, já que costumava deslocar-se com regularidade a Évora, onde vivia a irmã, Henriqueta Madalena, casada com Francisco Caetano Dias, oficial do exército então destacado naquela cidade.
Crowley mudou rapidamente de ideias. Já depois da passagem de ano, disse que talvez fosse melhor que fosse antes Pessoa a ir a Londres, porque tinha “muitos assuntos para pôr em ordem”. O poeta português afastou definitivamente esta possibilidade a 25 de fevereiro, ao afirmar que não pretendia sair de Lisboa num futuro próximo. A resposta a esta afirmação só chegou em abril, quando o secretário de Aleister Crowley, Israel Regardie, o informou, no dia 9, que o mago não ia poder ausentar-se de Inglaterra durante algum tempo “devido a certos compromissos de negócios a que era necessário comparecer”. “O seu plano é fazer uma viagem à Alemanha, e depois — creio que os seus planos são ainda um pouco indefinidos por agora, mas ele comunicará consigo mais detidamente, logo que tenha formulado projetos mais definidos”, explicou Regardie. Na opinião de Steffen Dix, estes “compromissos” seriam uma mulher que Crowley tinha conhecido num jantar em casa do pintor Hans Steiner, que vivia em Berlim. Esta alemã, Hanni Larissa Jaeger, por quem Crowley se deixou cair de amores, viria a desempenhar um papel fundamental nos acontecimentos que levariam ao “Mistério da Boca do Inferno”.
Crowley, que voltou ainda a insistir na viagem, parecia genuinamente interessado em manter contacto com Pessoa. O português, por seu lado, parecia não ter qualquer vontade de se encontrar com ele. A uma carta 29 de maio, seguiu-se um silêncio de três meses, quebrado a 28 de agosto, quando Fernando Pessoa recebeu um inesperado telegrama que anunciava que o mago inglês chegaria a Lisboa em breve, no paquete inglês Alcântara. “Por favor encontrar”, dizia a mensagem. “Provavelmente terá sido um choque e uma surpresa, pois Fernando Pessoa não tinha recebido qualquer carta desde 19 de maio”, comentou Luís Miguel Rosa Dias, sobrinho de Pessoa (era filho de Henriqueta Madalena) na primeira edição da correspondência com Crowley, publicada em 2001 e reeditada em 2010. À data da chegada do telegrama, tinham sido trocadas apenas sete cartas.
90 anos depois da chegada de Aleister Crowley a Lisboa, continuam a existir dúvidas quanto aos motivos que levaram o inglês, então com 55 anos, a decidir tão abruptamente embarcar num navio rumo a Portugal, um país onde nunca tinha estado e onde não conhecia ninguém além de Pessoa. Como apontou Steffen Dix no posfácio da sua edição de O Mistério da Boca do Inferno, o interesse de Crowley em conhecer Pessoa ao vivo era bem evidente. Era “possível que tivesse em mente a fundação de uma espécie de sucursal de uma das suas ordens secretas em Lisboa”, disse, uma hipótese já apontada por outros autores. Porém, “o facto de o próprio Pessoa ter sido apanhado desprevenido deixa interrogações quanto ao momento escolhido. Pode ponderar-se a hipótese de a viagem ter permitido ao inglês ocultar alguns problemas pessoais”, nomeadamente as dificuldades financeiras da Mandrake Press, que acabaria por ser extinta nesse mesmo ano, o triste estado em que se encontravam alguns dos seus amigos e as constantes discussões com a mulher, a nicaraguense Maria Teresa Ferrari de Miramar, que teria problemas psiquiátricos e alcoólicos. A 25 de agosto, Crowley escreveu no seu diário: “Londres é infernal. Cada um deprimido como antes (…) Cada vez com mais vontade de ir para Portugal no dia 29”.
