É difícil dar números concretos à guerra que assola o norte de Moçambique há três anos. As estatísticas possíveis (conservadoras e decerto pouco atualizadas) apontam para, pelo menos, 2 mil mortos e mais de 500 mil deslocados internos provocados pelos ataques, cada vez mais frequentes e mais violentos, perpetrados por um grupo terrorista que se apresenta como célula do Estado Islâmico desde outubro de 2017. O palco da guerra tem sido a província de Cabo Delgado — a mais a norte das onze que compõem o país. Ali, vivem 2,34 milhões de moçambicanos. Significa isto que mais de um quinto dos habitantes daquela província já perderam a casa por causa dos atentados. Pouco se sabe sobre o grupo terrorista: os académicos argumentam que a falta de uma presença forte do estado e a desvalorização das dinâmicas religiosas entre as comunidades muçulmanas (dominantes no norte do país) permitiram que o extremismo se desenvolvesse, indetetável, ao longo de décadas. Os elevados níveis de analfabetismo, pobreza e desnutrição na região norte do país acentuaram o problema.
Hoje, uma parte considerável das aldeias e vilas de Cabo Delgado já se encontra sob o domínio dos extremistas, que têm expandido o seu território de influência através de ataques bárbaros. O mais recente — a decapitação de meia centena de jovens numa pequena aldeia onde os extremistas montaram um autêntico campo de extermínio, de acordo com os relatos que de lá chegam — voltou a atrair a atenção da comunidade internacional para Moçambique: a ONU chegou-se à frente para ajudar a investigar os massacres e exigiu a adoção de medidas urgentes; no Parlamento Europeu, o PPE (com o eurodeputado português Paulo Rangel a liderar os esforços) já pediu um debate urgente para pressionar a União Europeia a atuar no país lusófono.
A ajuda internacional chega tarde, mas é de louvar, diz numa entrevista ao Observador o bispo católico D. Luiz Fernando Lisboa, líder da diocese de Pemba e responsável da Igreja em toda a província de Cabo Delgado — e que há mais de dois anos que se tem desdobrado em alertas à comunidade internacional sobre os ataques na região. “Custa-me que muita gente não tenha interesse“, lamenta o bispo, salientando a diferença de tratamento a nível global entre o mundo ocidental e África. À falta de uma presença forte do estado nas regiões mais remotas de Moçambique, a enorme rede de paróquias e missionários da Igreja Católica tem sido o mais próximo de uma organização social no norte do país: os religiosos foram os últimos a abandonar as aldeias em perigo, depois da polícia e das ONGs, e são eles quem hoje presta assistência, física e psicológica, ao meio milhão de deslocados internos que a guerra já originou.
À distância, a partir da cidade de Pemba — capital da província de Cabo Delgado —, o bispo brasileiro, radicado em Moçambique há perto de 20 anos, descreve o ambiente de terror que se vive naquele território. “A verdade é que toda a província de Cabo Delgado, que tem 2,34 milhões de habitantes, toda a província foi atingida. Quem não é deslocado, está a acolher deslocados ou está a ajudar deslocados“, resume o religioso, que há três meses se reuniu com o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, para concertar esforços na luta contra o extremismo — com Nyusi a reconhecer a importância da difusão das estruturas da Igreja na província para os esforços de apoio às populações afetadas pelos terroristas. No verão, D. Luiz Fernando Lisboa recebeu um telefonema do Papa Francisco, que colocou os recursos do Vaticano ao serviço da diocese moçambicana. Na semana passada, o Papa doou pessoalmente 100 mil euros, que servirão para a construção de um centro de saúde na região.
Há mais de dois anos que tem sido uma das principais vozes a denunciar os ataques terroristas. Só ao fim deste tempo todo é que temos visto a atenção do mundo a virar-se para Moçambique. Custa-lhe que a comunidade internacional tenha demorado tanto tempo a acordar para o problema?
