Foi uma crise migratória sem precedentes em Espanha. Ceuta recebeu mais de oito mil pessoas em menos de 48 horas, após Marrocos ter deixado de controlar as fronteiras com o enclave espanhol de aproximadamente 84 mil habitantes. Jovens à procura de emprego (e outros iludidos), famílias inteiras e mais de 1500 menores tentaram desesperadamente entrar em solo europeu.
Uma crise diplomática e um ato de retaliação de Marrocos a Espanha terá estado na origem deste episódio, após Madrid ter deixado que o líder da Frente Polisário, Brahim Ghali, fosse hospitalizado no país por ter contraído Covid-19. As autoridades marroquinas consideram o chefe do movimento que defende a independência do Saara Ocidental (território que Rabat reclama como seu) um inimigo e viram esta atitude como uma traição — e não olharam a meios para castigar Espanha.
Marrocos terá chegado mesmo a utilizar as redes sociais para que menores se dirigissem à fronteira espanhola, ao que relata o El Mundo, e vários jovens receberam uma mensagem a dizer que Cristiano Ronaldo e Lionel Messi jogariam em Ceuta: “Muitos viram que muitos estavam a correr, diziam que tinham aberto a fronteira e que era como uma festa”, conta uma habitante de Castillejos, cidade junto à fronteira espanhola ao El faro Ceuta. As escolas ficaram vazias e só as raparigas é que assistiram às aulas.
Mensagem falsa levou jovens e crianças para a fronteira: “O Ronaldo e o Messi jogam em Ceuta”
Esta é apenas um dos muitos relatos desta vaga migratória que ganha contornos de crise humanitária. Mas há mais: desde os adolescentes Anas, Brahim, Omar e Zuhir que procuram um emprego e mais oportunidades, à mãe que veio da Catalunha a Ceuta para recuperar as filhas, a Salima que fugiu para o enclave espanhol para fugir dos maus-tratos familiares e para continuar os estudos e ainda Riduan e Aiman que dormem nas ruas de Ceuta e que dizem que não querem voltar a solo marroquino — algo transversal a praticamente todas estas histórias.
Os quatro adolescentes que procuram uma vida melhor — mas têm diferentes destinos: “Em Marrocos não há futuro”
Anas, Brahim, Omar e Zuhir têm quinze anos e estão agora em Ceuta. Fugiram de Marrocos na segunda-feira. Souberam de diferentes maneiras, têm diferentes destinos, mas os quatro chegaram a Ceuta a nado. E também têm uma coisa em comum: estão à procura de mais oportunidades e querem vir para a Europa.
Zuhir contou ao jornal Nius que soube através do Facebook enquanto “estava na praia com os meus amigos”. “Deixei tudo e vim para a fronteira com o que tinha” que, na verdade, era muito pouco — apenas a roupa que tinha vestido. O seu objetivo é “terminar os estudos”, sendo que depois quer ir para Barcelona viver.
Anas soube de tudo pelos colegas, que vieram todos “a correr até a praia de Tajaral”. “Para cruzar [a fronteira] fiz o que via que estavam a fazer os outros: atirarmo-nos à agua e nadar”, relata. O menor diz que os polícias de Ceuta tem-no tratado de forma “fenomenal”, mas não quer ficar no enclave: “Quero ir para a Bélgica, onde tenho família”.
Omar também soube pelos amigos e também veio a nadar. “Não havia vigilância” junto à fronteira de Marrocos e o enclave, sendo que se “atirou à água e nadou até conseguir chegar ao lado espanhol”. Tal como Anas, diz que a polícia o “tratou muito bem”, dando-lhe “comida, roupa e toalhas”. Mas o seu destino também não deverá passar por Ceuta: “Quero ir para Valência e tentar ganhar a vida como cabeleireiro”.
Brahim soube de tudo de forma invulgar: “Estava a treinar, a jogar futebol e de repente comecei a ver toda a gente a correr”. Após isso, contou aos pais o que se estava passar e apanhou um táxi até à fronteira. Também chegou a Ceuta a nado, mas não sabe ainda aonde quer ir. Ainda assim, voltar a Marrocos está fora dos seus planos: “Não há futuro”, conta à NIUS o jovem de quinze anos, esperando também que todos os seus amigos “tenham tido a mesma sorte e entrem aqui”.
