A Águas de Portugal foi obrigada a transferir para o Estado 100 milhões de euros no final do ano passado, ainda que o Governo quisesse, inicialmente, 150 milhões. E, depois de alertas por parte da administração que estava em funções de consequências “gravosas” para a atividade futura, acabou por receber o compromisso de que o dinheiro que saísse em 2023 seria reposto em 2024 num aumento de capital. Isto porque Fernando Medina não aceitou a solução proposta pela administração da empresa de antecipar dividendos.
Face ao braço de ferro travado entre administração e ministro das Finanças, o presidente à época da Águas de Portugal, José Furtado, acabou por aceitar a entrega do dinheiro desde que o que saísse fosse reposto. Recebeu o compromisso do próprio primeiro-ministro, segundo emails enviados por José Furtado à Parpública invocando o nome de António Costa.
O aumento de capital acabou chumbado em assembleia-geral pelos acionistas Parpública e Caixa Geral de Depósitos, já com o novo Governo em funções. José Furtado saiu da Águas de Portugal e esta quarta-feira foi ouvido no Parlamento sobre o “caso” dos 100 milhões, reafirmando que não concordou com a descapitalização da empresa que tem grandes desafios pela frente e que está a ir ao mercado para se financiar.
Na audição, pedida pelo CDS, optou por não entrar em confronto com o anterior Governo, embora tenha sido relatada por Paulo Núncio, deputado do CDS, a troca de mensagens com o anterior titular da pasta das Finanças em que Medina fala mesmo da falta de diligência da administração para contribuir no sentido de Portugal baixar a dívida pública. Emails divulgados antes da audição pelo Eco e a que o Observador também teve acesso, citados na comissão do Orçamento e Finanças na audição desta quarta-feira. E que mostram que Fernando Medina se empenha para que a Águas de Portugal transfira o dinheiro, o que acabou por acontecer.
Como tudo começou? 150 milhões e o secretário de Estado a ir de férias
Decorriam os últimos dias de dezembro de 2023. O Governo já sabia que iria para eleições em março, embora a dissolução da Assembleia da República só tivesse acontecido já no decurso do mês de janeiro de 2024 (foi a 15 de janeiro). O Executivo, no entanto, estava formalmente demitido desde 7 de dezembro, um mês depois do anúncio de António Costa de que iria sair na sequência das investigações judiciais no âmbito da Operação Influencer.
Foi neste ambiente que o Ministério das Finanças, a 22 de dezembro, pediu à Águas de Portugal que entregasse ao Estado 150 milhões de euros das suas reservas. Dois dias depois, a 24 de dezembro, José Furtado escreveu a João Nuno Mendes, então secretário de Estado das Finanças, a resistir a essa entrega que iria reduzir os capitais da empresa. “Tal eventualidade tinha consequências muito gravosas na atividade futura do grupo” face aos investimentos previstos (1,5 mil milhões em cinco anos) e aos investimentos adicionais que se adivinham pelas novas exigências ambientais, a que acresce o fecho da torneira nos fundos estruturais por Bruxelas. Um cocktail que, no entender de José Furtado, era explosivo perante o que chamou de descapitalização da sociedade e nomeadamente junto de quem negociava empréstimos que tinha em conta a robustez financeira. E retirar 150 milhões obrigaria a contrair dívida para compensar, o que poderia representar custos financeiros adicionais de 4 milhões por ano, indicava José Furtado, que ainda lembrava que o setor empresarial do Estado estava preso a limites de endividamento.
Face a estas preocupações, o presidente da Águas de Portugal dizia que, no entanto, a equipa de gestão estava “pessoalmente empenhada em encontrar, nas próximas 48 horas, conjuntamente com o acionista de referência, uma solução de compromisso, num quadro de gestão de tesouraria, designadamente explorar a hipótese de antecipação de dividendos”.
