É algo “perfeitamente normal” que o (então) ministro das Finanças tenha dado instruções a várias empresas públicas para que entregassem, no final do ano passado, dividendos extraordinários que ajudaram – Fernando Medina diz que foi pouco – a cumprir o “objetivo político” de terminar o ano com a dívida abaixo dos 100% do PIB. O ex-ministro das Finanças, ouvido esta terça-feira no parlamento, garantiu, também, que “é falso, falso, falso” que se tenha utilizado mais da “almofada” das pensões para atingir o mesmo objetivo. Sugerir que a redução da dívida foi “artificial”, como disse a UTAO, é uma “profunda ignorância“, afirmou um irado Fernando Medina.

No final da audição parlamentar, Medina mostrou-se confiante de que tinha sido capaz de “desmontar a narrativa” que tem sido “montada” nas últimas semanas: a “narrativa” de que o governo anterior usou dinheiro das pensões e exigiu dividendos extraordinários a empresas públicas para fazer o chamado “brilharete” da dívida abaixo de 100% do PIB em 2023.

“Isto parece um romance do Sherlock Holmes: abrimos o livro e lemos que terá havido um assassinato mas, depois, ao ler, percebemos que, entre Sherlock Holmes e Watson – que é conhecido por ser pouco inteligente, embora um leal escudeiro – chegamos ao final e o livro conclui-se que só há Watson e, afinal, não havia morto”. O soundbite de Fernando Medina serviu para lamentar que os partidos da direita e centro-direita tenham usado o famigerado relatório da UTAO para colocar em causa todo o “esforço que foi feito pelos portugueses” para equilibrar as contas públicas e conquistar “credibilidade internacional”.

Medina lamenta “a atitude de vários que não hesitam em pôr em causa a credibilidade do país simplesmente para atacar o anterior governo”. Esta foi a primeira farpa a Joaquim Miranda Sarmento, mas mais tarde viria outra, ainda mais acintosa. Dirigindo-se à direita parlamentar, afirmou :”Aquilo que os senhores estão a fazer estão a fazê-lo sem olhar ao dano que estão a causar ao país – e é com algum constrangimento que vejo as notícias que saíram do Eurogrupo e a perplexidade com que alguns dos meus ex-colegas assistiram ao que assistiram”.

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Sem o dizer explicitamente, Medina criticou Miranda Sarmento por retratar as finanças públicas como saudáveis e equilibradas em Bruxelas e, no plano interno, desfazer a ideia das “contas certas” deixadas pelo anterior governo.

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“Não houve uma pressão sobre as empresas, houve um exercício da tutela”

O Estado tem mais de 140 empresas públicas e “o que o Estado fez durante o ano [passado] foi proceder a injeções de capital que chegaram perto de 3.000 milhões de euros – 2.965,4 milhões de euros” em todas estas empresas. Por outro lado, confirmando as notícias que saíram nas últimas semanas, “o Estado solicitou o pagamento extraordinário de 130 milhões de euros, além dos dividendos normais” a três empresas: Águas de Portugal (100 milhões) NAV (20 milhões) e Imprensa Nacional Casa da Moeda (10 milhões).

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Quando se diz que se “solicitou” o pagamento desses dividendos, não se está, contudo, a dizer que houve “pressão” nesse sentido, como afirmam os partidos mais à direita, explicou o ex-ministro. Medina garantiu que todas estas empresas têm uma situação financeira confortável – “extremamente confortável” no caso da Águas de Portugal – e, depois de analisadas as respetivas contas, o Governo decidiu pedir essas reservas, garantindo que a sustentabilidade das empresas não ficaria minimamente em risco, nem mesmo os seus investimentos previstos.

Aliás, garantiu o ex-ministro das Finanças, o Estado pediu 130 milhões mas as suas contas indicaram que, sempre respeitando critérios de sustentabilidade das empresas, estariam mesmo em condições de entregar ao Estado até 400 milhões, cerca de três vezes mais do que o Estado pediu que lhe fosse entregue. No caso mais polémico, o da Águas de Portugal, a empresa vinha de um ano em que tinha tido 932 milhões de euros em resultados transitados (ou seja, nem aplicados nem devolvidos ao acionista) e não apresentou ao Governo, garante Medina, qualquer plano de investimento que suportasse a ideia de que aqueles 100 milhões de euros não deveriam ser extraídos da empresa.

“Não houve uma pressão sobre as empresas, houve um exercício da tutela e da gestão financeira das empresas”, atirou Medina, lembrando que quando uma empresa pública está a negociar com o Estado a distribuição de um dividendo esta não é, propriamente, uma negociação “de igual para igual”.