Obrigado por esta oportunidade. De facto, custa que a comunidade internacional tenha demorado um pouco para acordar para esta realidade. Ajudou muito a entrada nesse campo da figura carismática e emblemática do Papa Francisco. Depois de ele ter comentado, no dia da Páscoa, sobre a situação da crise humanitária que vivia Cabo Delgado, esta guerra tomou um contorno um pouco mais amplo — e muito mais gente começou a preocupar-se com ela. Custa-me que muita gente não tenha interesse. Sentimos como se África não contasse, como se os africanos, as vidas dos africanos, não contassem. Felizmente, ultimamente tem havido um maior apelo, uma maior consciência, uma maior participação da comunidade internacional. Um interesse muito maior.
O problema é estarmos a falar de África? Nos últimos três anos houve atentados terroristas noutros locais do mundo, na Europa: sente-se triste pelo facto de a reação da comunidade internacional ser desproporcional?
Muito triste. Nós ouvimos algum ataque na Europa… Qualquer ataque terrorista é muito triste, porque uma vida apenas que se perca já é muito. É desproporcional, porque morrem três pessoas, ou quatro, ou cinco, ou dez na Europa, ficamos abismados, ficamos sentidos… Quantas vidas estão a ser ceifadas na África e não há o mesmo impacto? Não há a mesma dimensão na cobertura, não se fala tanto. Felizmente, agora tem havido um pouco mais de abertura, um pouco mais de consciência. Penso que começamos a vencer o indiferentismo de que o Papa Francisco tem falado tanto. Uma das doenças deste século é a indiferença. Isto não pode continuar assim.
No verão, o Papa Francisco telefonou-lhe para falar sobre o problema dos ataques em Cabo Delgado. Pode lembrar o que o Papa lhe disse?
Em primeiro lugar, foi uma surpresa o telefonema dele. Jamais esperava isso. Quando ele chamou — era um número privado —, eu estava a conversar com um seminarista. Até disse “não vou atender”. Deixei de lado o telefone. Como insistiu, então atendi. Em primeiro lugar, pensei que fosse um bispo da Espanha, com quem eu havia falado algum tempo atrás, e depois quando ele disse “é o Francisco, de Roma” percebi que era ele. Ele quis telefonar para mostrar a sua proximidade connosco, para mostrar a sua preocupação com esta guerra, para dizer que estava a rezar muito por nós, que nos acompanhava diariamente nas notícias e estava muito interessado para nos acompanhar e também para nos ajudar naquilo que fosse preciso. Ele disse-me o nome de um dos cardeais com quem eu poderia falar mais frequentemente e apresentar as necessidades. De facto, eu tenho feito relatórios constantes e ele está a acompanhar muito de perto. Na semana passada, ele fez mais um gesto, que foi oferecer 100 mil euros da sua caridade pastoral. Porque a Igreja tem ajudado de muitas formas, através das Cáritas de vários países, através de organismos pontifícios, mas ele quis fazer este gesto da sua caridade pessoal. Ele faz isso muitas vezes, em situações mais extremas. Também não esperava isso.
100 mil euros.
100 mil euros que nós queremos aproveitar para, se possível, construir um ou dois centros de saúde em algum lugar próximo dos reassentamentos dos deslocados. Assim, vai servir a um bom número de pessoas.
Calculo que uma das principais missões da Igreja Católica — e da diocese de Pemba — perante esta crise tem sido dar apoio a muitos milhares de pessoas que ficaram sem casa ou tiveram de fugir. Consegue dar-nos uma ideia dos números? Atualmente, estamos a falar de quantas vítimas e quantos deslocados?
O número exato não temos. Temos falado há algum tempo, há alguns meses, de mais de duas mil mortes. Não é possível quantificar ainda. O número de deslocados já passa de 500 mil. Mais de meio milhão de deslocados. Podem ser 600, podem ser 700 mil. A verdade é que toda a província de Cabo Delgado, que tem 2,34 milhões de habitantes, foi atingida. Quem não é deslocado, está a acolher deslocados ou está a ajudar deslocados. Já extrapolou a província. Já estão a ir para províncias vizinhas, até para o centro do país. Para Sofala, que fica no centro, a mais de mil quilómetros daqui. É difícil trabalhar com números, mas os números são absurdos. A província de Cabo Delgado tem 17 distritos. Dos 17, nove estão envolvidos na guerra: já foram atacados ou estão nessa situação. Os oito que sobram estão lotados de deslocados. Cada distrito com 50, 70 mil. Pemba tem mais de 100 mil deslocados.
