E ao sétimo Orçamento desde o nascimento da geringonça, apareceu a primeira ameaça séria de chumbo. Com o PCP a assumir a ameaça frontal de votar contra e romper com o Governo, nos bastidores fazem-se contas de cabeça. Se, entre os socialistas, a matemática passa por perceber a margem que poderão oferecer ao partido para alterar a sua posição ainda antes da primeira votação, os bloquistas continuam convictos de que tudo não passará de um bluff negocial do PCP para somar ganhos neste Orçamento.
Durante a tarde de terça-feira, nos corredores do Parlamento, a agitação era evidente: da sala do grupo parlamentar do PCP entravam e saíam regularmente o líder parlamentar, João Oliveira, e um dos maiores negociadores orçamentais do partido, Vasco Cardoso. O PCP seria o último partido a reagir à apresentação da proposta do Orçamento, horas depois de o Bloco de Esquerda ter assumido a intenção de votar contra, e portanto já com todas as contas feitas. Às 17h em ponto, Oliveira estava pronto para fazer a ameaça aos microfones dos jornalistas: se a votação fosse hoje, o Governo contaria com “o voto contra” do PCP.
Os motivos apontados foram extensos. Dos aumentos nos salários à legislação laboral, dos cortes nas pensões ao reforço dos serviços públicos (SNS à cabeça), do desagravamento dos impostos à gratuitidade das creches, o PCP não deixaria pedra sobre pedra: o Governo está a falhar a resposta aos problemas que o país acumula e que foram evidenciados pela pandemia. Com um desafio — “Em 2022, o Governo quer aprender com as lições da pandemia ou fazer de conta que nada aconteceu?” — e uma porta aberta: “Até à votação na generalidade ainda é tempo de encontrar soluções”.
Quando falou, o PCP já sabia que os bloquistas faziam tenções de chumbar o OE — e já sabia, portanto, que matematicamente seria essencial para viabilizar o documento, ao lado do PEV e do PAN, a repetir-se a votação do ano passado.
Ao fazê-lo, abriu três caminhos possíveis: ou esticar a corda até romper — sendo certo que, se o fizer, pode provocar uma crise política (“a estabilidade do Governo não depende de nada além do que executa”, chutou João Oliveira); ou, com essa rutura e a ameaça de instabilidade, provocar um regresso do Bloco à mesa das negociações; ou ganhar, com esta ameaça, a maior margem negocial que já teve desde que negoceia com o PS sem papel passado.
Bloco aposta em “tática negocial”
Do lado do Bloco de Esquerda, a convicção é que o segundo cenário não se colocará e que tudo não passará de “tática negocial”. Com o endurecimento da posição dos comunistas na negociação, já tinham sido notados pelos bloquistas avanços nas prioridades do PCP, como a mudança de posição do Governo em relação aos aumentos da função pública — primeiro recusados liminarmente, depois incluídos na proposta do Governo. E, com um maior envolvimento dos comunistas nas negociações, os bloquistas sempre apostaram em que este Orçamento acabaria por ser viabilizado pelo PCP.
Perante a declaração desta terça-feira, a posição do Bloco não se alterou: o voto contra é para manter, uma vez que para já a convicção é mesmo de que o PCP estará a fazer bluff para ganhar vantagem. Nos corredores do partido coloca-se a hipótese de o objetivo do PCP passar por antecipar as negociações que normalmente decorrem na fase da especialidade e conseguir conquistas relevantes já antes da primeira votação — até para justificar, se for caso disso, uma eventual viabilização do documento junto das bases do partido.
Para já, o PCP deixa a porta aberta, dado que o Governo regista, e conta intensificar as negociações nos próximos quinze dias — sendo certo que o caderno de encargos é exigente e não só sobe a parada como envolve até dossiês paralelos. Se os comunistas têm garantido sempre que não misturam dossiês, como é o caso da pasta orçamental e da pasta das leis laborais, desta vez João Oliveira fez questão de frisar que há uma série de matérias — de novo as leis laborais, mas também os salários, o controlo de empresas como os CTT, etc — que têm de ser vistas em paralelo com o Orçamento, mesmo que a correlação não seja propriamente direta.
E o PCP tem feito questão de marcar o seu ponto: há meses que apresenta propostas que vão sendo chumbadas sucessivamente pelo PS, das leis do trabalho — os socialistas chegaram a aprovar uma lei de combate à precariedade na generalidade, apenas para a deixarem cair — e recentemente, mais uma vez, o aumento do salário mínimo. Para os comunistas, se fez sentido apoiarem o Governo durante a crise pandémica (e económica), agora é preciso que António Costa seja consequente e prossiga esse caminho.
Tudo numa altura em que se somam más notícias, que o partido considera exemplos das falhas do Governo, em áreas relevantes para o PCP: só esta semana, foi a demissão em bloco no hospital de Setúbal (ainda para mais, autarquia comunista) e o despedimento coletivo na fábrica da Coca-Cola, em Palmela (outra câmara do PCP).
Com o Bloco de Esquerda, o caminho é ainda mais difícil: Mariana Mortágua já tinha avisado não ver qualquer proposta do partido vertida no Orçamento e esta terça-feira Catarina Martins disparou com força contra o Governo e desfez as medidas nas mais variadas áreas. “Não mexe em nada na saúde, promete o que não pode cumprir. Nas pensões tenta dar uma migalha às mais baixas, mas não faz justiça absoluta de cortar o fator de sustentabilidade. Não faz nada nas questões laborais para combater o despedimento de milhares de trabalhadores. Não existindo capacidade de reforçar o SNS com regras que o façam funcionar, fazer justiça a quem trabalhou uma vida, não se mexendo nas regras do trabalho, é difícil que um Orçamento do Estado assim seja viabilizado à esquerda”.
Entre os bloquistas, ainda se aposta numa negociação em que o PCP registe ganhos e acabe por ajudar a viabilizar o documento, deixando o Bloco de mãos livres. Mas, se houver ameaça de crise política no horizonte, não é certo que o tabuleiro político se mantenha como está.