147 minutos, duas horas e nem meia hora. Foi esse o tempo que o Papa Francisco esteve este sábado em Fátima, para recitar o terço na Capelinha das Aparições, na companhia de jovens portadores de deficiência e reclusos, mas para os cerca de 200 mil peregrinos que marcaram presença no santuário, a contagem decrescente para o encontro começou muito tempo antes.
Ao contrário do que o presidente da Câmara de Ourém chegou a anunciar esta sexta-feira, a multidão em Fátima ficou muito aquém dos 500 mil, mas o mais certo é que a previsão tenha acelerado a chegada de centenas de peregrinos, que desde o início da tarde começaram a marcar posição junto à Capelinha das Aparições e ao longo de todo o percurso de Francisco ao longo do recinto.
Foram muitos os que pernoitaram no santuário, como Cristina, emigrante em França natural de Arcos de Valdevez, que, com a mãe e uma prima, de apenas 15 anos, se instalou de armas e bagagens junto às baias colocadas no lado direito da capela ao final da tarde. Pelas 19h, já estavam preparadas para a noite, tapetes de campismo estendidos, sacos-cama ainda enrolados, mantas e casacos extra dentro de sacos, onde também traziam sanduíches, sumos e bolinhos para fazer as vezes de jantar, ceia e pequeno-almoço.
Horas mais tarde, perto da meia-noite, altura em que a GNR selou os acessos ao santuário e passou a revistar os peregrinos que chegavam, Cristina, Maria e Sílvia eram impossíveis de detetar, tantas eram as pessoas espalhadas pelo solo, já a dormir, em orações ou em jogos de cartas — o que também há de ter contribuído para a sensação de que o amanhecer concretizaria a enchente que afinal não se verificou.
Eis a segunda visita do Papa Francisco ao Santuário de Fátima — que muitos portugueses acreditam, e lamentam, poder ter sido a última —, minuto a minuto.
8h30
Ao contrário do que é normal em dias de escola, este sábado a Zé Pedro, de 11 anos, Sofia, 8, Zé Miguel, 6, e Tiago, 3, não custou acordar — e até tiveram de saltar da cama extraordinariamente cedo, perto das 5h da madrugada, para fazerem a viagem entre Torres Novas e Fátima. Mas, tanto tempo depois, os irmãos, que ainda aguentaram algum tempo deitados no chão do santuário, embrulhados em sacos-cama, estão impacientes.
Zé Pedro diz que ver o Papa “é uma conquista de vida”, Sofia que “é uma felicidade enorme”. Mas, para isso, será preciso que Francisco efetivamente chegue a Fátima, o que não há meio de acontecer.
O alerta é dado por Zé Miguel: “É o Papa! Finalmente o Papa!”, grita, de olhos postos no helicóptero que acabou de surgir no céu, para descrever alguns círculos sobre o santuário antes de aterrar finalmente no heliporto do novo quartel dos bombeiros locais, que ainda está por construir, a pouco mais de 800 metros de distância. Como ele e os irmãos, a multidão acena entusiasmada em direção ao ponto branco discernível à janela, a algumas dezenas de metros de altitude.
É a primeira vez que esta família católica, que ainda na passada terça-feira, dia 1, esteve no santuário, vai estar na presença de Francisco, mas à volta o que não falta é quem tenha estado no recinto, para a celebração do centenário das Aparições aos Três Pastorinhos e para a canonização de Jacinta e Francisco Marto. Como Cristina, que chegou esta sexta-feira à tarde, com a mãe e a prima, para marcar lugar justamente no sítio onde, em 2017, viu este Papa pela primeira vez.
8h54
Menos de 20 minutos depois de os três helicópteros EH-101 da Força Aérea Portuguesa terem aterrado, o Santuário de Fátima dá as boas-vindas a Francisco que, no papamóvel, acaba de entrar no recinto. “Bem-vindo, Papa Francisco! Bem-vindo, peregrino universal!”, ouve-se nas colunas, mas poucos repetem — ao contrário do que tem sido habitual ao longo de toda esta semana de Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, aqui os peregrinos são outros.
E serão também jovens, e de partes do mundo tão distantes como Coreia do Sul, Timor-Leste ou Argentina, mas sobretudo portugueses, mais idosos, a grande maioria vindos do norte do país — e espanhóis, claro.
A média de idades só não é maior porque há também muitos bebés e crianças, como a pequena Candela, membro mais novo da comunidade de 500 peregrinos, membros do Caminho Neocatecumenal de Múrcia, em Espanha, que não será uma das crianças abençoadas pelo Papa Francisco, mas cometerá a proeza de estar na sua presença com escassos 56 dias de vida.