Capítulo II. A “Besta” e o “Monstro” desembarcam em Lisboa
A “Grande Besta” chegou a Lisboa na tarde de 2 de setembro, com um dia de atraso devido ao denso nevoeiro que se fazia sentir na zona de Vigo, na Galiza. Vinha acompanhado pelo “Monstro”, a sua jovem amante alemã, Hanni Larissa Jaeger. Os seus nomes, idades e ocupações ficaram registados no livro de bordo do paquete Alcântara. Pouco se sabe sobre Hanni. Nascida na Alemanha, viveu durante um período nos Estados Unidos da América, para onde a família emigrou em 1924, obtendo assim a nacionalidade norte-americana. Voltou depois para Berlim, sendo apenas certo que se encontrava na cidade a 30 de abril de 1930, data em que o mago inglês jantou em casa de Steiner, para quem servia de modelo, e a conheceu. Hanni teria ambições de se tornar artista. O relacionamento entre os dois terá começado nessa altura, tendo a jovem partido com Crowley para Inglaterra e dali para Portugal. Separaram-se não muito tempo depois, em outubro de 1931, quando o “Monstro” desapareceu subitamente sem deixar rasto. Hanni Jaeger matou-se alguns anos mais tarde, a 19 de março de 1934, no Hotel Alhambra, em Palma de Maiorca.
O casal foi recebido no cais por Fernando Pessoa (pelas 15h35, de acordo com Crowley), que terá ficado impressionado com Hanni, cuja beleza e sexualidade desprendida terão contrastado fortemente com a conservadora sociedade lisboeta. No diário da sua estadia em Lisboa, divulgado pela primeira vez por Marco Pasi em 2012, Crowley descreveu Pessoa como um “homem muito simpático”. A “Princesa de Jade” (outra das alcunhas de Hanni) também terá gostado dele. Lisboa, por outro lado, causou a pior impressão possível no mago: “Lisboa, a julgar pelo barulho, é uma espécie de Grande Londres. Como uma fábrica de caldeiras com todos os seus operários presos na maquinaria. Esquálida, mal pavimentada, suja, estreita, enfadonha. Como um super-rádio num café: literalmente, um inferno de barulho”. Crowley estabeleceu-se primeiro no Hotel de l’Europe, na Praça Luís de Camões, mudando-se no dia seguinte para o Hotel Paris do Estoril, mais do seu agrado: “Uma praia perfeita (…) O clima parece ser o que a Riviera queria ter, mas não tem”, anotou no diário, aproveitando para se queixar mais uma vez da capital portuguesa: “Deus tentou acordar Lisboa uma vez — com um tremor de terra; desistiu depois de perceber que não valia a pena”.
Apesar de a viagem a Portugal ter acontecido por causa de Fernando Pessoa, o poeta só se terá encontrado com Aleister Crowley três vezes — uma delas para o receber no cais lisboeta. A escassez de encontros ajuda a dar força à ideia de que Pessoa não estava assim tão entusiasmado com a visita do inglês. O poeta parece, aliás, ter tentado esquivar-se o mais possível a um convívio direto com Crowley. É isso que dá a entender um bilhete enviado por Hanni: “Que lhe aconteceu? Tivemos tanta esperança de o ver na semana passada. Vamos a Lisboa, na segunda-feira, no comboio das 14h07. Poderá encontrar-nos na estação ou na [Agência] Cook um pouco depois?”, perguntou-lhe a alemã a 14 de setembro. Não se viam desde 7, quando ela, Crowley e Pessoa almoçaram no Estoril. Na resposta, enviada três dias depois, o poeta explicou-lhe que ainda estava “em tratamento” e que teria por isso de adiar um novo encontro. Desconhece-se que tratamento seria este. Seria mais uma desculpa?
Depois disso, sabe-se com certeza que Fernando Pessoa se encontrou com Crowley em Lisboa, a 18 de setembro, mas Hanni não estava presente. Poderá, no entanto, ter havido um quarto encontro, embora, até hoje, não tenham sido encontradas provas disso. No dia 9, Crowley deslocou-se a Lisboa com Hanni para ir buscar algumas encomendas postais que iam chegar num barco da Royal Mail Steam Packet Company. Almoçou por 400 escudos e conheceu Raul Leal, um excêntrico escritor português que tinha participado no número dois da revista Orpheu e que tinha estado envolvido, na década de 1920, no escândalo da chamada “Literatura de Sodoma”, que envolveu António Botto e o próprio Fernando Pessoa. Com fortes tendências para o misticismo (acreditava ser a reencarnação do profeta Henoch), Leal ficou muito entusiasmado com algumas passagens de Confessions que Pessoa lhe traduziu (tinha poucos conhecimentos do inglês, mas falava fluentemente francês) e decidiu escrever a Crowley, com quem chegou a trocar algumas cartas esperando ser iniciado por este durante a sua passagem pela capital portuguesa. Apesar de o mago não ter gostado do autor de Sodoma Divinizada (“Não gosto dele. Há alguma coisa verdadeiramente errada em relação a ele”, escreveu no seu diário), iniciou-o, na noite de 9, nos mistérios da sua ordem esotérica. Este ritual iniciático terá ocorrido no andar da Rua das Salgadeiras, no Bairro Alto, onde Leal morava.