No mesmo dia, Furtado pedia aos restantes elementos da administração da Águas de Portugal para se reunirem a 27 de dezembro. Os argumentos são enviados por Furtado a João Nuno Mendes (que tinha sido presidente da Águas de Portugal até novembro de 2019). Este responde no dia de Natal dizendo que estará de férias nos dias seguintes, descartando-se assim de mais intervenção no processo e remetendo a resposta para o secretário de Estado do Tesouro e para o ministro das Finanças, à época Pedro Rodrigues e Fernando Medina, respetivamente.
Um Natal com uma proposta de 55 milhões que surpreendeu Medina
A Águas de Portugal e a Parpública começaram, então, a trabalhar na hipótese de antecipar os dividendos referentes ao exercício de 2023 (que só seriam pagos no ano seguinte) e de 2024, o que totalizaria 55 milhões. Nesse processo, foi instruído à Águas de Portugal que fizesse incluir essas saídas no plano de atividades e orçamento de 2024, já que não estava previsto esse pagamento antecipado de dividendos. José Furtado queria, por outro lado, que ficasse por escrito, e bem claro, na deliberação unânime, que não seriam pagos dividendos nesses anos. Foi pedida autorização a Fernando Medina — mas o ministro das Finanças travou a pretensão a 28 de dezembro.
“Vi com surpresa a ‘proposta’ do grupo AdP descrita no email por si enviado ao dr. Realinho de Matos [presidente da Parpública]. Como qualquer um compreenderá, seria a todos os títulos errado comprometer dividendos integrados nos Orçamentos do Estado para 2024 e para 2025 quando estes serão executados na plenitude por outro Governo“. Fernando Medina era contra a distribuição antecipada de dividendos porque esses entram no Orçamento do Estado que já cairia sob a alçada do novo Executivo que saísse das eleições de março (acabou mesmo por ser um Governo de cor diferente).
Mas é aí, neste email com data de 28 de dezembro, que Fernando Medina se atira à gestão da Águas de Portugal e refere que a operação releva para a diminuição da dívida pública que, em 2023, ficou abaixo dos 100% do PIB. Na audição a Fernando Medina, a 14 de maio, o ex-titular da pasta das Finanças admitiu que “aritmeticamente, ajudou a reduzir a dívida pública, mas com os 130 milhões pagos com dividendos extraordinários [os da Águas de Portugal, NAV e Casa da Moeda] a dívida é 99,1% e sem eles seria, na mesma, 99,1% [do PIB]”, pelo que, nas contas de Medina, o impacto destas operações não excede uma décima de ponto percentual na dívida. E foi aqui que o ex-ministro das Finanças (agora deputado) falou num “folhetim de telenovela”.
Medina. “Perfeitamente normal” pedir dinheiro a empresas públicas para pôr a dívida abaixo de 100%
Assumiu, nessa audição, que o dinheiro pedido às empresas públicas — avançado pelo Público — foi “exercício da tutela e da gestão financeira das empresas”, sem pressão.
Mas no email enviado por Medina a Furtado a 28 de dezembro as palavras não são meigas. “Das várias entidades públicas e privadas com quem a equipa do Ministério das Finanças tem vindo a trabalhar ao longo de 2023, no sentido de cumprir o objetivo nacional de redução da dívida pública, temos tido diligência, empenho e efetividade na concretização de múltiplas medidas, várias de complexidade significativa”, acrescentando: “O grupo AdP foi a única exceção a esta regra, tendo-se recusado a trabalhar de forma ativa e construtiva no processo.”
Diz mesmo que é o contrário: “A equipa de gestão que V. Exa lidera demonstrou repetidamente indiferença face aos objetivos e prioridades claramente colocados pelo acionista, revelando falta de diligência e de profissionalismo exigidos a qualquer gestor”.