Vindas do Rio de Janeiro, Bárbara, 80 anos, e Maria de Fátima, 69 — “Nossa Senhora é minha xará!” —, são um sucesso instantâneo assim que decidem exibir o cartaz que trouxeram e que acabam a emprestar a uma série de outros peregrinos, mas só para a foto. “Papa Francisco, organiza uma JMI: Jornada Mundial dos Idosos”, pedem as amigas, que viajaram desde o Brasil com um grupo de outros 20 séniores. “Tem de ser um evento um pouco menos intenso, mais tranquilo, mas que nos dê a possibilidade de também viver este momento”, explica Bárbara. “Muitos idosos proporcionam aos netos a oportunidade de vir à Jornada, mas queremos estar aqui também!”
9h10
O papamóvel já está no interior do santuário e a descer, muito devagar, em direção à Capelinha das Aparições — o que não faltam são bebés e crianças que, como tem acontecido ao longo de toda a semana em Lisboa, o Papa não deixa por abençoar —, mas pelas entradas do recinto continuam a chegar mais e mais peregrinos.
Teresa e Rui, naturais de Ourém, empurram o carrinho da filha Inês, de apenas 4 anos, e justificam o atraso: “Estivemos em frente ao [Centro] Paulo VI, para o ver passar”.“Como, infelizmente, vai ser a última vez do Papa Francisco em Fátima, quisemos vir. Para a despedida”, continua Teresa, ajudante de cozinha num dos mais de 100 hotéis da cidade. “Foi a primeira vez que tive folga para vir ver o Papa, lá está, as pessoas vão todas para Lisboa, hoje não fica ninguém aqui.”
Com a filha mais velha a trabalhar numa das também inúmeras lojas de artigos religiosos nas imediações, quiseram pelo menos trazer Inês, que ainda não era nascida em 2017, quando Francisco aqui esteve. Católicos, dizem que o que os traz ao santuário é a devoção a este Papa, “extremamente querido” e que, consideram, “tem feito grandes mudanças” na Igreja. “É pena que esteja a ficar velhote e não esteja cá mais dez anos”, lamentam.
9h31
Cerca de dez minutos depois de o Papa ter dado início à recitação do terço, na companhia de 122 jovens, uns portadores de deficiência, outros reclusos, que, por isso mesmo, não puderam participar na JMJ, o silêncio no Santuário de Fátima continua a ser praticamente total, interrompido apenas pelo rodar das hélices do helicóptero que nunca deixou de sobrevoar o recinto e pelos lamentos (leia-se choros e birras) de bebés e crianças mais impacientes.
É o caso de Alice, que quer — porque tem 2 anos — que a mãe estenda as pernas no chão, para que se possa refastelar em cima dela. “Honestamente, só ontem é que decidi que vinha a Fátima. Vi que o Papa ia estar cá duas horas, liguei à minha mãe, e viemos”, conta Isabel, enfermeira nas Urgências do Hospital de São João, no Porto, e bombeira voluntária em Valongo, assumindo, também ela, um tom de despedida. “Acho que o Papa Francisco, que foi dos poucos que conheci, vai deixar muitas saudades. Acho que ele nos entende tal e qual nós somos. Mães que não são casadas, famílias que se reconstroem — tudo isso era tabu. Ele conseguiu, de certa forma, juntar-nos todos no mesmo saco, toda a gente tem lugar na Igreja.”
Diz que é a primeira vez em quase dois anos que vem ao santuário: “A última vez que viemos foi pouco depois de ela nascer, para pagar uma promessa que a minha mãe fez a Nossa Senhora de Fátima por ela. Eu também fiz, mas os meus santos de devoção são outros, o São Bento da Porta Aberta e a Santa Rita, das causas impossíveis”. Depois, revela porquê, conta como no dia 23 de janeiro de 2019 perdeu Lara, aquela que foi a sua primeira bebé, no parto, depois de um trabalho de 30 horas, e como a fé a ajudou — e ajuda, diariamente, diz — a manter-se “sã”.
“Ajuda muito ter fé. Acredito piamente que ela é um anjinho, o meu anjo da guarda. Não é isso que nos ensinam? Que as crianças que morrem são anjos? Se há alguém que nunca pecou foi ela”, explica, com uma firmeza desconcertante. “Corri risco de vida, também não morri por muito pouco, e quando mais tarde engravidei novamente foi sempre uma gravidez de risco, passei o último mês na cama e ela nasceu um mês antes do tempo. Mas não tive dor e fiz a dilatação toda sem me aperceber, foi como se Deus me tivesse poupado ao sofrimento que tive da última vez”, continua a contar, olhos postos em Alice, que entretanto acalmou e brinca com o gato de peluche Kiko. “É uma verdadeira bênção.”
