910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Ihor Homeniuk tinha 40 anos. Morreu no aeroporto de Lisboa a 12 de março de 2020
i

Ihor Homeniuk tinha 40 anos. Morreu no aeroporto de Lisboa a 12 de março de 2020

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Ihor Homeniuk tinha 40 anos. Morreu no aeroporto de Lisboa a 12 de março de 2020

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

O que viram (e contaram à PJ) os primeiros socorristas a chegar junto de Ihor Homeniuk

Só quando já estava em paragem cardiorrespiratória é que as mãos de Ihor foram finalmente libertadas das amarras. Horas antes, tinha-se encolhido de medo perante um socorrista da Cruz Vermelha.

    Índice

    Índice

Três vezes. Por três vezes, as equipas da Cruz Vermelha que prestam serviço no posto de socorros do Aeroporto de Lisboa foram chamadas para ajudar Ihor Homeniuk. A última equipa acabaria por assistir à morte do ucraniano, de 40 anos, numa sala do Centro de Instalação Temporária. De nada serviram as manobras de suporte básico de vida que lhe prestaram e à chegada do médico do INEM foi encontrado em paragem cardiorrespiratória. A sua autópsia revelou ter sido vítima de homicídio.

Por esse crime foram acusados três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, detidos logo no final de março e que começam a ser julgados em janeiro. Muitas foram as provas recolhidas pela Polícia Judiciária e, entre elas, sabe o Observador, estão os depoimentos das três equipas da Cruz Vermelha.

O que se passou nesses três momentos? O Observador conta-lhe o que relataram aos inspetores da Judiciária, os primeiros socorristas e enfermeiros a chegar junto de Ihor Homeniuk.

Ihor esteve manietado até aos últimos minutos de vida

12 de março

17h17: equipa da Cruz Vermelha do Posto de Socorros do Aeroporto é ativada
Motivo: crise convulsiva  
18h40: é verificado o óbito de Ihor Homeniuk

É necessário cortar as fitas? A pergunta é feita por um inspetor do SEF à socorrista da Cruz Vermelha. No chão, deitado de lado sobre um colchão, Ihor está manietado nos pulsos, presos atrás das costas, e nos tornozelos. Tem vestida apenas uma t-shirt preta e as calças, pelos joelhos, deixam a roupa interior à mostra. O cheiro é nauseabundo — o homem de 40 anos está com incontinência do esfíncter, contaria, mais tarde, uma enfermeira no seu primeiro depoimento à PJ.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando o inspetor do SEF lança a pergunta, já o ucraniano está em paragem cardiorrespiratória. Restam-lhe apenas alguns minutos de vida, mesmo que nenhum dos presentes na sala — três profissionais de saúde da Cruz Vermelha e dois inspetores do SEF — saiba que está prestes a presenciar a sua morte. A amarra é cortada com uma tesoura.

As fitas de tecido, azuis claras e brancas, são usadas para manietar pessoas com maior agitação, segundo a descrição feita por uma das profissionais de saúde às autoridades. Ali, estavam a ser usadas para imobilizar o ucraniano — uma forma de impedir que magoasse outros ou a si próprio, explicariam inspetores e vigilantes, já que tinha passado as últimas horas muito agitado.

Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF

Quando a equipa da Cruz Vermelha chegou à sala, ainda havia movimentos da caixa torácica. Chamado pelo nome, Ihor respondeu apenas com um murmúrio. A explicação dada aos socorristas foi de que o homem tinha tido uma crise convulsiva, mas, quando chegaram, nada viram e concluíram que a suposta crise já tinha terminado. O que viram foi vários hematomas, na cabeça e nos braços, nas zonas mais descobertas e sem vestuário. Mas, dada a urgência, uma das enfermeiras confessaria à PJ que não se demorou a olhar para elas. Ao recordar o episódio, não se sentiu confortável para afirmar se eram marcas de uma crise ou de agressões. Um dos seus colegas dirá que é uma “situação complicada”, mas que os hematomas dificilmente se compatibilizam com as quedas de uma convulsão.

O estado de Ihor é grave. Um quarto de hora depois de chegar junto dele, a equipa da Cruz Vermelha chama o INEM. A situação agrava-se ainda mais, os movimentos torácicos diminuem drasticamente e acabam por desaparecer. O coração está a parar. O CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) é informado — socorrista e enfermeira percebem que precisam de apoio diferenciado, mas são elas que dão início às manobras de suporte básico de vida.

INEM e VMER acabam por chegar ao local e é o médico da Viatura Médica de Emergência e Reanimação que verifica o óbito. Às 18h40, de 12 de março de 2020, Ihor Homeniuk está morto no chão do Centro de Instalação Temporária. As mãos já não estão manietadas.

Pelo homicídio do ucraniano estão a ser acusados três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, detidos logo no final de março

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

16 horas antes: com as mãos na cara, Ihor tentou proteger-se do enfermeiro

Madrugada de 12 de março

1h30: equipa da Cruz Vermelha do Posto de Socorros do Aeroporto é ativada
Motivo: homem está a bater com a cabeça nas paredes

Spater. O telemóvel da socorrista deu-lhe a resposta que procurava: como se diz dormir em ucraniano? Repetiu, em voz alta, a palavra aprendida no Tradutor da Google para que Ihor percebesse. A ansiedade do ucraniano era permanente e tentava sair da sala, mas não estava agressivo, diria, mais tarde, a socorrista no depoimento à PJ. O motivo de ali estar prendia-se com uma chamada do SEF: eram 1h30 da manhã quando a equipa da Cruz Vermelha foi ativada porque um indivíduo “estava a bater com a cabeça nas paredes”. Passadas algumas horas, esse homem, lhor, estaria morto.