Continua que “só assim se pode compreender que não só não tenham apresentado qualquer justificação à ‘inevitabilidade’ da ‘proposta’ que avançam, como muito menos tenham estudado outras possibilidades, das inúmeras possíveis, que assegurassem todos os objetivos definidos pelo Governo para as Águas de Portugal”. E atirou com as subvenções públicas que a empresa recebia, lembrando os capitais próprios de 1,8 mil milhões em 2022, os resultados transitados de 932 milhões ou o EBITA de 387 milhões, e o endividamento que era de 3,2 vezes esse EBITDA. Para Medina, “esta omissão de diligência da administração é particularmente inaceitável”, ameaçando no final que reserva para assembleia-geral “as apreciações adicionais que entendamos necessárias”, mas que não se iria proceder à antecipação de dividendos.
Perante estas críticas, José Furtado disse agora, no Parlamento, que, face à exigência do acionista de ter 150 milhões — “uma posição que não acompanhávamos” — “tivemos de encontrar uma forma construtiva de alternativa”, justificando, assim, a proposta de entregar dividendos antecipados, primeiro com a proposta de antecipar um ano 27,5 milhões e depois com a antecipação de dois anos — 55 milhões. “Sempre com o único propósito de não mexer fundos próprios de forma irreversível”, mas “não foi aceite”, disse no Parlamento, assumindo que um “gestor não tem capacidade de se opor a um acionista”.
Como se chega aos 100 milhões. Um telefonema de Costa com uma promessa
Perante o que considerou ser “uma perceção desajustada” de Fernando Medina, o então presidente da AdP respondeu a 29 de dezembro ao ministro das Finanças falando de “genuíno empenho” dos gestores da AdP “na busca de uma solução”. É nessa resposta que indica que a antecipação de dividendos até teria sido admitida numa reunião de 20 de dezembro pelo próprio ministro que admitiu ainda a cedência temporária de liquidez (“prontamente excluída” a 22 de dezembro). Volta a referir os perigos da descapitalização no meio de uma negociação de um financiamento de 1.200 milhões. Acrescentando ainda a dívida dos municípios de 250 milhões e um défice tarifário ativo de 600 milhões. O email para Fernando Medina, segundo consultas do Observador, é das 9h53, surgindo depois um outro email, desta feita de José Furtado para o presidente da Parpública— às 11h48 — onde é referida a intervenção do primeiro-ministro António Costa.
É Furtado que diz a Realinho de Matos que falou com António Costa. “Acabei de receber orientações do senhor primeiro-ministro para articular com a Parpública uma operação a realizar na próxima hora”, lê-se, sem mais referências.
Essa mesma referência a António Costa ficou registada em ata do conselho de administração da AdP de janeiro de 2024.
José Furtado fez questão de dizer aos colegas da administração que a saída de 100 milhões, executando a deliberação de acionistas de 29 de dezembro, tinha uma compensação. Segundo se lê na ata, “o presidente do conselho de administração considerou oportuno reportar ter o Governo anunciado, diretamente por contacto telefónico recebido do senhor primeiro-ministro, no dia 29 de dezembro, a intenção de assegurar a manutenção dos fundos próprios da AdP, compatibilizando-se assim a cedência imediata da liquidez disponível com o subsequente aumento de capital no mesmo montante, pelo que estará salvaguardado o atual padrão de robustez e autonomia financeira do grupo”.
Esta quarta-feira poucas referências foram feitas no Parlamento sobre a intervenção de António Costa, nem foi perguntado sobre essa intervenção, mas apenas se Fernando Medina tinha confirmado o aumento de capital futuro. Em maio, quando respondeu pela descida da dívida pública, Medina garantiu que “o Ministério das Finanças (nem eu próprio nem nenhum secretário de Estado do ministério) não prometeu qualquer aumento de capital à Águas de Portugal”. Os partidos da direita perguntaram: “E António Costa, garantiu esse aumento de capital” à administração, não tendo recebido resposta de Fernando Medina, tendo, então, já saído uma notícia (do Jornal Económico) de que Costa tinha feito a promessa a Furtado.