E perante as alegações de que à Águas de Portugal teria sido prometido um aumento de capital posterior (em 2024) — que chegou a estar previsto na ordem de trabalhos da assembleia geral mas que o atual Ministério das Finanças travou e bem no entender do anterior titular da pasta — Medina garantiu que “o Ministério das Finanças (nem eu próprio nem nenhum secretário de Estado do ministério) não prometeu qualquer aumento de capital à Águas de Portugal”. Os partidos da direita perguntaram: “e António Costa, garantiu esse aumento de capital” à administração (que, entretanto, se demitiu)? Fernando Medina não respondeu.

NAV e Casa da Moeda também tiveram de entregar dinheiro a Medina

Porém, para o Estado – e para o governo – foi conveniente receber aquele dinheiro: “aritmeticamente, ajudou a reduzir a dívida pública, mas com os 130 milhões pagos com dividendos extraordinários a dívida é 99,1% e sem eles seria, na mesma, 99,1% [do PIB]” – ou seja, Medina diz que o impacto nestas contas não excede uma décima de ponto percentual. Toda esta discussão é “um folhetim de telenovela”, afirmou o ex-ministro das Finanças.

Pouco convencido, o deputado Paulo Núncio indicou que o CDS-PP vai pedir que seja entregue ao parlamento toda a troca de correspondência feita entre o (então) governo e as empresas públicas, para só depois aferir se houve ou não houve pressão aos dirigentes dessas empresas.

“É falso, é falso, é falso” que almofada das pensões tenha sido usada

“Qualquer insinuação sobre este tema é verdadeiramente falsa. Falsa”, afirmou Fernando Medina, desvalorizando a outra alegação feita acerca da forma como o anterior governo conseguiu baixar a dívida para menos de 100% do PIB logo em 2023: a ideia de que teria usado o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) para reduzir o endividamento.

Qualquer sugestão – tal como a feita pela UTAO – de que tal expediente tenha sido usado só revela uma “profunda ignorância”. Esta unidade técnica de apoio aos deputados também tinha enquadrado a redução “artificial” da dívida pública no facto de o Decreto-Lei de Execução Orçamental (DLEO) de 2024 travar a venda de dívida até 31 de março deste ano.

Lendo uma parte do relatório, Medina indica que “a UTAO diz, a certa altura, na página 9, que: ‘a UTAO pesquisou no DLEO [a propósito de uma norma de que não se pode alienar divida até 31 de março] até 2018 e não encontrou disposições semelhantes. Estas determinações no DLEO de 2024 são uma prova da orientação política conducente a uma redução do valor da dívida pública de Maastricht sem ser por redução por stock da dívida pública’”.

Ora, Fernando Medina lembra que o DLEO foi publicado a 29 de janeiro de 2024 e, por isso, tem uma “aplicação nula” sobre a dívida de 2023. Essa limitação de venda de dívida até 31 de março de 2024 apenas foi feita com o objetivo de precaver eventuais turbulências nos mercados financeiros numa altura em que o Estado precisaria de renovar cerca de seis mil milhões de euros em dívida originalmente emitida (a 10 anos) em 2014.

“O que é que isto tem a ver com redução da dívida de 2023? Zero. O que é que isto tem a ver com a dívida de 2024? Zero. O que é que tem a ver com gestão prudente da dívida? Tudo”, atirou Medina, visivelmente irritado com esta discussão, sobretudo depois de o Chega ter voltado, depois dos esclarecimentos iniciais de Medina, a defender que o dinheiro das pensões tinha sido abusivamente utilizado.

PIB deverá ser revisto em alta (em setembro) e dívida ficará abaixo dos 99%

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O ex-ministro das Finanças Fernando Medina disse também que o PIB deverá ser revisto em alta e que a dívida deverá ter ficado abaixo dos 99% em 2023, apontando para os dados que serão conhecidos em setembro.

Fernando Medina falava na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública no final de uma audição pedida pelo CDS-PP sobre a redução da dívida pública em 2023, quando era ministro das Finanças e após um relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) que considerou “artificial” aquela redução da dívida pública.

“No dia 20 de setembro de 2024 vão sair novos dados […] e não se espantem que o PIB [de 2023] seja revisto em alta e que a dívida pública não será de 99,1%, mas que será muito provavelmente abaixo de 99%”, disse Medina numa referência à 2.ª notificação do Procedimento por Défices Excessivos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

A aplicação em títulos pela CGA (Caixa Geral de Aposentações) está relacionada com a conclusão de um processo iniciado em 2010, de transferência dos fundos de pensões dos bancários para o Estado e, por outro lado, Medina reconhece que houve um aumento “nominal” dos investimentos do FEFSS em dívida pública mas a percentagem da carteira praticamente não se alterou.

