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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Odemira. Dois anos depois da cerca sanitária, nenhum dos contentores prometidos está completamente legalizado

Contentores dignos para alojar trabalhadores imigrantes foram prometidos pelo governo durante surtos da Covid. Dois anos depois, muitos estão autorizados e até habitados, mas aguardam vistoria.

As quatro filas de contentores, uma delas cortada a meio por estendais pontualmente adornados com peças de roupa, chamam a atenção a quem circula naquela estreita estrada no concelho de Odemira. Não têm praticamente nada à volta, a não ser campos agrícolas e uma ou outra casa adiante. Mesmo no exterior, sente-se o aroma a comida condimentada e ouve-se o refogar nas frigideiras. É hora de jantar, depois de um dia de trabalho, por acaso ameno, em plena época da apanha da fruta.

Poucos vão aparecendo, sinal de que os contentores são recentes e ainda não estão na sua capacidade máxima. Uns cozinham no interior, outros descansam junto às portas — ora a conversar entre si, ora com auscultadores e telemóvel apontado ao rosto em vídeochamadas. São trabalhadores sazonais, ali instalados pelas empresas que os contratam para os campos, não longe.

A desconfiança é óbvia quando veem os jornalistas do Observador, duas caras estranhas naquelas instalações no meio do nada plantadas. Com um inglês tremido e o pé atrás, a comunicação não é fácil. Os que aceitam falar pouco mais revelam do que a satisfação com as condições. “It’s good“, comenta um dos trabalhadores, que aponta algumas características do alojamento amovível: cada contentor tem ar condicionado, duas máquinas de lavar roupa, frigoríficos, dois fogões, wifi. Por aí viverem, não pagam nada. Mas apesar de já estarem a ser habitados, e de as condições serem, aparentemente, satisfatórias para quem lá vai vive, estes alojamentos não estão ainda legalizados. Nem estes, nem nenhum contentor em Odemira.

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O nome ‘técnico’ destes alojamentos temporários é “instalação de alojamento temporário amovível (IATA)”, uma designação mais aprazível do que ‘contentores’, que foram prometidos pelo Governo numa altura em que os casos de Covid-19 explodiam no concelho e uma cerca sanitária expunha as más condições em que muitos imigrantes vivem. Em maio de 2021, a freguesia de São Teotónio contabilizava 1.910 casos por 100 mil habitantes; Longueira/Almograve tinha 510 casos por 100 mil habitantes.

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Dois anos depois, já há contentores (novos e antigos) autorizados, outros instalados e habitados. Mas nenhum passou ainda pela fase final: a vistoria para emissão de autorização de utilização. É isso que dizem os dados indicados ao Observador por Ricardo Cardoso, vice-presidente da Câmara Municipal de Odemira. Atualmente, existem 17 IATA autorizadas (cada IATA tem vários contentores), sendo que 12 já prestaram a caução devida (para garantir que no fim do período transitório a IATA é desmantelada como prevê a resolução do Governo, de maio de 2021), enquanto cinco ainda não a prestaram.

Das 17, para três IATA já instaladas — e que têm capacidade 632 pessoas — foram pedidas vistorias finais “para efeitos de emissão de autorização de utilização”. Estas vistorias têm como objetivo garantir que o resultado final corresponde ao projeto. Sem elas, o processo de legalização não está completo. Segundo Ricardo Cardoso, numa resposta por escrito ao Observador, estes três pedidos de vistoria já estão agendados, mas não detalha para quando.

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Ao todo, estão já autorizadas IATA que podem acolher 3.000 trabalhadores, um número que a autarquia considera suficiente, “tendo em conta que essa solução se dirige aos trabalhadores sazonais das explorações agrícolas”. Aliás, “por esse motivo o Município deliberou não autorizar mais IATA no concelho”. A instalação dos contentores está a cargo das empresas que, segundo a resolução de Conselho de Ministros aprovada em maio de 2021, têm de dirigir à Câmara os pedidos de instalação ou regularização das IATA.

A resolução dá à autarquia 15 dias para decidir. Se não forem cumpridos, o pedido é automaticamente aprovado. Mas Ricardo Cardoso assegura: “Todos os pedidos de instalação ou regularização de IATA objeto de decisão única por parte da conferência procedimental deliberativa, com pronúncia de todas as entidades competentes da administração central e local, foram decididos dentro do prazo de 15 dias previstos”. A autorização “obriga à execução em seis meses”, sublinha o vice-presidente da Câmara de Odemira, sendo que “já foram notificadas todas as empresas em que este prazo foi ultrapassado”.