De acordo com Raul Leal, Fernando Pessoa terá estado na sua casa para preparar o encontro com Crowley, mas não se sabe se assistiu à iniciação. Outra questão que permanece, como apontou Marco Pasi no artigo da Pessoa Plural onde deu a conhecer o diário de Aleister Crowley, é se Hanni também terá estado na cerimónia. O que é certo é que, um dia depois da iniciação de Leal, Pessoa escreveu um poema sobre uma figura feminina, “alta, de um louro escuro”, que alguns autores têm associado à jovem alemã. O texto, que o poeta datou de 10 de setembro, termina dizendo:
“Apetece como um barco
Tem qualquer coisa de gomo.
Desejo, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?”
Capítulo III. O desaparecimento de Hanni, a “outra Boca do Inferno” e a partida de Crowley
A 17 de setembro, depois de uma noite de magia sexual (cuja prática estaria por esta altura a assumir “proporções cada vez mais descontroladas”, considerou Dix) e do ataque de histerismo que se seguiu (que obrigou à intervenção do gerente do Hotel Paris e à mudança do casal para o Hotel Miramar), Hanni desapareceu subitamente, deixando apenas duas linhas escritas a lápis, que diziam “volto já”. Preocupado, Aleister Crowley escreveu nesse dia a Pessoa pedindo-lhe que lhe ligasse assim que pudesse. No dia seguinte, ainda sem notícias dela, Crowley regressou ao l’Europe em Lisboa e encontrou-se, durante a tarde, com Pessoa. Foram à polícia e o poeta apresentou o caso ao segundo comandante, o major Joaquim Marques, de quem era amigo, pedindo-lhe que fizesse os possíveis para encontrar a alemã. O inglês registou esse encontro no diário: “Com Pessoa a tarde inteira. Vi o segundo comandante da polícia”. A 19, ainda sem sinais de Hanni, confessou: “Não vou conseguir ultrapassar isto — a não ser que ela volte”.
A “Princesa de Jade” regressou durante a tarde para informar Crowley de que ia partir na manhã seguinte. Ia embarcar no S.S. Werra, da companhia Lloyd’s, do norte da Alemanha, rumo a Bremen, onde apanharia um comboio para Berlim. Tinha-se encontrado com o cônsul norte-americano em Lisboa, Lawrence S. Armstrong, que a tinha aconselhado a voltar para casa. O mago inglês não ficou contente, mas não teve outro remédio se não aceitar a decisão irrevogável de Hanni. Na data da sua partida, 20 de setembro, mudou-se para o Hotel Europa, em Sintra, onde terá passado pelo menos um dia e de onde escreveu à mulher a pedir o divórcio que nunca chegaria a acontecer. A 21, registou no seu diário: “Desenvolvi um plano para utilizar o cenário local — ver 12 de setembro”. Esta entrada, que dá conta do nascimento da ideia para o seu famoso desaparecimento na Boca do Inferno, conhecido local de suicídios, parece confirmar a teoria de que teria sido motivado pela partida da sua amante. Na opinião de Marco Pasi, poderá, no entanto, não ser exatamente assim. No artigo publicado no número um da Pessoa Plural, o investigador defendeu que a ideia do suicídio forjado poderá ser bem anterior.
Uma das narrativas que tenta explicar o “Mistério da Boca do Inferno” diz que foi depois do embarque de Hanni, durante um passeio em Cascais, que Aleister Crowley se lembrou de encenar a sua morte. Esta versão dos factos tem por base uma alegada passagem do seu diário, que aparece citada na biografia de John Symons: “Decidi fingir um suicídio para chatear a Hanni. Combinar os detalhes com Pessoa”. Esta citação nunca tinha sido questionada até 2012, quando Pasi publicou pela primeira vez as notas pessoais de Crowley referentes à sua passagem por Portugal e constatou que esta não existe. Além disso, a única referência que existe à Boca do Inferno é de 12 de setembro e diz respeito a um passeio que o mago fez com a “Princesa Jade”, o que desde logo lança por terra a teoria de que tudo teria surgido no dia 21. Esta “pequena descoberta”, como lhe chamou Pasi, modifica ligeiramente a nossa compreensão dos acontecimentos. “Sem esta citação, torna-se menos evidente que o caso do falso suicídio foi sobretudo o resultado da relação tensa de Crowley com Hanni.” Por outro lado, é mais difícil dizer porque é que Crowley decidiu fingir a sua própria morte e convencer Fernando Pessoa a embarcar na aventura.