E o que é que a Igreja tem feito?
Eu gosto de falar do que a Igreja tem feito, mas gosto de falar que a Igreja está a trabalhar junto com outras organizações, tanto ligadas às Nações Unidas como outras organizações internacionais e da sociedade civil. Por exemplo, o Programa Mundial de Alimentação, que foi o grande vencedor do Prémio Nobel da Paz. A ACNUDH, a Unicef, a ACNUR e várias outras organizações. A Igreja tem trabalhado em conjunto, e também com o Governo, no sentido de ir ao encontro das vítimas. Em todos os sentidos: levando alimentação, tendas, roupas, esteiras, material agrícola. Aquilo de que as pessoas mais precisam. A Igreja, através da Cáritas, tem feito esse trabalho humanitário, mas não só. Nós temos feito, dos últimos quatro meses para cá, um trabalho de atendimento psicossocial. Percebemos que as pessoas não precisavam só de comida e não podiam ser vistas só como números, mas como pessoas. Para isso, era preciso que alguém se sentasse, ouvisse as suas histórias, escutasse os seus dramas e os seus traumas e pudesse, de alguma forma, ajudá-las a levantar a cabeça. A situação geral era de um aniquilamento, de uma total prostração da população. As pessoas saíram deixando tudo para trás. Deixando não só os seus pertences, mas deixando a sua aldeia, onde estão enterrados os seus mortos. É uma questão que dói na alma. As pessoas estão visivelmente perturbadas.
E sem perspetiva de voltarem às aldeias, que foram destruídas.
Exatamente. Nós temos, na diocese, duas irmãs, duas religiosas, que são psicólogas. Elas fizeram formação para dezenas de pessoas, padres, irmãs, jovens, animadores, que estão a ir para essas comunidades e a fazer esse atendimento. Vão sempre em dupla e reúnem dez, quinze, vinte, vinte e cinco pessoas, e com cada grupo fazem de seis a dez encontros, de forma a que as pessoas tenham tempo para falar, para contar e, depois, para começar a soltar-se — até a cantar, porque não se via mais isso nos acampamentos entre as pessoas. Esse trabalho tem sido muito importante, tem sido muito reconhecido. Algumas organizações já têm pedido para esse nosso grupo coordenador treinar os seus voluntários. Já fomos para [a província de] Nampula. Nampula tem mais de 40 mil deslocados de Cabo Delgado, e então o arcebispo pediu e essas irmãs já foram para lá, deram essa formação, e têm ido agora aos distritos de Cabo Delgado para ajudar a liderança que está a trabalhar com os deslocados, para que o trabalho possa ser, de facto, mais humanizado e essas pessoas possam ter essa ajuda de que precisam.
Ajude-nos a fazer a história desta guerra. Sabemos que os primeiros ataques aconteceram em outubro de 2017. Antes disso, já era possível perceber que se estava a organizar um movimento radical islâmico no norte de Moçambique — ou o primeiro ataque foi uma surpresa completa?
Aconteceram alguns pequenos focos e isso está devidamente registado por alguns estudiosos. Houve alguns focos em alguns distritos da província de Cabo Delgado, mas situações pequenas e que foram resolvidas na época. Depois, houve em Mocímboa da Praia e em Palma, algumas situações de clivagens entre religiosos locais e outros que entravam — ou estrangeiros ou mesmo moçambicanos que tinham saído para fora, para estudar. Houve algumas situações um pouco alarmantes. Os religiosos que estavam aqui reportaram às autoridades essa situação, mas não foi dada a devida importância. Naquela época, há uns sete ou oito anos, foi visto como uma intriga entre religiosos — e não se deu a devida importância.
Estamos a falar da comunidade islâmica, diferentes perspetivas entre a comunidade muçulmana.
