“Considero um feliz acontecimento para a ciência que um homem como o senhor, que não se limita a recolher e a descrever espécies pertinentes a grupos esquecidos, mas que está atento a questões filosóficas, resida num grupo de ilhas oceânicas”, escreveu a 3 de julho de 1881 o naturalista britânico Charles Darwin ao naturalista português Francisco Arruda Furtado, que vivia na ilha de S. Miguel, nos Açores. A diversidade das espécies que vivem nas ilhas e o facto de se distinguirem tanto das espécies do continente despertou a curiosidade de Arruda, como já tinha despertado a de Darwin. A relação começou com uma carta à qual se seguiram dois anos de troca de correspondência, recomendações e livros autografados. A admiração mútua dos dois evolucionistas, um com 27 anos e o outro com 72, terminou precocemente devido à morte de Darwin.

Arruda Furtado (1854-1887) é um desconhecido para a generalidade dos portugueses, mas não o era para um dos mais importantes cientistas do século XIX, aquele que revolucionou o pensamento da época com a teoria da evolução das espécies e a ideia da sobrevivência dos mais aptos. Para destacar de um dos cientistas portugueses que marcou o panorama científico nacional e internacional desse século, o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac) organizou uma exposição sobre a vida deste açoriano fascinante e autodidata. Até setembro, pode ver os apontamentos de Arruda Furtado nos livros de Darwin, como a “Origem das Espécies” ou a “Viagem do Beagle”, uma reprodução da roupa que pretendia levar na expedição, um “crânio explodido”, uma fava do mar e um sem fim de ilustrações. “[Não queremos que seja] uma exposição demasiado académica e científica sobre a antropologia ou os estudos malacológicos, mas [que seja] mais uma fruição estética que permite chegar à figura”, diz ao Observador David Felismino, coordenador executivo da exposição.

Evolucionista e defensor de Darwin, Arruda Furtado desenvolveu estudos de anatomia comparada para compreender as relações entre espécies e a respetiva distribuição geográfica. A Darwin pediu conselhos e orientação científica para aprofundar conhecimentos e métodos de pesquisa, que rapidamente se prontificou para o ajudar. Mas a rede de contactos, iniciada em 1880, com 26 anos, não se limitava ao evolucionista britânico, tinha mais de 70 correspondentes nacionais e internacionais. Entre eles o biólogo inglês Louis Compton Miall, que se tornou tutor de Arruda, lhe forneceu livros e materiais, e o ajudou a realizar a primeira publicação numa revista científica.

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Arruda, o colecionar autodidata, iniciava assim o percurso de reconhecimento científico e académico a que se seguiram muitas outras publicações. O açoriano começou a ganhar interesse pelas curiosidades da natureza aos 12 anos, mas a motivação não dependeu da escola. No liceu da altura não era dada formação em ciências e Arruda Furtado nunca frequentou o ensino superior. Já na área do desenho teve bons resultados escolares, cujos frutos se viram mais tarde nos numerosos esboços e ilustrações científicas que realizou. “A utilização do desenho como método exploratório e de aquisição cognitiva está, na prática científica de Arruda Furtado, a par da ilustração científica, que, em regra, integra as suas publicações”, lê-se na página dedicada ao naturalista, criada pelo Muhnac.

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Terminado o liceu, Arruda empregou-se na Repartição da Fazenda do Distrito onde fazia cópias de textos, mas era o apelo pelo naturalismo e o interesse pela variedade de espécies que encontrava nas ilhas que mais o fascinava. Por isso não perdeu a oportunidade de aos 22 anos ir trabalhar como escriturário para José do Canto, que tinha um magnífico jardim botânico. Nessa altura e ainda em Ponta Delgada, ajudou Carlos Machado, então reitor no liceu daquela cidade, a montar um museu de história natural na escola. Mas o salto na carreira foram os dois anos de trabalho no Museu Nacional de Lisboa (agora Muhnac).