O que parece ser certo é que esta não foi a primeira vez que Aleister Crowley pensou em fazer de conta que tinha morrido. De acordo também com Marco Pasi, Crowley teria pensado nisso pelo menos duas vezes antes e sempre em alturas complicadas da sua vida. “Em agosto de 1923, quando estava em Tunes depois da expulsão [pelo governo fascista de Mussolini] de Itália [onde tinha estabelecido em 1920, em Cefalù, na Sicília, uma comunidade de seguidores], teve a ideia de organizar um falso suicídio modelado no mito de Empédocles, com o objetivo de chamar a atenção pública para as medidas ‘injustas’ tomadas contra ele pelo governo italiano e protestar contra os ataques da imprensa cor-de-rosa britânica [que o tinha declarado ‘o homem mais malvado do mundo’].” Diz que a lenda que Empédocles, filósofo pré-socrático e o criador da teoria dos quatro elementos (ar, fogo, terra e água), morreu ao atirar-se do monte Etna para que acreditassem que o seu corpo tinha desaparecido e que se tinha tornado imortal como os deuses. Esta ideia não terá saído da cabeça do mago, já que, em março de 1929, quando estava prestes a ser expulso de França por causa da sua conduta libertina, tentou convencer o jornalista Francis Dickie a ajudá-lo a forçar o seu suicídio. Este recusou-se a fazê-lo.
Crowley terá regressado a Lisboa a 22 de setembro. Foi visto a andar no Bairro Alto na companhia do porteiro do l’Europe, um suíço natural de St. Galen (e anotou isso mesmo no seu diário). Deixou Portugal no dia seguinte, num Sud-Express rumo a Paris. Os planos para o seu falso suicídio terão, assim, sido combinados com Pessoa entre os dias 21 e 22. Segundo as suas próprias notas, saiu de Lisboa pelas 11h30, passando a fronteira em Vilar Formoso pelas 19h. Depois de atravessar França, chegou a Berlim no dia 25, pelas 6 da tarde, para se reencontrar com o “Monstro”.
Capítulo IV. Um inglês desaparece e deixa uma cigarreira “exótica” e uma carta alucinada
A 27 de setembro, quando Aleister Crowley já se encontrava confortavelmente instalado em Berlim, saiu no Diário de Notícias uma notícia que dava conta do desaparecimento de Lisboa do “célebre escritor inglês”, “deixando na ‘Boca do Inferno’ uma carta misteriosa e alucinada”. Esta foi a primeira de várias peças jornalísticas publicadas em Lisboa sobre o estranho caso, que foi sendo alimentado pelo jornalista Augusto Ferreira Gomes com a ajuda de Fernando Pessoa. Um dos amigos mais próximos do poeta, Ferreira Gomes foi uma personagem-chave no desenrolar dos acontecimentos que se seguiram à partida de Crowley para a Alemanha. Foi o jornalista do Diário de Notícias que, num golpe de sorte, encontrou, na tarde de 25 de setembro “na ‘Boca do Inferno, junto à abertura conhecida pelo nome de ‘Mata Cães’”, a carta de suicídio de Aleister Crowley. Pelo menos, era isso que ele dizia.
Na curta peça de 27 de setembro, contava-se que o “camarada na imprensa Augusto Ferreira Gomes”, de visita ao local, tinha encontrado, na tarde de 25, um “papel que estava à beira do grande corte na rocha que fica à espera”. “Aproximando-se, viu que se tratava de uma carta”, relatou o jornal lisboeta. O bilhete, escrito em papel timbrado do Hotel de l’Europe, encontrava-se sob “uma curiosa e extraordinária cigarreira”. Pegando nos objetos, o jornalista “verificou que o envelope estava endereçado a uma senhora estrangeira, tendo uma indicação em inglês, que queria dizer: ‘Queira enviar’”. A senhora era Hanni Jaeger e, como Ferreira Gomes veio a descobrir ao dirigir-se ao l’Europe, tinha estado hospedada em Lisboa com o “escritor Edward A. Crowley”. “Ora, este nome evocou-lhe imediatamente o de Edward Alexander Crowley, conhecido em todo o mundo pelo nome de Aleister Crowley e como um dos homens mais estranhos dos últimos tempos – chefe, durante a guerra, da contraespionagem inglesa na América, poeta notável, alpinista, pintor, caçador de feras, químico; que se diz mago e astrólogo e… ‘o pior homem de Inglaterra’ – segundo as campanhas recentes dos jornais ingleses e especialmente do grande semanário londrino John Bull”, continuou o Diário de Notícias. Ferreira Gomes soube no hotel que Crowley tinha partido no dia 23, pelas 11h, rumo a Sintra, onde não se encontrava hospedado em nenhum lugar.