Exato. Depois, isso tomou outros contornos e começou esta situação. Começaram os primeiros ataques. Os muçulmanos de Cabo Delgado sempre se afastaram disto. Disseram “não são nossos, não temos nada com isso” — e de facto nós nunca tivemos problemas de relacionamento entre as religiões aqui. Nem em Cabo Delgado, nem em Moçambique. Sempre houve um bom relacionamento, trabalho em conjunto, caminhadas pela paz. Sempre tivemos um bom relacionamento.
E ainda hoje se mantém?
Ainda hoje temos. Nesta semana, tivemos um encontro promovido pelo IESE [Instituto de Estudos Sociais e Económicos], com líderes religiosos aqui em Pemba. Estivemos a debater a guerra e toda esta situação.
Em fevereiro deste ano, quando escrevi um texto sobre o que se passava em Cabo Delgado, entrevistei um académico que apontava um detalhe: é possível recuar até ao período colonial português e identificar ao longo das últimas décadas uma desvalorização das dinâmicas religiosas entre as comunidades muçulmanas e, sobretudo, a falta da presença organizada do estado em muitas destas regiões mais remotas, que permitiu que estas fações mais radicais se possam ter desenvolvido à margem, passando despercebidas. Parece-lhe uma explicação para este problema consistente com a sua experiência?
Existem em Moçambique — existiu nos últimos anos — algumas assimetrias e isso fazia-se muito notar. Aqui no norte, as três províncias do Norte sempre foram campeãs em termos de indicadores sociais. Sobretudo as províncias de Cabo Delgado e Niassa, que são as duas no extremo norte. Índices muito elevados de desnutrição, de analfabetismo… Esses dados todos sociais eram muito fortes aqui. Isso mostra uma falta de presença do Estado, uma falta de políticas públicas que atendam a população, sobretudo os mais pobres. Um investimento insuficiente na área da educação. Construíram-se muitas escolas ultimamente, mas não o suficiente. Os jovens vão até uma determinada classe e depois não podem continuar. Ficam sem escolaridade e sem emprego. Tudo isto, esta pobreza generalizada, a falta de oportunidades, algumas situações de clivagens entre algum grupo étnico com outro… A questão económica, que eu penso que é muito forte. Cabo Delgado é uma província cheia de recursos naturais: o gás, que é o mais forte, os rubis, ouro, pedras semi-preciosas, grafite. Temos muitas minas abertas. Tudo isso trouxe para cá um número muito grande de estrangeiros. Não só pessoas vindas de outras províncias de Moçambique, mas um grande número de estrangeiros. Junte tudo isso a uma certa desorganização social e são elementos fortes para aquilo que está a acontecer agora. Junte todos estes fatores e temos esta guerra.
E o extremismo desenvolveu-se sempre de uma forma muito discreta até ao ponto em que aconteceram os primeiros ataques. Sem dar sinais.
No começo, não se falava tanto de extremismo religioso, não reivindicavam isso. Foi a partir do início deste ano que começaram a apresentar-se como Estado Islâmico. Há muitas controvérsias. Há estudiosos, historiadores, que fazem essa ligação, dizem que o forte de tudo isto é o Estado Islâmico, é o fundamentalismo, e outros acentuam que são os recursos naturais que estão a causar toda esta guerra. Outros — e eu sou mais por essa teoria — dizem que é um conjunto de fatores que deram o combustível necessário para esta guerra.
Um dos aspetos mais enigmáticos é que ainda é muito difícil perceber as verdadeiras motivações por trás do grupo que está a levar a cabo os ataques, porque não tem sido fácil entrar no grupo, olhá-los a partir de dentro. O que é que sabemos hoje sobre quem são estas pessoas?
Muito pouco. Muito pouco. É verdade que há alguns historiadores que dizem de onde é que eles vieram, de onde é que estão a vir esses grupos. Mas é muito difícil. Não há um interlocutor. Algumas pessoas já me perguntaram: “Mas é possível fazer uma mediação, encontrar pessoas que possam mediar esse conflito?”. Mas mediar com quem? Quem é a pessoa visível? Quem são as pessoas com quem se pode conversar, com quem se pode negociar? É difícil, é muito difícil.