Um aumento de capital prometido por Costa e chumbado por Miranda Sarmento
Depois de ter acordado entregar 100 milhões de resultados transitados e alegadamente com a garantia que teria um aumento de capital posterior para repor os capitais, José Furtado voltaria a invocar o nome do então primeiro-ministro em cartas dirigidas aos dois acionistas da AdP — Parpública e Caixa Geral de Depósitos — em fevereiro deste ano para sinalizar a necessidade de se avançar com o aumento de capital “na sequência do que ficou estabelecido e por forma a dar execução à indicação que me foi dada pelo senhor primeiro-ministro”.
E a 6 de março, num email ao presidente da Parpública, José Furtado volta a dizer que voltou a falar com António Costa: “Estabeleci o contacto telefónico com o senhor primeiro-ministro que confirmou a indicação que já me havia dado sobre a decisão tomada de concretizar o aumento de capital no montante fixado de 100 milhões”.
José Furtado insiste em vários emails posteriores para que se avance, na convocatória da assembleia-geral de abril, para a inscrição do aumento de capital, ainda com o governo anterior em funções. Foi inscrito para discussão, sem que qualquer compromisso fosse assumido pela Parpública. A assembleia acabaria por acontecer a 8 de maio, já com novo Governo em funções, e o ponto da ordem dos trabalhos para discutir o aumento de capital foi chumbado pelos dois acionistas — Parpública e Caixa Geral de Depósitos. “Posta à votação os acionistas deliberaram por unanimidade votar contra a proposta de aumento de capital”, lê-se na ata, a que o Observador teve acesso. Nessa reunião, o ponto que pretendia aprovar o plano de atividades e orçamento para 2024 foi retirado a pedido da Parpública (e não discutido). A assembleia terminou com José Furtado a anunciar que “irá cessar funções na liderança do grupo AdP “.
José Furtado saiu no final de maio. António Carmona Rodrigues entrou no início de junho.
O que disse José Furtado no Parlamento?
No dia em que se apresentou no Parlamento para dar explicações sobre este caso, José Furtado aguardava que o Banco de Portugal avaliasse a sua eventual entrada na empresa de garantia mútua do Banco Português de Fomento.
Recordou a sua carreira de 30 anos como gestor e, em resposta aos deputados, garantiu: “Não me deixo pressionar, não admito interferências nem ingerências. Trabalhei com todos os governos constitucionais, exceto com o do dr. Mário Soares, e sempre respeitei e me fiz respeitar”. Falou, neste caso dos 100 milhões, de um processo em que houve “uma tensão e um exercício das duas partes, mas a gestão da AdP não se deixou pressionar”. A gestão, reafirmou, “não estava confortada com redução fundos próprios, mas ficou com a solução que não prejudica fundos próprios. É um quadro de normalidade. Não considero que fui objeto de interferência ou cedi a pressões [ao aceitar a transferência]. A minha apreciação lógica levou a dizer-me que é uma boa solução, o meu interesse estava salvaguardado [com o posterior aumento de capital] que era o da capitalização da empresa”.
O impacto, continua a acreditar, para o grupo é grande. “Não faz sentido descapitalizar. Os rácios robustos ajudam no financiamento. E as tarifas são menos penalizadas pelos custos financeiros. Cada euro é um euro para estar no grupo AdP perante os desafios. Não faz sentido no contexto de exigência, que se está a levantar dinheiro e a convencer o mercado, dizer que acionista acabou de tirar dinheiro”. A AdP “não tem problemas de liquidez, precisa é de robustecer capital”, salienta a distinção dos dois conceitos distintos que misturados podem gerar confusão.
Perante o compromisso a que se chegou não ponderou demitir-se, diz. “O tema do capital estava salvaguardado. Não tinha razão para demitir-me. A minha única preocupação era a salvaguarda da robustez do grupo. Não tinha razões para me demitir”, reitera aos deputados. Mas chegou, no processo, quase ao fim da linha, antes da promessa do aumento de capital, confidencia.
E recusando fazer uma avaliação de Fernando Medina, disse, no entanto: “Escolho quem tem capacidade para me avaliar”. E deixou uma última afirmação: “Não me avalia quem quer”.