A carta deixada pelo mago estava, segundo o jornal, “escrita num tom breve, embora alucinado e acompanhada de sinais misteriosos”, “incompreensíveis”. Dirigida a “L.G.P.” e assinada “Tu Li Yu”, dizia, em inglês:
“Do que se trata?”, questionava o jornal, informando que o “camarada Ferreira Gomes” a ia entregar à polícia “para que esta investigue”, o que acabou por acontecer nessa mesma tarde. Foi o próprio diretor da Polícia de Investigação Criminal que ouviu “atentamente” o relato do jornalista, informando-o de seguida que Crowley tinha saído pela fronteira de Vilar Formoso no dia 23 de setembro. “Estava aparentemente o caso arrumado. Se Crowley saíra é porque não estava cá”, pensou Ferreira Gomes para os seus botões. Enquanto isto, Fernando Pessoa aparecia na esquadra. “Sabendo pelo Diário de Notícias do sucedido, vinha dar algumas explicações”, continuou Ferreira Gomes numa reportagem publicada no suplemento de fim de semana Notícias Ilustrado, a 10 de outubro (mês em que Pessoa levou a cabo o maior número de esforços para divulgar a história do alegado desaparecimento do mago inglês).
O que o poeta verdadeiramente pretendia era fornecer dados que alimentassem o caso e permitissem a abertura de uma investigação. Relatando como tinha iniciado o contacto com Aleister Crowley por causa do horóscopo publicado na sua autobiografia, “em novembro do ano passado”, Pessoa explicou que o mago tinha decidido sair de Inglaterra “por motivos de saúde”, tendo escolhido “Portugal — ou, mais propriamente, a Costa do Sol — para estância de repouso”. Em momento algum da correspondência trocada entre os dois é referida a necessidade de Crowley descansar. Ainda assim, o relato da sua chegada a Lisboa feito por Pessoa ao Notícias Ilustrado (que terá sido ele próprio a escrever, como indicam alguns documentos do seu espólio) correspondeu mais ou menos à verdade. Segundo contou à polícia e ao jornal, encontrou-se com Crowley e com Hanni “só duas vezes depois da chegada — uma vez no Estoril, no dia 7; outra vez em Lisboa, no dia 9. Depois do dia 9 não tornei a ver Miss Jaeger”, declarou. Esta versão, ainda que não seja de fiar, parece confirmar a versão de Raul Leal de que terá sido o próprio Pessoa a apresentá-lo ao mago inglês no dia da sua iniciação, já que não existe registo no diário de Crowley de um encontro nesse dia.
Pessoa relatou o súbito desaparecimento de Hanni Jaeger — que a polícia sabia ter saído de Portugal a 20 de setembro — e como Crowley estava preocupado com a “hereditariedade carregadíssima” da jovem, que tinha uma “tendência proclamada para o suicídio e a convicção” de que estava a ser “perseguida por um mago negro chamado Yorke”. Na versão do Notícias Ilustrado, o escritor português despediu-se de Crowley, que ia passar uns dias a Sintra, a 23 de setembro, à porta do café Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço. Nunca mais lhe falou, mas voltou a vê-lo, a ele “ou ao seu fantasma”, na manhã de 24, a “dobrar a esquina do Café La Gare para a Rua 1.º de Dezembro”. Nesse dia, mas à tarde, voltou a vê-lo “ou o seu fantasma” quando atravessava a Praça Duque da Terceira. O mago ia a “entrar, com outro indivíduo para a Tabacaria Inglesa. Em nenhum dos casos havia tempo, ou até razão, para lhe falar, nem estranhei, realmente, que viesse a Lisboa um indivíduo que está em Sintra”, admitiu Pessoa.