Nem há um líder?
Não. Pelo menos, não se apresenta assim. Só têm dito que é o Estado Islâmico.
Este mês aconteceu aquele que foi até agora o pior ataque de todos, de acordo com as notícias de que 50 pessoas foram assassinadas, decapitadas numa aldeia. A dimensão deste ataque foi decisiva para mudar a forma como olhamos para o conflito em curso? O que é que aconteceu?
Não dá para dizer ainda que agora foi o mais violento. Em abril, nós tivemos uma chacina, praticamente, de 52 ou 54 jovens, na aldeia de Xitaxi, que é no mesmo distrito de Muidumbe, onde aconteceram agora os últimos ataques. De uma vez, mais de 50 jovens. Desta vez, não há certeza ainda dessa chacina, de 50 jovens num campo, como disseram. Nós tentámos, telefonámos muitas vezes, recebemos telefonemas de pessoas que saíram do local e não puderam voltar para ver. Não se sabe ao certo. Que morreu muita gente, isso é verdade. Nós temos fotos que foram enviadas, de corpos em decomposição… Morreram muitas pessoas. Só que como eles estão ainda na área, em algumas aldeias, não é possível voltar para ver. Essas imagens que correram agora, inclusive da missão de Nangololo, na aldeia de Muidumbe, são lideranças nossas que ficaram escondidas no mato e tiveram a coragem de, na ponta do pé, voltar ali e fazer aquelas fotos. E perceberam que eles não estavam ali na missão, mas tinham entrado e foi feito todo aquele estrago que deve ter visto. Mas não é seguro que não estejam na região. A polícia tem dito que já reassumiu o controlo de Muidumbe-sede, ou seja, a sede do distrito, mas eles podem estar noutras aldeias. Dessa última vez, parece que foram 13 ou 14 aldeias do distrito de Muidumbe. São muitas aldeias.
A diocese de Pemba abrange…
Toda a província de Cabo Delgado. A nossa província de Cabo Delgado é praticamente do mesmo tamanho de Portugal.
E tem quantas paróquias e missões?
Tem mais ou menos 26 paróquias. Algumas estão em criação. 26, 27 paróquias, contando aquelas que estão a ser criadas.
Imagino que muitos dos relatos que chegam depois ao resto do mundo venham também das estruturas da Igreja nos vários locais. Tendo em conta esses relatos que vai recebendo dos padres, das irmãs e das pessoas envolvidas nas paróquias, qual tem sido o modus operandi do grupo extremista? Atacam as aldeias, chegam de noite, de dia, há raptos?
Quando os ataques se intensificaram, sobretudo neste ano, a partir de março para cá, muitas autoridades saíram das aldeias, por causa dos perigos que começaram a correr, sobretudo nas vilas, nas sedes. Começaram a sair por prevenção. Depois, saíram as organizações que estavam lá, as ONGs. E, por fim, saíram os religiosos, os missionários e missionárias. Saíram a meu pedido, porque estavam correr riscos. Deve ter ouvido falar de duas irmãs, em Mocímboa da Praia, que ficaram 24 dias nas matas em poder dos insurgentes. Foram dias muito difíceis, uma situação muito difícil. Os missionários estão espalhados pela província. Saíram daqueles lugares. Por exemplo, se os missionários estivessem naquele momento agora em Muidumbe, teria sido uma outra tragédia. Já foi uma tragédia as pessoas que morreram e toda aquela destruição. Os missionários estão espalhados pela província, a trabalhar com os deslocados, a dar atendimento, indo ao encontro, tentando cuidar as feridas. Perguntou sobre o modus operandi: eles são muito flexíveis e mudam bastante. Começaram por atacar postos policiais, depois pequenas aldeias, depois passaram a atacar nas estradas. Depois, aldeias maiores, foram para as vilas e, por último, começaram a fazer ataques em simultâneo. Antes, faziam um de cada vez. Começaram a fazer três, quatro ataques ao mesmo tempo.
