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RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

O que une Camões aos ciclistas olímpicos: uma dupla de herdeiros de Baco a 20km do Luso

Ao vencer o Ouro, Iuri leitão e Rui Oliveira gritaram "ssssiiiii" contra o deus da própria linhagem. Tudo a partir do velódromo de Sangalhos, na vizinhança da terra que gera desacordos de línguagem.

Prometo que este texto é sobre ciclismo indoor, mas deixem-me começar por um breve parêntesis. Vai assim:

No terceiro canto d’Os Lusíadas, ainda no início do longo discurso diplomático em que Vasco da Gama descreve ao rei muçulmano de Melinde a ilustre história portuguesa  — concentrando-se, por motivos insondáveis, na quantidade de membros do “povo imundo” (VII, 2) decepados pelos portugueses —, o navegador explica que o nome da ditosa pátria amada era “Lusitânia, derivada/ De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo/ Filhos foram, parece, ou companheiros” (III, 21), identificando assim uma linhagem que vem aumentar ainda mais a nossa perplexidade enquanto leitores perante o ódio visceral de Baco contra um povo que seria, afinal de contas, seu herdeiro.

A dupla hesitação de Vasco da Gama (“de Luso, ou Lisa”; “parece”) é justificável, uma vez que o nome deste pretenso deus Luso resulta, como descobriu o camonista José Maria Rodrigues no início do século passado, de um problema de tradução numa passagem de Naturalis Historia, de Plínio, o Velho, onde se tomava por nome próprio o que seria afinal um substantivo. Assim, quando Plínio escreve lusum enim Liberi patris, a palavra “lusum” não seria uma alusão a um putativo filho e companheiro de Baco, como primeiro André de Resende e depois Camões acharam, mas sim a mais um dos jogos de Baco.

Ora, isto para dizer que das duas uma: ou os lusitanos obtiveram o nome de um equívoco ou do ainda mais remoto deus celta Lugh, inventor dos jogos com bola. É esta a nossa sina: há novecentos anos sem sabermos se descendemos do deus da bola, do patrono da alegria inebriada ou de um lamentável engano.

Seja como for, serve isto tudo para falar da dupla composta por Rui Oliveira e pelo mais recente imperador de Viana do Castelo, Iúri Leitão, dupla essa que, como todos sabemos, se formou a treinar no Velódromo Nacional de Sangalhos, a menos de vinte quilómetros — lá está — do Luso.

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Portugal é um país de anti-heróis. Não é, ao contrário do que tantas vezes dizemos de peito cheio, o país do Cristiano Ronaldo, da Rosa Mota e do Carlos Lopes, mas sim do Fernando Mamede, do Éder e do Rui Oliveira. Não nascemos para triunfar gloriosamente sobre os outros, não nascemos para brilhar no céu olímpico, mas sim para aproveitar escorregadelas de franceses e italianos ou para nós próprios cairmos quando nos julgamos superiores à concorrência.

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Quando os vi cruzar a meta, lembrei-me do último episódio de "Seinfeld": último episódio de Seinfeld: "A partir de agora, sempre que as pessoas pensarem num de nós, pensarão em nós quatro"

AFP via Getty Images

Ao contrário de todos os comentadores desportivos, não reclamo para mim qualquer poder de presciência, mas quando vi o Iúri Leitão e o Rui Oliveira sorrirem alinhados para a partida, acreditei genuinamente que a medalha seria nossa. Precisamente porque aqueles sorrisos infantis, perante o temível rosto sisudo e profissional dos atletas rivais, é sempre sintoma de vitória lusa. Sempre que um atleta antes de embarcar no aeroporto anuncia um regresso medalhado à nação, imagino-o a voltar no horário da madrugada sem diploma olímpico nem familiares à espera. Talvez por isso, quando ouvi o campeão do mundo Iúri Leitão garantir que apenas aspirava ao diploma, quando soube que o Rui Oliveira dissera, depois de uma etapa da Volta ao Algarve, que queria ver se era este ano que ganhava pelo menos uma corrida, quando descobri que havia um gémeo que não ia competir por ter estado lesionado, imaginei-os logo a subir ao pódio.