“No dia 25, passando pelo Hotel de l’Europe, perguntei ao porteiro se o sr. Crowley efetivamente estava em Sintra. Respondeu-me que sim, e que se demorava até ao fim de semana. Disse-lhe que tinha visto o sr. Crowley, no dia anterior, nas imediações da Estação do Cais do Sodré; a isto o porteiro respondeu textualmente, ‘é que ele deve ter ido ontem ao Estoril com um amigo que tem em Sintra’. Isto, como é de ver, confirmou a minha impressão — de cuja justeza não tinha razão para duvidar — de ter visto Crowley duas vezes no dia 24. A Polícia Internacional diz que ele passou a fronteira no dia 23. Se assim é, é assim; e nesse caso não foi a ele que eu vi no dia 24.” Fernando Pessoa recusava-se, porém, a aceitar que tudo se tratava de uma “mistificação” por causa de “uma circunstância contida na carta”, escrita na caligrafia do mago inglês e colocada debaixo de uma cigarreira que lhe pertencia, como ele próprio comprovou (a cigarreira seria, na verdade, do cunhado do poeta, Caetano Dias, que a teria comprado em Zanzibar).
Foi a Pessoa que coube fazer uma interpretação da carta de Crowley que, por estar repleta de símbolos astrológicos, só podia ser compreendida por um verdadeiro astrólogo. O poeta, como ele próprio admitiu no Notícias Ilustrado, encaixava-se nesta descrição. “Explico até onde compreendo, e deixo o importante para o fim”, começou por dizer, sugerindo de seguida que “L.G.P.”, a quem a carta era dirigida, devia tratar-se do “‘nome místico’ de Miss Jaeger, ou as iniciais dele. ‘Hisos’ também não sei o que é, mas, também pela colocação, suponho ser uma ‘palavra mágica’, entendida só pelos dois. ‘Tu Li Yu’ sei o que é, por Crowley uma vez me ter falado nisso: é o nome de um sábio chinês, que viveu uns três mil anos antes de Cristo, e de quem Crowley dizia ser a encarnação presente”. Nada disto era verdade, à exceção de “L.G.P.”, que seria de talvez o nome dado a Hanni por Crowley. “Hjsos” seria a sigla de “Hanni Jaeger Save Our Souls” (“Hanni Jaeger salve as nossas almas”) e a assinatura, escrita na vertical, uma piada — uma expressão homófona de “tooley-oo”, gíria londrina que quer dizer algo como “tchauzinho”. O mais importante na nota encontrada na Boca do Inferno era a data: Ano I4, em Balança; isto é, 18 horas e 36 minutos de 23 de setembro, ou seja, depois de Aleister Crowley ter alegadamente atravessado a fronteira. O poeta português afastou desde logo a hipótese de a datação ser falsa, porque “nenhum astrólogo, por motivos que não é lícito revelar, ousaria fazer, é falsear uma data escrita em sinais dos astros”.
Apesar de pouca coisa fazer sentido nesta história, a polícia portuguesa terá dado importância à carta encontrada por Augusto Ferreira Gomes, pois, como referiu Steffen Dix na sua edição de O Mistério da Boca do Inferno, “no verso da cópia (o destino do original é desconhecido) pode ver-se um carimbo oficial, que indica que o documento foi apresentado para análise à Comissão de Censura”. Pelo menos de início, seria fácil concluir que Crowley teria, de facto, cometido suicídio, já que dizia na carta à ”Princesa de Jade” que não conseguia continuar a viver. “Além do mais, o cadáver não fora encontrado, algo que de resto, não surpreendia, dadas as circunstâncias físicas da Boca do Inferno. Tudo apontava, pois, para um suicídio”, frisou Dix. Mas a falta de evidências terá acabado por ditar o fim da investigação. Apesar de não se ter conservado o processo, não é difícil de imaginar que a polícia portuguesa terá eventualmente chegado à conclusão que Crowley não estava morto, mas vivo, de boa saúde e a viver em Berlim.