Segundo disse o Ministério da Segurança Social ao jornal Eco, em fevereiro, o FEFSS fechou 2023 com uma carteira de 29,8 mil milhões de euros de ativos, um aumento de 6.684 milhões que se justifica pelos excedentes cobrados (que a lei obriga a serem canalizados para o FEFSS e não para o Orçamento do Estado).

Este aumento “nominal” existiu, mas a percentagem não se alterou de forma significativa. Medina disse que no final de 2022 54% da carteira do FEFSS estava aplicado em títulos de dívida pública e em final de 2023 a carteira que era aplicada em dívida pública era de 54,5%, “quase exatamente o mesmo valor e perto do mínimo estabelecido por lei”, afirmou Medina, lembrando que o mínimo é de 50%.

Assim, “é falsa a afirmação que diz que houve uma utilização maior dos recursos da Segurança Social para aplicar em dívida pública”, afirmou Medina, alegando que os partidos da direita são ferozes nas críticas mas não conseguiram “produzir um único argumento que rebata este facto, que não se usou o dinheiro das pensões para reduzir a dívida”.

UTAO cometeu “erros muitos graves” e Medina, hoje, não seria “cliente”

O ex-ministro das Finanças garantiu não querer ser “desagradável com ninguém” mas não escondeu ter lido com enorme indignação o relatório feito pela UTAO onde se fala em redução de dívida “artificial” e por “orientações políticas”. Medina não esconde que baixar a dívida para um valor abaixo dos 100% do PIB foi um “objetivo político” mas não se pode dizer, por isso, que tenha havido “maquilhagem das contas” (como sugeriu o Chega) ou que foi feita alguma coisa de irregular.

Levar a “dívida para menos de 100% do PIB foi um objetivo político, mas foi um objetivo de grande valor para o nosso país. Permitiu que Portugal saísse do pódio dos mais endividados da Europa e, por isso, o país está mais protegido de fenómenos de instabilidade dos mercados internacionais”, afirmou Medina.

Medina assume divergência com Pedro Nuno Santos

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Dirigindo-se a Mariana Mortágua, do BE, que considerou toda esta discussão um “aproveitamento político pouco sério” por parte da direita, Medina questionou porque é que Medina dizia que não havia dinheiro para satisfazer as exigências dos professores mas, agora, o PS já diz querer que esse passo seja dado. “Quero dizer-lhe, sobre os professores e, também, as forças de segurança, que a minha posição pessoal não mudou. O Governo de que fiz parte tinha um entendimento: só se poderia ter uma melhoria das condições se o fossemos capazes de fazer relativamente a todas as carreiras – tínhamos de abranger a totalidade” das carreiras.

“E para essa totalidade não havia e não há” meios, disse Medina. “O que mudou é que quem lidera hoje o PS tem uma opinião diferente, amplamente assumida, e daí não vem mal nenhum ao mundo”. “O PS tem um novo secretário-geral, num partido grande não temos de concordar em tudo”, e a atual liderança do PS tem “uma posição diferente da minha”.

Fernando Medina já não é ministro das Finanças, é deputado, e toda esta polémica serviu, diz, para que tenha passado a ter uma ideia muito diferente sobre a qualidade das análises da UTAO. Agora é apenas “cliente”, diz Medina, porém, se necessitar de algum trabalho de apoio (enquanto deputado) “provavelmente pediria a outras entidades” para prestarem esse apoio.

Quem saiu em defesa da UTAO foi Bernardo Blanco, deputado da Iniciativa Liberal, que disse não ter gostado de ouvir Medina a falar daquela maneira da UTAO porque esta trabalha “com poucos meios” e, já agora, Medina pode (enquanto deputado) lutar para aumentar os meios que a UTAO tem para fazer estes estudos. Aliás, a IL salienta a incongruência que é ver o PS, o partido de Medina, “ainda na semana passada a pedir uma série de análises à UTAO”, às quais este organismo respondeu dizendo que não tem meios para satisfazer tais pedidos.

Ao Jornal de Negócios, já depois da audição desta terça-feira, o coordenador da UTAO, Rui Baleiras, não quis alimentar a polémica. “Respeito a opinião do senhor deputado Fernando Medina, mesmo quando não coincide com a minha. É o caso da acusação de erro técnico gravíssimo”, diz o responsável, acrescentando que não deve “entrar no debate político-partidário” nem reagir “a quente”.