Há contentores novos, mas também outros que já existiam antes dos surtos de Covid-19 e da cerca sanitária de abril e maio de 2021. Com a resolução de 2021, também esses passaram a ter de ser sujeitos ao processo de legalização. Antes da resolução, existiam 18 IATA no concelho, sendo que, até ao final de 2022, nem todas tinham requerido o processo de licenciamento.

Dois anos após a cerca sanitária

Em abril de 2021, a cerca sanitária imposta em duas freguesias do concelho de Odemira expôs as condições precárias em que vivem muitos imigrantes. A resolução de conselho de ministros de então prometia agilizar a instalação de contentores condignos para esta população, que praticamente duplica na época alta da apanha no litoral alentejano.

Na altura, o primeiro-ministro, António Costa, admitiu que alguns trabalhadores imigrantes viviam “em situações de insalubridade habitacional inadmissível, com hipersobrelotação das habitações” e que a situação não era desconhecida do governo. Alias, dois anos antes, em 2019, o Conselho de Ministros tinha aprovado uma resolução em que previa a manutenção de contentores durante um período transitório de dez anos.

Ao fim desse período, os trabalhadores teriam de ser alojados em habitação em perímetros urbanos. Os contentores, justificava o Executivo, eram a opção escolhida perante a parca oferta habitacional no concelho para albergar tantos imigrantes e teriam de ser transitórios “por razões de sustentabilidade territorial e ambiental”.

Mas perante a explosão de contágios nos campos agrícolas, foi preciso fazer “ajustes” a essa resolução. Em maio de 2021, o governo aprovou uma resolução sucedânea para agilizar a instalação de contentores nas explorações e legalizar os que já existiam. O texto esclarecia que cada exploração agrícola teria a “obrigação” de disponibilizar aos trabalhadores sazonais “alojamento temporário digno, em instalações de alojamento temporário amovíveis”, e com condições dignas. Se se verificasse o contrário, a autoridade responsável teria de suspender o fornecimento de água.

A resolução também previa que as explorações agrícolas que já tinham contentores deveriam adaptá-los à nova resolução “no prazo de três meses, no caso de não ser necessária a sua relocalização, e no prazo de seis meses, caso seja necessária a sua relocalização”. Em maio de 2021, o Governo confirmava conhecer a existência de 299 contentores de alojamento no concelho e garantia: “todos cumprem com as condições de higiene e saúde obrigatórias”.

Mas havia irregularidades. Numa ação de fiscalização em maio desse ano em Odemira, acompanhada pelo Observador, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) detetou contentores sem água potável canalizada — uma situação que foi justificada pela empresa como uma “questão técnica” temporária. Mas hoje, dois anos depois, há ainda muitos contentores habitados à margem da lei.

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Empresas criticam atrasos

Carlos Graça, diretor da Unidade Local do Litoral e Baixo Alentejo da ACT, aponta para os contentores instalados mesmo à entrada de uma quinta de grandes dimensões que se dedica à produção de frutos vermelhos, em Odemira, e que emprega 300 pessoas. É segunda-feira, pouco passa desde o início da ação de fiscalização surpresa que a ACT organizou à exploração agrícola, que já tem antecedentes de irregularidades. Aqueles contentores, com vestígios esporádicos de ferrugem na fachada, “não estão homologados nem reúnem as condições”, explica. “Não estão legais, têm de ser removidos, não obedecem aos critérios.”

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Não é o caso destas, mas Carlos Graça explica que a ACT já detetou situações irregulares ligadas a empresas de prestação de serviços, que nascem e desaparecem sem rasto e que complicam o trabalho da autoridade. Muitas vezes operam à margem da lei, através da exploração de trabalhadores e da subdeclaração contributiva e tributária.

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Carlos Graça já detetou um caso de IATA numa exploração arrendada a estes prestadores, que por sua vez as subarrendavam a outros trabalhadores ou a imigrantes que procuravam trabalho e, assim, se endividavam para pagar as rendas quando encontrassem emprego. Uma situação particularmente irregular dado que as instalações deveriam ser para os trabalhadores temporários das quintas. A IATA em causa teve o projeto aprovado, foi cofinanciada com dinheiros públicos (como as IATA podem ser), está construída, mas ainda aguarda a vistoria final. “Tudo é maneira de fazer negócio”, constata, por sua vez, Cristina Rodrigues, subinspetora-geral da ACT, que coordena a autoridade laboral naquela visita surpresa.

Há, portanto, IATA que estão habitadas e que não reúnem as condições legais, mas que se vão mantendo num concelho onde escasseia a oferta de habitação para tantos trabalhadores sazonais. Ao Observador, Luís Mesquita Dias, presidente da direção da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA), indica que as empresas “saudaram vivamente a resolução de Conselho de Ministros que, finalmente, permitiu a construção das IATA”.