Numa última tentativa de evitar que a história caísse no esquecimento, Fernando Pessoa publicou, no número inaugural do Girassol, em dezembro de 1930, uma entrevista feita a si próprio. Numa carta datada de 13 de fevereiro de 1931, o poeta explicou a Aleister Crowley (que ia mantendo informado sobre as notícias que saíam em Portugal sobre o seu alegado suicídio) que tinha sido abordado pelo semanário para uma conversa “sobre qualquer aspeto que pudesse existir”. “Havia possivelmente uma novidade — a hipótese de você ter sido assassinado. Nela baseei a entrevista, que redigi na totalidade, para evitar a habitual baralhada que os jornalistas e tipógrafos fazem de uns para os outros.” É curioso notar que, à medida que Pessoa foi trabalhando na história do desaparecimento de Crowley, esta foi-se tornando mais complexa e pormenorizada, chegando até a ser transposta para o universo literário.
A possibilidade de um homicídio tinha sido avançada pelo diário inglês Oxford Mail (a história teve alguma repercussão em Inglaterra e França) que, a 15 de outubro, publicou uma pequena notícia intitulada “Aleister Crowley ‘assassinado’. ‘Revelações espíritas a um médium londrino’” que Fernando Pessoa citou no Girassol: “Num quarto pequeno e mal iluminado em Bloomsbury, na noite passada, o sr. A.V. Peters, médium londrino, entrou em transe para se obterem algumas indicações sobre o paradeiro do sr. Aleister Crowley, escritor e mago. (…) O sr. Peters declarou que, durante o transe, lhe tinha sido indicado que o sr. Crowley estava morto, e que ‘tinha sido empurrado dos rochedos abaixo por um agente da Igreja Católica Romana’. ‘Os católicos já anteriormente tinham atentado contra a vida do sr. Crowley’, disse o sr. Peters, ‘e ele estava à espera de ser atacado’”.
Questionando-se a si próprio sobre o que se podia concluir da nota do Oxford Mail, Pessoa respondeu que “nada”, mas apontou que era curioso que esta história surgisse quando não se tinha chegado a conclusão nenhuma. No Girassol, o poeta garantiu que continuava a não haver notícias do paradeiro de Aleister Crowley. Tanto o seu secretário, que estava em Inglaterra, como um amigo próximo, que estava na Alemanha, desconheciam onde se encontrava o mago inglês. Ambos pareciam não estar convencidos do suicídio, “mas também” pareciam “não saber” do que é que haviam “de estar convencidos”. Um outro dado interessante acrescentado por Pessoa neste relato foi o da presença em Lisboa de dois investigadores ingleses. Segundo o escritor, um deles chegou logo a 29 de setembro, apenas dois dias após a publicação da primeira notícia do desaparecimento de Crowley no Diário de Notícias. “Apareceu aqui, neste escritório, um deles; veio com um disfarce verbal transparente, tanto que não só eu, mas um amigo meu, inglês, que por acaso aqui estava, imediatamente desconfiamos do ‘professor de línguas’ que nos havia aparecido. Mais tarde soube, de ótima fonte, que este não era um polícia oficial, mas um investigador particular, que aqui estava tratando de outro assunto, e recebeu instruções especiais para tratar deste. Isso explica o seu aparecimento imediato às notícias dos jornais. E também soube mais tarde, por um lapso verbal de um inglês meu amigo, e neste caso informador voluntário, que mais tarde viera aqui um outro indivíduo — esse sem dúvida oficial — a investigar o mesmo assunto”, revelou Pessoa.
Este pormenor é interessante porque, no espólio pessoano, existem fragmentos de um policial nunca terminado com o título The Mouth of Hell, isto é, A Boca do Inferno, que Steffen Dix reproduziu integralmente na sua edição da correspondência de Fernando Pessoa e da “Grande Besta”. A novela, que terá sido escrita em setembro de 1930, descreve as investigações que um detetive privado inglês, cujo nome nunca é referido, conduziu em Lisboa, Estoril, Cascais e Sintra para descobrir o que de facto aconteceu ao mago inglês nos últimos dias da sua estadia em Portugal. “Os fragmentos testemunham um alto sentido de ironia e de humor, dando também o espelho preciso do prazer de mistificação — ou, ainda melhor, de embuste — que Pessoa partilhou, indiscutivelmente, com Aleister Crowley, sobretudo se atentarmos a que os dois planearam juntos, e, detalhadamente, o falso desaparecimento de Crowley na Boca do Inferno”, escreveu Dix. Mais do que uma simples brincadeira, Pessoa parecia estar interessado em capitalizar a história do “Mistério da Boca do Inferno”. No verso de uma cópia da carta de suicídio, escreveu em inglês: “Esta história deverá render 200 libras, apenas em direitos americanos. Inventar uma história romanceada”.