10h00
Depois da saudação proferida na Capelinha das Aparições pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas — que teve direito a duas referências particularmente sensíveis, à guerra em curso na Ucrânia e às crianças vítimas de abuso —, o Papa Francisco tomou a palavra para, uma vez mais, fugir ao texto, improvisar, e repetir a mensagem que mais aplausos tem recebido ao longo de toda a Jornada.
“Todos, todos, todos”, voltou a frisar Francisco, “a Igreja não tem portas, para que todos possam entrar; uma mãe tem sempre a casa aberta para todos os filhos”. O momento foi o mais aplaudido ao longo de toda a manhã — dos poucos (se não o único) com direito a gritos de “Viva o Papa!”.
No cimo do escadote com que este sábado de manhã conseguiu entrar no santuário, Abílio Oliveira, de 73 anos, não parou de agitar a bandeira do Vaticano que há uma semana encontrou no caixote do lixo, qual dádiva divina, quando foi fazer a Via-Sacra dos Valinhos. Natural de Fátima, explica a rir que nem sequer é a primeira vez que entra de escadote debaixo do braço no santuário — “Vi o Bento VXI duas vezes aqui de cima, e este Papa também é a segunda vez” —, e diz que há forças que podem mais do que os homens (nomeadamente da GNR). “Então a Nossa Senhora não manda nada?! Se calhar ela quer-me aqui, por isso é que me deixa entrar!”
10h24
Às 10h08, depois de uma última Ave Maria e perante a confusão dos jornalistas, que mais uma vez viram o Papa fazer tábua rasa do texto previamente divulgado, Francisco foi conduzido para fora do altar, e passou aos cumprimentos e bênçãos dos jovens com quem veio a Fátima rezar.
A assistir ao momento nos ecrãs gigantes dispostos em pontos estratégicos do recinto, foram muitos os peregrinos que se emocionaram, as lágrimas a escorrer copiosamente pelos rostos de alguns.
Apesar do grande cartaz que trouxeram desde Toledo, a oferecer um peluche Playmobil ao Papa Francisco em troca de uma bênção, o pai, a mãe e a irmã de Hector, um rapaz autista de apenas 13 anos que queria muito conhecer o Papa, acabaram por sair do santuário dececionados.
“Juntos, temos 300 figuras da Playmobil, dez barcos, 8 edifícios, quintas e castelos”, conta Marina, de 14 anos. “Queríamos chamar a atenção de alguma forma, para que o Papa Francisco pudesse ver-nos e dar a bênção ao meu irmão, fui eu que me lembrei desta troca.”
10h40
Já no interior do papamóvel, Francisco é aclamado novamente à saída do santuário, pelos peregrinos que ainda ali se mantêm — muitos foram os que debandaram assim que o Papa deu por terminado o discurso, muitos em direção a Lisboa, onde a partir deste sábado ao fim da tarde vai decorrer a Vigília no Parque Tejo.
Dentro de 22 minutos, o Papa estará no ar outra vez, e dentro de uma hora estará mais uma vez em Lisboa. Rosário e Rui Cardoso, de 33 e 28 anos, também têm de voltar a fazer-se à A1, que às 17h já contam estar a chegar ao Campo da Graça e antes ainda têm de passar pela paróquia da Ameixoeira, a que pertencem, para recolher o lixo e limpar balneários e casas de banho usados pelos 280 peregrinos vindos da Florida e de Boston que ali ajudaram a acolher esta sexta-feira à noite.
Apesar de mal terem ido à cama — e de esta noite seguramente não passarem por lá, já que a Vigília se prolonga durante toda a madrugada e cola com a Missa do Envio, este domingo de manhã —, garantem que não estão cansados. “A fé é o que nos move”, explica Rosário, grávida de 4 meses. “Ainda para mais, avizinhando-se a etapa mais importante das nossas vidas, achamos que não podemos deixar de alimentar esta fé e de seguir o exemplo do Papa Francisco”.
Apesar de já antes serem amigos, revelam, foi a devoção por este Papa que os juntou, justamente na noite de 12 para 13 de maio de 2017, data da primeira visita oficial de Francisco ao Santuário de Fátima. “Já éramos muito amigos, mas faltava o clique final”, conta Rui. “Durante a procissão das velas, o Papa passou e, nesse momento, percebemos que havia aqui alguma coisa especial.”
Este domingo, mais de seis anos depois, já casados e à espera do primeiro filho (ou filha, não sabem ainda), Rosário e Rui vão estar junto ao altar montado no Campo da Graça, para auxiliar Francisco na missa, como ministros da comunhão.
Não poderiam fazê-lo com maior satisfação: “Esta Jornada está a ser muito especial, acho que nunca tivemos mensagens tão fortes e tão claras. O Papa está a escancarar as portas desta Igreja, que está cada vez mais atenta à diferença — onde não existem diferenças!”, retifica Rosário. “O que interessa é o que vem do coração.”