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O julgamento da Operação Marquês está cada vez mais próximo. Com a rejeição, esta quinta-feira, de todos os requerimentos de nulidades e inconstitucionalidades apresentados pelas defesas de José Sócrates e de mais quatro arguidos, que considerou “totalmente improcedentes”, o coletivo da Relação de Lisboa, liderado pela relatora Raquel Lima, deu um passo decisivo para que os autos avancem para a fase final do processo, validando a decisão de julgar o ex-primeiro-ministro por corrupção e outros crimes.
No total, estão em causa 118 crimes pelos quais o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou José Sócrates e os restantes 21 arguidos (17 cidadãos e quatro empresas) para um julgamento que poderá ser distribuído para julgamento já no segundo semestre deste ano.
Relação de Lisboa diz que Ivo Rosa não seguiu o “caminho do dinheiro” que leva a Sócrates
Por outro lado, os autos da Operação Marquês do segundo processo, relacionados com o despacho de pronúncia de Ivo Rosa, que acusava o ex-primeiro-ministro de apenas seis crimes e que foi considerado nulo pelo Tribunal da Relação de Lisboa em março, já estão também a caminho do Tribunal Central de Instrução Criminal para ser decidida uma nova decisão instrutória.
Em nove perguntas e respostas, o Observador explica-lhe e o atual estado dos autos da Operação Marquês — um autêntico labirinto processual que tem cada vez menos escapatórias jurídicas para José Sócrates e restantes arguidos.
Que decisão tomou a Relação de Lisboa esta quinta-feira?
Um ponto prévio relevante sobre o atual estado da Operação Marquês. Desde que o juiz de instrução Ivo Rosa tomou a decisão instrutória em abril de 2021, os autos dividiram-se em dois processos diferentes:
- A pronúncia para julgamento propriamente dita decidida por Ivo Rosa — vamos chamar-lhe Bloco A ao longo deste texto. Foram pronunciados para julgamento em quatro processos autónomos: a dupla José Sócrates e Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara e João Perna. Só apenas o julgamento da dupla Sócrates/Santos Silva é que ainda não começou;
- E o despacho de não pronúncia, que corresponde a um arquivamento da esmagadora maioria dos 189 crimes que o Ministério Público imputou na acusação aos arguidos da Operação Marquês — vamos chamar-lhe Bloco B.
A decisão desta quinta-feira está relacionada com este Bloco B, visto que a Relação de Lisboa de 25 de janeiro de 2024 revogou o despacho de não pronúncia do juiz Ivo Rosa datado de abril de 2021 e pronunciou José Sócrates e os restantes arguidos por um total 118 crimes (a grande maioria dos imputados pelo MP).
Estava em causa um conjunto requerimentos de nulidades e inconstitucionalidades do acórdão da Relação de Lisboa de 25 de janeiro que foram apresentados pelos arguidos José Sócrates, Carlos Santos Silva (o alegado testa-de-ferro de Sócrates), José Paulo Pinto de Sousa (primo de Sócrates), Joaquim Barroca (ex-vice-presidente do Grupo Lena) e a Lena Construções, SA.
As desembargadoras Raquel Lima (relatora) Madalena Parreiral Cabral e Micaela Pires Rodrigues rejeitaram todos os requerimentos das defesas.
José Sócrates não tinha interposto um incidente de recusa das desembargadoras no Supremo?
Sim, apresentou um novo incidente de recusa daquelas três desembargadoras. De acordo com a SIC e o jornal Eco, o ex-primeiro-ministro alegou um argumento anteriormente utilizado: que duas das magistradas não tinham legitimidade para apreciar o recurso porque já foram colocadas noutros tribunais superiores.
O incidente de recusa não deveria impedir as juízas de decidir o recurso?
Em teoria, sim. O principal problema para José Sócrates é que já apresentou inúmeros incidentes de recusa de magistrados de todas as instâncias judiciais desde que este processo se iniciou em 2014. Sendo que muitas vezes se limita a repetir argumentos já anteriormente utilizados.
Desta vez, o ‘cavalo de batalha’ do ex-primeiro-ministro prende-se com o facto de duas das três desembargadoras terem sido colocadas noutros tribunais da Relação no movimento judicial de 2023 antes de decidirem o recurso.
Logo no início do acórdão desta quinta-feira, a relatora Raquel Lima explica “não haver qualquer fundamento para que peçamos escusa” e acrescenta que a “jurisprudência e a doutrina vêm entendendo que não basta a mera apresentação de um requerimento de recusa de juiz para que se suspendam os trabalhos, sobretudo decorrendo uma audiência ou quando haja atos urgentes a praticar”, lê-se no acórdão.
