Karim Benzema chegou a este fim de semana sem ter marcado golos nos últimos cinco jogos do Real Madrid em que participou, entre Liga dos Campeões e Liga espanhola. Na verdade, Karim Benzema chegou a este fim de semana sem ter marcado desde o fim de agosto, há quase dois meses, em nenhuma competição. Este fim de semana, porém, não era um qualquer e Karim Benzema entrou no relvado do Santiago Bernabéu com a certeza disso mesmo.
Contra o Barcelona, no primeiro El Clásico da temporada, Benzema abriu o marcador ao aproveitar uma defesa incompleta de Ter Stegen e mostrou que, nos dias importantes, continua a ser ele o abono de família do Real Madrid. Mais do que isso, quase ficou a ideia de que Benzema se lembrou de que esta segunda-feira era dia de Bola de Ouro — e quis recordar o universo do futebol de que não existia sequer uma alternativa que não ele próprio na hora de atribuir o prémio de melhor jogador da época passada.
No Théâtre du Châtelet, em Paris, Karim Benzema foi coroado o melhor jogador do mundo. Num ano em que Lionel Messi nem sequer foi nomeado e em que Cristiano Ronaldo ficou em 20.º, perdendo o estatuto de melhor português para Rafael Leão, o jogador do Real Madrid atingiu o degrau mais alto da carreira a dois meses de completar 35 anos. O mundo nunca quis saber dele; agora, o mundo é dele.
Se a carreira de Benzema fosse um filme, com toda a certeza que começava com o típico som da fita de uma cassete acompanhado pelo habitual “sim, sou eu, provavelmente estás a pensar em como é que acabei nesta situação”. No fundo, todos pensamos em como é que Benzema chegou até aqui. Como é que Benzema, aos 34 anos e sendo uma espécie de patinho feio na última década, chegou até à Bola de Ouro. Mas nem sequer é assim tão difícil de compreender.
O avançado francês aterrou no Real Madrid no verão de 2009, precisamente na janela de mercado que levou Cristiano Ronaldo, Kaká, Xabi Alonso, Arbeloa e Raúl Albiol para os merengues. A nova geração de galácticos de Florentino Pérez tinha começado e Benzema, com apenas 22 anos, deixava para trás o Lyon, o clube de sempre, para dar o primeiro grande salto da carreira. Ou, como acabou por acontecer, o grande salto da carreira.
A adaptação demorou e precisou de ajustes, compromissos e dedicação. Benzema teve dificuldades na hora de aprender a língua espanhola, teve dificuldades na hora de encaixar num balneário cosmopolita que contrastava com a humildade do Lyon e teve dificuldades na hora de assumir o natural aumentar da exigência. Na altura, José Mourinho chegou a dizer que teria de mudar o início dos treinos diários para o meio-dia se quisesse que o francês já estivesse completamente acordado no arranque da sessão. Como motivação, porém, Benzema tinha um ídolo: Ronaldo, o Fenómeno.
“Vim jogar para aqui porque ele jogou aqui. Os meus amigos dizem-me que temos parecenças, como rematar com os dois pés. Para um avançado, isso é uma opção extra. Se puderes rematar os dois pés, os defesas nunca sabem para onde é que vai a bola. Ainda vejo vídeos dele antes de alguns jogos, continua a inspirar-me”, confessou o avançado francês em 2014, quando igualou os 104 golos que Ronaldo marcou pelo Real Madrid. Oito anos depois, leva 328, sendo o segundo melhor marcador da história do clube atrás de Cristiano Ronaldo.
Os primeiros anos em Madrid, como se sabe, foram complexos. Benzema não era a opção primordial para o ataque, aparecendo sempre na sombra de Ronaldo e também de Higuaín, e a falta de entrega nos treinos associada a uma forma física oscilante não contribuía para uma inversão dessa lógica. A passagem de José Mourinho pelo Santiago Bernabéu acabou por coincidir com uma mudança de atitude do jogador — que, nos primeiros treinos orientados pelo técnico português, só ouvia “bouge ton cul“, algo como mexe o rabo em francês.
Hat-tricks consecutivos, 12 golos, um nome: Monsieur Benzema é o único e Real Mr. Champions
Na antecâmara da temporada 2011/12, aconselhado pelo então selecionador Laurent Blanc e também por Zidane, decidiu dar entrada numa clínica italiana para perder peso e trabalhar no aumento da performance. A decisão revelou-se um sucesso, com Benzema a chegar à pré-época com menos oito quilos e mais massa muscular. Marcou oito golos em sete jogos no período de preparação para a nova temporada e conquistou o lugar como referência ofensiva de Mourinho, que foi elogiado pela transformação do avançado mas que sempre atribuiu todo o crédito e responsabilidade ao francês.
Essa ideia que deixou nos primeiros anos em Espanha — e que só começou a dissipar-se com Mourinho e depois com o sucesso europeu do Real Madrid, que ganhou quatro Ligas dos Campeões em cinco anos — acabou por garantir-lhe a fama de bad boy. Um miúdo francês dos subúrbios de Lyon que até já tinha dito que só jogava por França por motivos desportivos e que, de outra maneira, preferia representar a Argélia onde os pais nasceram. Um rebelde que, em 2010, tinha estado envolvido num escândalo sexual com prostitutas alegadamente menores de idade em conjunto com Ribéry, Govou e Ben Arfa. Um incorrigível; nunca um exemplo.