O que significa que têm mais recursos.
Ou têm recursos ou têm tática de guerrilha. Pode não ser um grupo tão grande, mas consegue amedrontar todo o mundo.
Há uma noção de quantas pessoas pertencem ao grupo extremista?
Não. Não há a mínima possibilidade de saber isso, não sei.
No início do ano, havia uma estimativa de cerca de três mil membros, mas era uma estimativa muito por alto, com o número a aumentar constantemente. Por isso é que também lhe queria perguntar se tem identificado esforços de recrutamento: se os ataques nas aldeias também passam para uma fase de recrutamento de novas pessoas para o movimento.
Sem dúvida. Primeiro, há raptos. Há muitas meninas, raparigas jovens, que são raptadas. Muitas. Depois, eles levam também jovens rapazes e tentam convencê-los a ir para o lado deles. E muitos são atraídos por dinheiro, por promessas… Aqueles que se recusam, como esses jovens de Xitaxi que referi, são mortos.
Na província de Cabo Delgado, qual é a percentagem de católicos e de muçulmanos, tem essa ideia?
A província de Cabo Delgado é uma das duas províncias (Cabo Delgado e Niassa) onde há uma prevalência maior de muçulmanos em relação aos católicos. Não é tão grande essa diferença, mas é uma diferença em favor dos muçulmanos. Na verdade, o que predomina mais são as religiões tradicionais africanas. Esse é o maior número. Mas, entre as duas, os muçulmanos têm um número ligeiramente maior.
Pensa que isso, de alguma forma, tem determinado os alvos do grupo extremista? Atacando primeiro zonas onde vivem mais muçulmanos, para tentar de alguma maneira recrutar novos membros? Ou não tem sido essa a lógica dos ataques?
Não penso que seja essa. Muitas pessoas tentam transformar esta guerra numa guerra religiosa contra os cristãos. Não é verdade. Assim como já foram destruídas muitas igrejas cristãs, também foram destruídas mesquitas. Assim como nós perdemos líderes, catequistas, animadores, também os muçulmanos perderam líderes. Algumas lideranças religiosas dos muçulmanos também foram mortas. Não há muita lógica nisto tudo que está a acontecer.
Uma das dúvidas que ainda se mantêm na cabeça de muitos: onde é que este grupo consegue financiar-se, obter armamento?
Eles já atacaram algumas bases das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique. Nesses ataques, conseguiram alimentos, armas e uniformes — tanto é que eles usam, muitas vezes, uniformes das Forças de Defesa. Mas eles também têm armas mais sofisticadas, que vêm de fora. De onde, não sei dizer. Costumamos dizer que na guerra não há vencedores, só perdedores. Mas há quem lucre com a guerra. Os armamentos vêm de algum lugar, de fora também. Não são só armamentos de Moçambique. São também de fora.
Há algumas semanas, em setembro ainda, reuniu-se com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi. Essa reunião serviu para pacificar uma certa tensão que existiu, durante algum tempo, entre Igreja e Estado, e para concertar esforços — já que, como dizia há pouco, os religiosos até foram dos últimos a sair das aldeias e a Igreja é uma das forças implementadas na província de Cabo Delgado? Tem havido um trabalho conjunto entre Igreja e autoridades civis?
Com certeza. A Igreja é uma grande colaboradora do Governo. Deste e de outros governos. A Igreja, em todas as partes do mundo inteiro, tem sempre uma capilaridade muito grande. Está presente em todos os lugares e o trabalho da Igreja não é só de evangelização. Quando dizemos “só de evangelização” não estamos a diminuir nem a minimizar. A evangelização inclui a dignidade, resgatar a dignidade do ser humano. É por isso que a Igreja se preocupa com a assistência social, em dar pão a quem tem fome. Isso faz parte do próprio projeto de Jesus. Quando ele estava a pregar e percebeu que a multidão estava com fome, ele disse para os discípulos “dai vós mesmos de comer”. Uma evangelização, a pregação da palavra, supõe também resgatar a dignidade do ser humano. Não pode falar para quem está de barriga vazia. A Igreja sempre colaborou com o Governo porque faz um trabalho muito forte de assistência social sem perguntar qual a religião. Aqui, por exemplo, nós temos escolas católicas e algumas escolas cuja maioria são muçulmanos que lá estudam. Mas não tem nenhum problema. Nós trabalhamos com o ser humano. A Igreja sempre foi uma grande parceira do Governo. Desde o começo, havia pessoas que queriam negar a guerra, que não queriam que se falasse da guerra, e a Igreja sempre falou, nunca deixou de falar do que estava acontecendo. Isso motivou a que algumas pessoas começassem a atacar a Igreja, alguns membros da Igreja, e houve um debate muito forte na nação.