Alegando que “existem crimes de risco de prescrição” (vários ilícitos de falsificação de documento), entendemos, pois, que para não prolongar mais a justiça da decisão do processo, se devem continuar a tramitar os autos”, decidiram as desembargadoras.
O facto das juízas terem sido colocadas noutro tribunal impedia decidissem a pronúncia para julgamento de janeiro?
Não. De uma forma simples, as juízas foram designadas para decidir o recurso do Ministério Público (MP) sobre a decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa antes de duas delas terem apresentado a sua candidatura a outros tribunais superiores.
O processo de forma cronológica:
- A distribuição do recurso do MP à desembargadora Raquel Lima ocorreu a 17 de fevereiro de 2023 às 11h10, segundo informação do próprio Tribunal da Relação de Lisboa que consta do acórdão;
- A mesma informação oficial descreve que “ainda não estava em vigor a legislação que determinou” as futuras “regras relativas à distribuição”, nomeadamente o sorteio de todos os membros do coletivo;
- Logo, a apreciação do recurso foi distribuída a Raquel Lima “e, em consequência, às adjuntas [Madalena Parreiral Cabral e Micaela Pires Rodrigues]”;
- Depois de ter sido fixado o coletivo, as magistradas começaram a estudar os autos, tendo sido colocadas em regime de exclusividade por decisão do Conselho Superior da Magistratura;
- A relatora Raquel Lima e a segunda adjunta Madalena Parreiral Cabral foram movimentadas para o Tribunal da Relação do Porto e para o Tribunal da Relação de Guimarães por decisão do Conselho Superior da Magistratura de 4 julho de 2023. Contudo, a 14 de julho de 2023, o órgão de gestão dos juízes determinou que as mesmas magistradas “se mantenham em exclusividade” na “apreciação e decisão” do recurso do MP sobre a decisão não pronúncia de Ivo Rosa, “em regime de acumulação de funções (…) e sem distribuição de serviço nos tribunais da Relação para os quais foram transferidas”.
- O movimento das juízas foi publicada em Diário da República de 31 de agosto de 2023;
- Ou seja, quando as juízas foram movimentadas para a Relação do Porto e de Guimarães, “já a sua competência para tramitar e proferir acórdão nestes autos estava fixada”, lê-se no acórdão.
Daí que as desembargadoras Raquel Lima (relatora), Micaela Pires Rodrigues e Madalena Parreiral Cabral entendam que houve “um respeito integral pelo princípio do juiz natural”.
Quais os principais argumentos das defesas apresentados na Relação e qual a decisão?
Além da questão da composição do coletivo que decidiu o recurso do MP, José Sócrates e outros arguidos acusaram a Relação de Lisboa de fazer uma alteração substancial dos factos, pois imputou a José Sócrates, a Carlos Santos Silva e a Armando Vara um crime corrupção passiva ilícita, quando o despacho de acusação remete a descrição legal do tipo de crime para a “corrupção passiva lícita” — um lapso detetado por Ivo Rosa e que motivou a sua declaração de prescrição desses crimes.
As desembargadoras defenderam, no seu acórdão de janeiro, que se tratava, como o próprios procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto alegavam no seu recurso, de um “lapso de escrita” e mantiveram a sua tese na recusa dessa alegada nulidade.
Além de explicarem que a tipificação legal do crime foi mudando com o tempo (a lei de 87 previa o crime de corrupção ilícita no art. 16.º, enquanto que o art. 17.º era para a corrupção lícita, o que foi alterado em 2010 e 2021), as desembargadoras perguntavam retoricamente. “Como explicar que a atuação de Ricardo Salgado [ou de qualquer outro alegado corruptor ativo de José Sócrates] seja enquadrada na prática de um crime de corrupção ativa ilícita (…) e que o comportamento daquele que recebe ou aceita receber a contrapartida [José Sócrates] pela prática desse acto, possa não ser qualificado de ilícito?”, lê-se no acórdão da Relação.
Acresce a tudo isto que, segundo as desembargadoras, os arguidos nunca se aperceberam desse lapso até Ivo Rosa o ter detetado. “Os arguidos sabiam qual era a qualificação do crime de que se defenderam (corrupção passiva para a prática de ilícito). Daí o nosso entendimento relativamente à existência de erro/lapso (…) Houve (…) um erro na declaração e não um erro de vício” (…)”, defendem.
As desembargadoras rejeitaram igualmente qualquer alteração substancial dos factos, visto que não alteraram os factos que compunham a acusação.
O que vai acontecer agora?
Rejeitadas todas a nulidades apresentadas por José Sócrates, Armando Vara, Carlos Santos Silva, José Paulo Pinto de Sousa, Joaquim Barroca e Construções Lena SA, as respetivas defesas têm agora 10 dias para apresentarem os respetivos recursos para o Tribunal Constitucional.