Ainda antes de chegar ao pé de lhor, o enfermeiro que acompanhava a socorrista viu-o através da porta entreaberta. Estava deitado no chão, num colchão, guardado por dois inspetores do SEF, apenas um deles fardado. Foi antes de entrar na sala que soube que o ucraniano já tinha estado no hospital e que lhe tinham sido detetados problemas de adição ao álcool. A prescrição era de três medicamentos: um para as convulsões, outro para a síndrome de abstinência e um SOS para a agitação. A Ihor ainda só tinha sido administrado o primeiro.

Como a autópsia e uma queixa anónima denunciaram o homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa

Apesar de calmo, o ucraniano tinha sinais de síndrome de abstinência, estava suado e ruborizado, e tinha uma escoriação na cara que o enfermeiro deduziu ser de quando bateu com a cara na parede. Mais do que isso não viu e o cabelo curto não permitiria esconder eventuais marcas na cabeça. Foi quando se aproximou, para administrar o medicamento de SOS, que Ihor reagiu: encolheu-se com os braços para proteger a cara, como se tivesse medo de algo, e repetia o gesto sempre que alguém dava um passo na sua direção. Mesmo vendo os cartões da Cruz Vermelha, manteve a posição de autoproteção, encolhendo-se e resguardando a cara.

O enfermeiro não tinha dúvidas: Ihor devia tomar o medicamento da abstinência, essencial para o manter calmo, prescrito na véspera no Hospital de Santa Maria. Sugeriu que fosse conduzido, de novo, ao hospital para tomar a medicação, indisponível no aeroporto, mas os inspetores do SEF alegaram não ter meios para o fazer.

Cerca de meia hora depois, já passava das duas da manhã, o trabalho da Cruz Vermelha estava terminado. Ihor estava sedado, embora a acalmia nunca tenha sido absoluta. Spater. Dormir. Quando o enfermeiro finalizou a ocorrência e a socorrista voltou de fumar um cigarro, ambos viram o mesmo. O ucraniano semi-adormecido estava agora manietado nos pulsos e tornozelos com fita adesiva castanha, a mesma que é usada para fechar caixas de cartão.

O enfermeiro insistiu que a decisão não fazia sentido e que o melhor para a condição de Ihor era ser transportado para o hospital. Sem sucesso. Acabaria por oferecer aos vigilantes ligaduras de algodão, mais maleáveis, para manter o ucraniano preso — uma vez que a justificação era a proteção dele próprio, para o caso de se tornar violento ou voltar a fazer o mesmo que, diziam os inspetores, antes tinha feito. Responderam-lhe que o fariam mais tarde.

28 horas antes: um fio de sangue localizado e um dente desaparecido

10 de março

21h21: equipa da Cruz Vermelha do Posto de Socorros do Aeroporto é ativada
Motivo: episódio de convulsão

Um homem está deitado no chão, de lado, sangue na boca. Sangue e saliva no chão, compatível com um episódio de convulsão. Naquele que foi o primeiro pedido à Cruz Vermelha, um inspector do SEF, preocupado, diz que o indivíduo teve uma convulsão, caiu de costas, bateu com a cabeça e desmaiou. Ficou roxo, não respirava. Tentou abrir-lhe a boca, libertar as vias aéreas, sem sucesso. Acabou por usar uma caneta para tentar que o ar entrasse.

Chegados ao local, socorrista e enfermeiro encontram um homem consciente, de olhos abertos e a respirar, como ambos contariam à PJ. Estava inquieto, desconfortável, mas não agitado. A tensão um pouco alta, as pupilas dilatadas, mas nenhuma lesão na língua ou na bochecha que justificasse o fio de sangue que lhe escorria da boca. Faltava-lhe um dente, que nunca seria encontrado, na região frontal do maxilar inferior. Para a socorrista, a explicação poderia estar ligada à caneta. Poderia, sem certezas, por isso não arriscou garanti-lo no seu depoimento.

“Mataram o gajo”. Vários funcionários do SEF trocaram mensagens no Whatsapp sobre a morte do cidadão ucraniano

A memória do enfermeiro é semelhante à da colega: um homem recostado no chão, em estado confusional, que foi recuperando o controle da situação até que passou a agir com mais naturalidade. Mas o enfermeiro nunca chegou a conformar-se com aquela sintomatologia e ordenou o seu transporte para o hospital para verificar eventuais complicações a nível neurológico.

Depois de estabilizado, foi acompanhado por um inspetor do SEF, por estar sob detenção, até ao hospital de Santa Maria, em Lisboa. Nenhum dos profissionais de saúde voltaria a cruzar-se com aquele indivíduo. Dois dias depois, em conversas com colegas, ficariam a saber da sua morte. “Estava todo marcado”, ouviu dizer a socorrista, o que lhe sugeriu que pudesse ter sido agredido. Era Ihor Homeniuk. Hoje sabe-se que foi assassinado.

“Isto aqui é para ninguém ver”. As 56 horas que levaram à morte de um ucraniano no aeroporto de Lisboa

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.