Por alertar para as dificuldades sociais vividas pelas populações?
Exatamente. Houve muitos ataques, de algumas pessoas, alguns membros que supostamente estavam a defender o Governo. Houve também por parte de comentadores uma defesa e um contra-ataque. Ficou um momento de muita tensão. O Presidente veio até Pemba, veio aqui e nós conversámos, e penso que isso serviu para diminuir um pouco essa tensão. Foi importante perceber que a Igreja quer ajudar. A Igreja, quando fala — como eu disse ao Presidente e digo a qualquer pessoa —, aquelas coisas que eu digo, que os outros bispos dizem, é o que o Papa Francisco diz. É o que está na Doutrina Social da Igreja. Não pode ser diferente. Se é uma Igreja autêntica, essa Igreja tem de falar, tem de mostrar com a realidade.
Nesse encontro que teve com o Presidente moçambicano em setembro, discutiram a estratégia de combate aos ataques, as linhas orientadoras dessa estratégia?
Não, não discutimos isso. Foi um momento de conversa, falámos muito sobre a guerra. Ele deu a opinião dele, disse todo o esforço que está a ser feito, e eu também dei o meu ponto de vista. Ele reconheceu o trabalho que a Igreja faz, mostrou aquilo que o Governo tem feito e eu também o reconheci. Foi um encontro bom, de diálogo, de respeito, sem nenhum problema.
Os apelos recentes que têm sido feitos na comunidade internacional — no Parlamento Europeu, já ouvimos também o secretário-geral das Nações Unidas pronunciar-se recentemente —, esta nova discussão sobre o problema que aí se vive, estão a dar-lhe mais esperança de que possa haver uma ação internacional de peso contra este problema?
Nós temos muita esperança de que esta guerra termine. Penso que a ajuda internacional vem um pouco tardia, para nós que estamos aqui, mas louvamos este passo que está a ser dado. O Parlamento Europeu falou, ofereceu ajuda; o Governo moçambicano pediu ajuda, requisitou. Nós esperamos que essa ajuda se concretize o mais cedo possível, porque o povo não aguenta mais. Nós estamos a viver de uma maneira extrema, não sabemos mais como ajudar, onde ir buscar recursos. Têm vindo muitos recursos, mas se pensa em 500 mil pessoas… É muita gente para alimentar, é muita gente para recolocar num lugar, é muita gente para oferecer terra para plantar. É muito complicado. Tenho dito que, se esta guerra acabar hoje ou amanhã, teremos anos pela frente de reconstrução.
Neste momento, imagino que haja muitas estruturas provisórias, muita gente a viver em estruturas da Igreja… Como está a ser feito o acolhimento dos deslocados?
Na verdade, a maior parte dos deslocados está a ser acolhida nas famílias. Aqui ao lado de Pemba, em Metuge, temos sete acampamentos. Nesses acampamentos estão mais de 20 mil pessoas. Mas a grande maioria está nas casas, nas famílias, nos quintais das casas. A população de Cabo Delgado tem dado um exemplo magnífico de acolhimento. O povo, que já é pobre, que tem tão poucos recursos… Famílias com cinco membros estão a acolher mais dez, mais 15, mais 20 pessoas. Nós já fomos visitar famílias onde, nos quintais, estão 60 pessoas. Imagine. A maior parte das pessoas estão a ser acolhidas por outras famílias nas casas. Mas, claro, numa situação absolutamente precária, onde falta quase tudo. O Governo agora está a trabalhar no sentido de realojar essas pessoas, oferecendo um lugar para fazer a casa e uma área para poder plantar, trabalhar a terra. Estamos a começar a época da chuva e há muita urgência em realojar as pessoas.