“Ele era um miúdo quando chegou a Madrid, foi demasiado para ele. Progressivamente, tornou-se um jogador fantástico. Era um bad boy. Um tipo novo, solteiro, sem filhos e sem vida familiar. Mas muito estável e maduro. Pensa sobre o futebol e pensa sobre ganhar, pensa em ser a lenda do clube que já é. Adoro-o e ele sabe disso. Espero ter-lhe dado alguma coisa no tempo que passámos juntos. Foram três anos, acho que lhe dei alguma coisa”, disse Mourinho já depois de deixar os merengues.
Em 2015, porém, toda essa lavagem de alma pareceu cair por terra. Benzema foi detido pelo alegado envolvimento no caso de chantagem a Mathieu Valbuena, companheiro da seleção francesa, e acabou mesmo por ser suspenso pela Federação Francesa de Futebol. “Um grande atleta deve ser exemplar. Se não é, não tem lugar na seleção francesa. Existem tantos miúdos, tantos jovens nos nossos subúrbios que se identificam com os grandes atletas. Eles usam a camisola azul, as cores de França, que são tão importantes nestes momentos”, referiu, na altura, o então primeiro-ministro Manuel Valls.
O avançado francês perdeu o Euro 2016, disputado em casa e onde França perdeu na final com Portugal, perdeu o Mundial da Rússia, que França conquistou, e esteve afastado da seleção durante mais de cinco anos. Nesse período, aproveitou a saída de Cristiano Ronaldo, a quebra de rendimento de Gareth Bale e a ida de Sergio Ramos para o PSG para se tornar a figura maior, o capitão e a cara do Real Madrid. Quando já ninguém se lembrava do caso Valbuena (pelo qual foi mesmo condenado no ano passado) e quando já ninguém imaginava que poderia regressar às convocatórias, Didier Deschamps decidiu chamá-lo para um particular contra o País de Gales e depois para o Euro 2020, de onde saiu com quatro golos em quatro jogos e a Bota de Bronze.
Até que chegamos a 2021/22. Depois de conquistar a Liga das Nações com a seleção francesa, naquele que foi o primeiro título que venceu ao serviço de França, Karim Benzema deu início à melhor temporada da carreira. Com a braçadeira merengue no braço esquerdo e a já característica ligadura na mão direita, ganhou a Liga espanhola, a Supertaça espanhola e a Liga dos Campeões, sendo ainda o melhor marcador e o melhor jogador tanto do Campeonato como da competição europeia.
Marcou 44 golos ao longo de 46 jogos, acrescentando ainda 15 assistências — para efeitos de comparação, a época mais goleadora que tinha registado até aqui tinha sido em 2011/12, o terceiro ano no Real Madrid, quando fez 32 golos. Com essa responsabilidade redobrada com a saída de Ramos e o salto para capitão da equipa, tornou-se a extensão de Carlo Ancelotti dentro de campo e a ligação entre a experiência de Kroos ou Modric e a irreverência de Vinícius ou Rodrygo.
Embora a prestação interna tenha sido notável, com o Real Madrid a sagrar-se campeão espanhol com mais 13 pontos do que o Barcelona, a época de Benzema ficou claramente marcada pela Liga dos Campeões. Os merengues até perderam com o Sheriff na fase de grupos, vencendo as cinco jornadas restantes para ficar no primeiro lugar, e daí para a frente realizaram um registo quase brilhante em que o avançado francês foi crucial.
Nos oitavos de final, na segunda mão contra o PSG, fez três golos em 17 minutos e tornou-se o mais velho de sempre a assinar um hat-trick na Liga dos Campeões. Nos quartos de final, na primeira mão contra o Chelsea, fez mais um hat-trick e marcou mais um golo decisivo já na segunda partida. Nas meias-finais, apontou mais três golos na eliminatória contra o Manchester City. Faltou o golo na final de Paris, contra o Liverpool — mas os 15 que marcou ao longo de toda a competição foram suficientes para o ajudar a ultrapassar Thierry Henry e tornar-se o maior goleador francês de sempre, resgatando também o prémio de Melhor Jogador do Ano para a UEFA.
Bola de Ouro. “Não houve um jogador tão dominante como Benzema”
Com a Bola de Ouro deste ano a dizer respeito à temporada 2021/22 (e não ao ano civil, como acontecia até aqui), dificilmente existiria competição para Karim Benzema. Lewandowski fez mais golos, Mané chegou à final da Liga dos Campeões e venceu a CAN, Mbappé também ganhou a Liga das Nações — mas ninguém fez o que o avançado francês conseguiu fazer.
Agora, Benzema é o melhor jogador do mundo depois de nunca ter ficado sequer no top 3 em anos anteriores. Agora, Benzema é o quinto francês a ganhar a Bola de Ouro depois de Platini, Kopa, Zidane e Papin. Agora, Benzema é o sétimo jogador do Real Madrid a receber o galardão, numa lista que inclui Figo e Ronaldo. Agora, o bad boy chegou onde nunca ninguém achou que poderia chegar.