“Era um pedido e uma vontade das empresas, uma necessidade por que se vinham batendo desde 2016, pelo menos”, diz. Mas lamenta os atrasos. “Acontece que tudo no nosso país é demorado, lento, burocrático”, atira, acrescentando que “apesar da insistência que temos feito com a Câmara de Odemira para que as vistorias finais sejam feitas, elas tardam muito”. “A resposta é sempre que os procedimentos relativamente às vistorias ainda estão a ser finalizados”, indica.

O licenciamento das IATA é um processo que envolve mais entidades do que a autarquia de Odemira. O grupo de projeto do Mira, criado com a resolução de 2019 e que em 2021 ficou com a função de garantir o cumprimento das novas regras das IATA, é presidido pelo secretário de Estado da Agricultura e inclui, por exemplo, a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas ou a Agência Portuguesa do Ambiente, entre muitas outras entidades. Muitas das quais responsáveis por várias das fases do processo de legalização.

É por isso que Luís Mesquita Dias não atribui os atrasos no processo apenas à autarquia. Nas respostas enviadas ao Observador, a Câmara de Odemira não explicou porque é que, dois anos depois, ainda não foram feitas as vistorias finais. Mas antes dessa fase, “houve outro tipo de entraves” que foram atrasando o processo, descreve Luís Mesquita Dias. Segundo o responsável, o ICNF, numa primeira fase, “só dava parecer positivo à instalação quando todos os outros aspetos relativos àquela exploração agrícola estivessem regularizados”. A associação bateu-se por uma espécie de regime de “via verde especial” e, segundo diz, teve o apoio do Ministério da Agricultura que atuou junto do ICNF para acelerar o processo.

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Com a seca e o aumento dos custos de produção, Mesquita Dias admite que muitos proprietários não venham a conseguir instalar IATA nas suas explorações para acolher os trabalhadores, pelo que não chegam a começar o processo de licenciamento e de construção. “Com o aumento dos custos de produção por via da inflação e da guerra, neste momento, ninguém consegue fazer uma IATA com os requisitos da legislação por menos de 5.000 euros por pessoa”, calcula. Mesmo com comparticipação do Estado, os custos são elevados para muitas empresas.

O responsável da AHSA admite que haja casos de empresas que, tendo IATA, não iniciaram a sua legalização porque estas não cumprem os requisitos impostos pela resolução do governo. Terão, por isso, de ser desmanteladas. A construção de habitação permanente poderia, para algumas, ser uma alternativa, não fossem as limitações impostas pelo Plano Diretor Municipal (PDM) na expansão dos núcleos urbanos.

Habitação pública, mas…

A resolução de 2019 criou o Grupo de Projeto do Mira (GPM), presidido pelo secretário de Estado da Agricultura, e deu-lhe a responsabilidade de, entre outras, “analisar a disponibilidade de soluções para o alojamento nos aglomerados urbanos” ou “identificar as áreas preferenciais para a instalação das novas áreas urbanas”.

Com a nova resolução de 2021, passou a ter também de “identificar o número e o fluxo de trabalhadores nas explorações agrícolas e as respetivas condições de habitação”. Também teria de, no prazo de 30 dias após a entrada em vigor da resolução, atualizar o programa de ação para o perímetro de rega do Mira para garantir a “habitalidade digna dos trabalhadores agrícolas temporários”. O Observador questionou o Ministério da Agricultura sobre o ponto de situação deste trabalho, mas não obteve resposta até ao momento.

O Ministério da Agricultura, aliás, deveria, com os municípios, “preparar o enquadramento do apoio à renovação de aldeias e recuperação de edificado no interior do território dos municípios de Odemira e Aljezur, no âmbito do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum”.

Na Resolução do Conselho de Ministros de 2021, sobre os contentores, o governo também dizia que o Programa 1.º Direito “continua a ser a medida adequada para a resolução do problema da escassez de habitação digna para os trabalhadores permanentes, através do qual será garantida uma solução permanente para uma necessidade constante”. Aliás, mandatava o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para, em conjunto com os municípios, promover o Programa 1.º Direito. O Observador pediu dados sobre a implementação deste programa no concelho de Odemira ao Ministério da Habitação, e também quis saber quais os planos de habitação pública para o concelho, mas sem resposta.

Já a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria “no âmbito da fiscalização das condições de habitalidade dos alojamentos existentes na região”, fiscalizar o cumprimento das obrigações fiscais relativamente aos contratos de arrendamento e subarrendamento para fins habitacionais. Mas o Fisco também não respondeu ao pedido de ponto de situação feito pelo Observador.

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