Detentor do enorme espólio e desejoso de mostrar a obra de um homem que morreu cedo demais, o Museu criou uma exposição dedicada a “Arruda Furtado, discípulo de Darwin que esta sexta-feira se inaugurou. “É uma figura muito importante das ciências biológicas do final do século XIX. Uma figura que merece ser destacada e valorizada”, diz David Felismino, investigador no Departamento de História e Cultura Material da Ciência, do Muhnac. Um valor científico que o próprio Darwin já tinha identificado: “O seu campo de observação é esplêndido e não duvido que a sua investigação será muito válida.”

Apesar de ter morrido muito cedo, aos 33 anos, Arruda Furtado destacou-se pela diversidade dos interesses e dos estudos que realizou e publicou. Fez ensaios sobre o clima e a insularidade. E também se interessou pelas espécies botânicas, em especial pela possibilidade de compreensão da origem das espécies insulares à luz da teoria evolucionista. Na área da antropologia, uma das principais áreas de investigação, dedicou-se tanto ao estudo das medidas cranianas dos habitantes da ilha de São Miguel, nos Açores, como a estudos etnográficos, como a recolha etnolinguística de termos agrícolas micaelenses. O interesse e trabalho na área da etnografia potenciaram os contactos com alguns pensadores da época, como o conterrâneo Teófilo Braga, segundo presidente da República Portuguesa, ou José Leite de Vasconcelos, que além de etnógrafo era linguista, filólogo e arqueólogo.

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Mas a área científica em que mais se destacou foi no estudo de moluscos (malacologia) – grupos a que pertencem caracóis e ameijoas – e foi pelas competências que apresentava nesta tema que foi convidado pelo zoólogo e político português José Vicente Barbosa do Bocage para trabalhar na Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa. O objetivo era que classificasse e reorganizasse a importante coleção de conchas e moluscos do museu, em parte oriunda do Museu Real das Necessidades. Trabalho que conseguiu concluir nos dois anos que esteve em Lisboa. Durante esse período catalogou todos os exemplares, realizou trabalho de investigação e criou catálogos académicos. Mas Arruda também era um divulgador de ciência e teve o cuidado de preparar um guia sobre os moluscos do museu que fosse facilmente acessível ao público – “Guia Popular da Colleção de Mollusco da Secção Zoológica do Museu de Lisboa”.

Morreu cedo demais, em 1887, depois de regressar aos Açores na esperança que os bons ares da ilha o ajudassem a recuperar de uma tuberculose. Deixou muitos trabalhos a meio, muitos inéditos que o Muhnac agora expõe, entre eles alguns manuais que se destinavam ao ensino superior, mas outros para os alunos do liceu. Tinha inúmeros cadernos de campo que o visitante da exposição tem a possibilidade de estudar e folhear em reproduções fiéis (fac-símiles).

Grande parte do espólio atualmente detido pelo Muhnac – mais de 600 desenhos, cerca de 300 documentos e 145 livros – foi cedido pela família do naturalista. “Infelizmente, os espécimes recolhidos por Francisco de Arruda Furtado terão ardido no incêndio da Faculdade de Ciências de 1978, sobrevivendo apenas uma pequena caixa de charutos com conchas”, refere a página dedicada ao malacologista. “Existem, porém, coleções de Francisco de Arruda Furtado no Museu Carlos Machado de Ponta Delgada.”

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A morte precoce também deixou a meio a preparação de duas expedições – uma à Madeira e outras aos Açores. Era tão meticuloso na preparação destas viagens que deixou listas detalhadas de todo o material que iria precisar. Não só o material necessário para a parte de investigação científica e para realizar ilustrações científicas daquilo que observava, mas também a roupa que iria precisar. Roupa para si e para a mulher, que o acompanhava nas saídas de naturalista. O pormenor era tal, que com a ajuda do Teatro Nacional de São Carlos, foi possível recriar parte do guarda-roupa idealizado pelo naturalista.