O senhor é brasileiro, já está em Moçambique há alguns anos. Este período da guerra tem-no marcado particularmente… Como é que isto o tem impactado pessoalmente?
Eu já estou em Moçambique há quase 20 anos. Em janeiro vou completar 20 anos. Houve um tempo que fiquei fora, quatro anos, mas mesmo estando fora só respirava Moçambique, mandava missionários para cá, porque sabia que ia voltar. É o período mais difícil dos meus quase 20 anos aqui. Num período de guerra, tem de se reinventar cada dia. Toda a nossa pastoral tem mudado. O nosso plano de pastoral, por causa da Covid em segundo plano, mas, principalmente, por causa da guerra, mudou tudo. Nós tivemos de refazer todo o plano, tivemos de mudar as estratégias, mudar tudo. Os missionários saíram, algumas paróquias estão sem funcionar, porque tiveram de sair de lá nessas áreas. Mudou tudo. Nós temos missionários que chegaram de há três anos para cá. Temos vários missionários que dizem “não conheço Cabo Delgado sem guerra”. Porque vieram no início da guerra ou durante a guerra. Muitos deles não conhecem Cabo Delgado sem guerra.
Falava agora mesmo de como a questão da pandemia também atrapalha os esforços de resistência. Sobretudo na questão dos deslocados, de que forma é que a pandemia está a colocar entraves à vossa ação? Calculo que, nos acampamentos, manter distâncias e ter máscaras possa estar a ser um grande desafio.
A pandemia, como disse, para nós está em segundo plano. Nós temos feito todo o esforço, distribuímos milhares, milhares e milhares de máscaras. Mas não há muita adesão por parte da população. Nos acampamentos, a gente vai, fala, pede, mas depois viramos as costas e o povo fica todo sem máscara, todos juntos. Deus tem tido muito trabalho para cuidar que esta doença não chegue forte aqui. A situação que o povo está a viver aqui, se tivéssemos um nível de contaminação como tem tido a Europa e a América, misericórdia: seria uma tragédia terrível na África.
Neste momento, em Cabo Delgado, há poucos casos?
Vi há pouco as estatísticas, que apresentam todas as noites no jornal. Nós estivemos sempre no terceiro lugar no número de casos. Em primeiro, a cidade de Maputo, depois a província de Maputo, depois Cabo Delgado. Hoje, fiquei impressionado com o número de casos em Cabo Delgado, que baixou muito. Estava sempre nos três dígitos, mais de 100, mas hoje, se não me engano, eram 38 casos ativos. Isso é muito bom, espero que seja um pouco real. É claro que nós aqui não temos testagem massiva, então não é possível saber exatamente quanta gente pode estar positiva. Mas, pelo menos, hoje pareceu que diminuiu.
Mas se chegasse em força um surto de Covid, as condições que existem atualmente na província facilitariam a dispersão do vírus muito rapidamente.
Meu Deus. Seria mesmo uma contaminação geral. Sem contar que nós não temos estrutura. Nós é que preparámos um centro de acolhimento para pessoas infetadas, mas não temos uma preparação. Se fosse de uma forma muito forte, não teríamos como acolher e atender todos os casos. Felizmente não tem acontecido.
D. Luiz, muito obrigado pela disponibilidade para a entrevista.
Quero aproveitar, se me permite, uma última palavra, para agradecer a sensibilidade dos portugueses e das portuguesas. Temos recebido muitos apoios individuais, pessoas que estão preocupadas, organizações de Portugal. Em Portugal estão a ser feitas pelo menos três campanhas, que eu saiba, em favor de Cabo Delgado. Agradeço muito àqueles que puderem ajudar e ser solidários, porque, de facto, estamos a precisar muito. Muito obrigado por esta oportunidade.