Em Portugal, sempre que um treinador de um grande é despedido, como ainda agora aconteceu, gera-se imediatamente um consenso em torno da nacionalidade do seu sucessor. Se quisermos ganhar, garantem, o mister tem de ser cá dos nossos. Não sendo defensor dessa ideia, reconheço-lhe uma única virtude: há uma alegria especial na vitória à portuguesa. Ver um atleta, uma seleção ou um clube português ganhar de forma clara, com folga, por absoluta superioridade tática e técnica parece-me das coisas mais lastimáveis que nos pode acontecer. Se é para ganhar (e essa nunca é a nossa prioridade), queremos ganhar porque o nosso lateral à beira da reforma provocou o jovem extremo intempestivo até levar uma cabeçada à Cais do Sodré, ou porque o nosso avançado suplente, meio tosco, decidiu rematar do meio da rua quando isso não fazia sentido nenhum. Deixemos as vitórias dominantes para os chatos dos alemães. Por isso, dizia eu, queremos treinadores cheios de manha, que sejam dignos herdeiros desse Ulisses de mil ardis que fundou a nossa cidade.

Ora, foi precisamente isso que aconteceu na prova de Madison, em Paris. Iúri Leitão e Rui Oliveira não eram favoritos às medalhas. Eram só dois amigos que gostam de andar de bicicleta.

As casas de apostas colocavam-nos a lutar pelos dez primeiros. Mas no dia em que eu vir uma casa de apostas comer arroz de cabidela regada a verde tinto, aí começo a levá-las a sério. Os dois amigos subiram para a bicicleta com o Iúri Leitão ainda exausto da extraordinária prestação de três dias antes. Passaram as primeiras cem voltas da corrida lá para trás, a fazerem-se de mortos, como mais tarde garantiriam ter sido desde o princípio a tática que levavam para os Jogos.

Só reconhecendo a linhagem poderiam rebelar-se contra ela, ou não fossem eles os herdeiros desse Baco que, para triunfar, construiu falsos altares cristãos para que os portugueses neles se ajoelhassem

Continuavam longe das medalhas a quarenta e cinco voltas do fim, até que o favorito italiano se espatifou e, na aliança mais improvável da história, os portugueses uniram-se aos neozelandeses e aos japoneses. Depois, aceleraram ainda mais e, em vez de consolidarem a prata como qualquer português de bem lhes imploraria que fizessem, pedalaram até ao ouro. E ganharam. Ganharam mesmo. E, quando os vi cruzar a meta e implorar àquelas bicicletas sem travões para que finalmente parassem e lhes permitissem abraçar-se um ao outro, lembrei-me do que Jerry Seinfeld disse aos seus três colegas de série antes de gravarem o último episódio de Seinfeld: “A partir de agora, sempre que as pessoas pensarem num de nós, pensarão em nós quatro”.

***

Muitas pessoas fizeram os possíveis e os impossíveis para transformar os Jogos Olímpicos (essa rara reunião dos humanos mais fortes e mais rápidos do mundo, esse momento em que todos podemos ligar a televisão para nos espantarmos com o que conseguem fazer aquelas pessoas revestidas da mesma pele que nós, encaixados nos mesmos ossos que nós) num palanque de aldeia de onde expuseram os seus medos. Esta visão velha e sensaborona do mundo transforma-se em pó perante aquele momento extraordinariamente bonito em que dois rapazinhos, agarrados um ao outro, choram e riem e riem e choram enquanto cantam o hino.

Antes disso, gritaram SSSIIIIIII a imitar o nosso deus da bola, como se só reconhecendo a sua linhagem se pudessem enfim rebelar contra ela, ou não fossem eles, afinal, os herdeiros desse Baco que, para triunfar, construiu falsos altares cristãos para que os portugueses neles se ajoelhassem:

Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu, e assim por derradeiro
O falso Deus adora o verdadeiro.
(II, 113)

“Passeio das Virtudes” é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.

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