Tais recursos terão de ser instruídos apenas com as alegada inconstitucionalidades que os arguidos já apresentaram nos seus requerimentos agora decididos pela Relação de Lisboa.
Tais recursos não têm efeito suspensivo?
A crer na admissão por parte do mesmo coletivo da Relação de Lisboa nos mesmos autos da Operação Marquês de um recurso exatamente igual, a resposta tem de ser negativa.
De facto, a defesa de Henrique Granadeiro (ex- da Portugal Telecom) preferiu passar por cima da alegação de nulidades e entregou em março um recurso para o Tribunal Constitucional alegando várias inconstitucionalidades no acórdão da Relação de Lisboa que o pronunciou para julgamento por um crime de corrupção passiva, dois crimes de branqueamento de capitais e dois crimes de fraude fiscal qualificada.
Granadeiro, assim como Zeinal Bava (ex-CEO da Portugal Telecom), terão sido alegadamente corrompidos por Ricardo Salgado a troco de cerca de 50 milhões de euros, segundo a acusação do MP.
Ora, a relatora Raquel Lima admitiu este recurso de Granadeiro por “estar em tempo e ser legal” e determinou a sua subida imediata para o Constitucional “em separado” e “com efeito meramente devolutivo”.
Significa isto que recursos idênticos de José Sócrates, Armando Vara, Carlos Santos Silva, José Paulo Pinto de Sousa, Joaquim Barroca e Construções Lena SA que venham a ser apresentados terão necessariamente o mesmo efeito.
Qual é a consequência do facto do recurso ter efeito devolutivo?
A consequência é que os autos principais podem ser tramitados de forma livre pela relatora Raquel Lima.
Isto é, os próximos passos são seguintes:
- Os eventuais recursos de Sócrates, Vara, Santos Silva, Pinto de Sousa, Barroca e Construções Lena SA para o Tribunal Constitucional sobem em separado;
- E os autos principais (com o acórdão da Relação de Lisboa a pronunciar os arguidos para julgamento e respetiva prova) descem para a primeira instância, de forma a que os autos sejam sujeitos a distribuição no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Tendo em conta o prazo de dez dias para que as defesas apresentem os respetivos recursos para o Constitucional e respetivas questões burocráticas, é razoável que os autos principais entrem no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa no próximo mês de junho.
José Sócrates vai ser julgado por três crimes de corrupção e mais 19 crimes
Resta saber se o sorteio do coletivo de julgamento ocorrerá ainda antes das férias judiciais ou se tal passo processual só se verificará em setembro.
Feito o sorteio do coletivo de julgamento, o respetivo juiz presidente poderá iniciar os passos processuais que precedem a marcação da primeira sessão de julgamento.
E como estão os autos relativos à pronúncia de Ivo Rosa considerada nula?
Voltamos agora ao Bloco A da Operação Marquês. Recorde-se que a decisão da Relação de Lisboa, tomada pelas desembargadoras Maria José Cortes e Maria Rosário Silva Martins, foi no sentido de anular o despacho de pronúncia apenas dos três crimes de branqueamento de capitais e de três crimes de falsificação de documento que o juiz Ivo Rosa imputou a José Sócrates e de Carlos Santos Silva.
As magistradas entenderam que o juiz Ivo Rosa fez uma alteração substancial dos factos (transformou Carlos Santos Silva no corruptor ativo de José Sócrates e determinou que os 34 milhões de euros depositados na Suíça pertenciam ao empresário e não ao ex-primeiro-ministro) e decretaram a nulidade dessa pronúncia.
E ordenaram a remessa dos autos “ao tribunal de primeira instância a fim de ser proferida nova decisão instrutória”.
Ora, foi precisamente isso que aconteceu em abril passado, tendo a juíza Susana Seca determinado a 23 de abril a remessa dos autos para o Tribunal Central de Instrução Criminal para que seja “proferida nova decisão instrutória”, tal como ordenado pela Relação de Lisboa.
Os autos deverão ser agora distribuídos ao juiz titular do Juízo 2 daquele tribunal, que é o juiz natural dos autos da Operação Marquês, para que o mesmo execute a decisão da Relação.
Caso a decisão venha a ser uma nova pronúncia (mas nos mesmos moldes da acusação do MP) é natural que este Bloco A venha a ser junto ao Bloco B, caso estes últimos autos cheguem entretanto à fase de julgamento, como é provável.
E assim, o que o juiz Ivo Rosa separou, o Tribunal Judicial de Lisboa juntará por decisão e influência da Relação de Lisboa.