Capítulo V. A última carta e o fim da história
O interesse de Fernando Pessoa no “Mistério da Boca do Inferno” começou a diminuir em finais de 1930. A 4 de janeiro de 1931, Crowley, que lhe escreveu a desejar um bom ano novo, lamentou-se das poucas notícias, de não ter recebido a prometida novela policial e pedindo “alguma astrologia”. Só conseguiu as primeiras, mas com um mês de atraso — a 10 de fevereiro, Pessoa escreveu-lhe admitindo o silêncio e esclarecendo que este não se devia a doença, como o mago tinha sugerido na carta anterior, mas a um certo estado de espírito: “Sim, há algum tempo que nenhumas notícias minhas gotejam até Berlim por entre os dedos da Sorte; ela mantém-nos bem fechados, por vezes. Tem sido muito avara comigo ultimamente. Não, doença não é a explicação, a não ser que seja um ermo doente uma mente esquecida. Nestes últimos meses pareço ter estado adormecido algures no interior de mim mesmo, e gostaria de saber de onde me vem isso”. A 13, voltou a escrever, para dar conta a Crowley da entrevista ao Girassol que tinha esquecido de mencionar na carta anterior. A esta missiva, seguiu-se um novo silêncio de oito meses, sempre com o inglês a pedir notícias e a lamentar-se da falta delas.
A última carta de Fernando Pessoa ao “homem mais malvado do mundo” é de 5 de outubro de 1931. Pessoa justificou o atraso na resposta e no envio de um horóscopo com a “recente ausência de mim próprio em que tenho vivido, desde a quadratura do Sol para o Ascendente” que, em 1929, lhe abriu “um período” que estava então a atingir a sua “plenitude, pela conjugação do Sol com Saturno em coincidência com a conjugação de Marte com o Ascendente”. Sobre o número do Girassol, que o mago lhe tinha pedido, Pessoa explicou que esgotou e que nem tinha conseguido ficar com um exemplar para si; já sobre a tradução de “Hino a Pã”, um poema de Crowley que estava para sair na Presença, disse que foi enviada “bastante tarde para o número que saiu em maio; o número seguinte foi o do aniversário e publicaram apenas coisas de antigos colaboradores”. Prometia, no entanto, enviar um exemplar da revista literária de Coimbra assim que o texto fosse publicado, em data ainda por acertar por causa da sua edição “irregular”. No final, pediu ao mago para lhe escrever “sempre que possa”, porque gostava de “receber notícias”. Quem lê a carta fica, no entanto, a com a ideia contrária. Como comentou Luís Miguel Rosa na sua edição das cartas, “dá ideia de já ter desistido de tudo e estar a acabar com todo este episódio”.
Esta foi a última carta de Pessoa a Crowley. O inglês ainda lhe respondeu, a 29 de novembro de 1931, lamentando que o poeta não tivesse dado “seguimento” à carta de 5 de outubro e que não lhe tivesse enviado o prometido horóscopo, pois a sua vida não corria pelo menor. “Anseio por saber se ainda vou parar a um asilo para pobres lunáticos – como foi a minha mulher em meados de julho.” Tal como Rose EdithKelly, primeira mulher de Crowley, também Maria Teresa acabou num manicómio. A nicaraguense entrou numa espiral de alcoolismo e paranóia quando o marido iniciou o relacionamento com Hanni Jaeger, entretanto desaparecida. Os problemas de que Crowley se queixava nas últimas mensagens a Pessoa, manter-se-iam até ao final da sua vida. Pobre, com poucos amigos e ainda menos seguidores, regressou posteriormente a Inglaterra, onde morreu a 1 de dezembro de 1947, aos 72 anos. Fernando Pessoa morreu em 1935.
Aleister Crowley não terá obtido resposta a esta última carta, terminando aqui uma estranha e breve amizade que durou cerca de dois anos. Durante esse período, Pessoa recebeu 15 missivas assinadas por Crowley. Este recebeu apenas 11. Do espólio pessoano, consta ainda uma outra mensagem, recebida em março de 1932 — uma circular que, como apontou Luís Miguel Rosa, Crowley, “como mestre Thérion”, enviou “a todos os discípulos-irmãos” de uma das suas ordens, a A∴A∴. A carta terminava com o lema da Thelema, a doutrina religiosa criada por Crowley: “Love is the law, law under will”. “Amor é lei, amor segundo a vontade”.
Créditos dos documentos: Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio n.º 3