Salima: a jovem de 17 anos que fugiu de casa devido aos maus-tratos e que quer ser jornalista
Salima ouviu, na segunda-feira, um helicóptero e viu imensa gente em Castillejos, cidade onde morava. Ligou à tia, que vivia perto da fronteira, que lhe contou que “toda a gente está a saltar para Espanha”. Assim que soube da novidade, a adolescente mudou de roupa e procurou os documentos que comprovam que tinha nascido em Ceuta, cidade na qual a mãe também trabalhara enquanto empregada doméstica.
Deixou o telefone em casa. Não queria que ninguém soubesse do seu paradeiro e que ninguém a procurasse mais. Contou à mãe que se ia embora para Ceuta e recorda o momento da despedida, o qual confessa ter sido um momento frio. A jovem era uma excelente aluna, que adorava estudar e que quer ser jornalista: “Tirava muito boas notas, gostava muito de línguas”, mas “teve de deixar de ir à escola”, por causa dos “problemas que tinha em casa” e era vítima de “maus-tratos”, o que lhe causou uma “depressão”.
Ceuta era para Salima uma terra de oportunidades, um sítio onde pode começar do zero e ter uma nova vida: “Quero que me acolham aqui para poder terminar os meus estudos e poder ter um futuro, quero estar tranquila aqui por um tempo”. Para já, não tem planos para ir para a Europa, mas, caso surja uma oportunidade, “quem sabe” o que poderá acontecer.
O timing da suposta abertura das fronteiras foi, para Salima, imprescindível. Daqui a uma semana faz 18 anos e deixa de ser considerada uma menor — e pode, por isso, ser deportada para Marrocos. Espera, no entanto, que a sua situação fique regularizada o mais cedo possível. “Eu sei que as condições não são boas”, conta ao El Diario, “mas isso não importa, não tenho outra coisa. Aqui pode começar o meu futuro”.
Aiman e Riduan: os melhores amigos que não se separam e querem mais que um “prato de comida”
Riduan têm 13 anos. Soube do que se passava quando “estava a jogar futebol” e soube de tudo através de um amigo com quem jogava futebol, que viu o que se passava “no Facebook”. “Mostrou-nos um vídeo de como a fronteira estava aberta. Voltei a casa para trocar de roupa e sem dizer nada a ninguém saí dali a correr”, contou à RTVE.
Telefonou depois à mãe a relatar-lhe que agora ia viver para Ceuta. Riduan revela que a progenitora começou a chorar e que lhe disse para não “ir embora. Não te vai faltar um prato de comida”. Mas o adolescente queria mais — queria um emprego. “A minha mãe chora muito e não quero ligar-lhe”, confessa Riduan, que também deseja “estudar espanhol” e “adoraria ser futebolista”.
Aiman fugiu com Riduan. Tem 14 anos, fugiram juntos e agora não se separam. Os dois dormem na rua há duas noites: “Está muito frio, mas os vizinhos [de Ceuta] dão-nos roupa e pão”. Apesar das condições precárias em que vivem, voltar para Marrocos está completamente fora das opções dos dois amigos: “Estamos completamente fechados em Marrocos, não temos nada que fazer e não estamos bem”.
Os dois apontam a crise económica da cidade em que vivem, Castillejos — cuja população consegue ganhar os seus rendimentos através de empregos em Ceuta. No entanto, desde o início da pandemia, a fronteira tem-se mantido fechada e muitos trabalhadores transfronteiriços ficaram desempregados.
“O meu pai está velho, o pobre não trabalha e em casa nem sempre tínhamos comida”, lembra Aiman, que espera arranjar um emprego o mais cedo possível.
Os que achavam que era uma excursão e uma “festa”
Saida é uma empregada de limpeza de 58 anos, atualmente desempregada devido à impossibilidade de atravessar a fronteira, contou ao El Confidencial a história do filho que foi “enganado” e que se dirigiu à fronteira de “autocarro” a pensar que ia numa “excursão”. Mas ele é “esperto”, nota a mãe, que acrescenta que o filho se veio embora ao aperceber-se da confusão e de que a história que lhe tinham contado não correspondia à verdade.
Uma voluntária, que tentou controlar a situação nas ruas de Ceuta, relatou ao mesmo jornal que muitos jovens “foram onde iam todos, iam com os seus amigos, para muitos era uma festa”. “Muitos pensavam que iam de excursão”, prossegue. Estes episódios mostram também que nem todos que entraram no enclave procuravam atravessar a fronteira à procura de melhores condições de vida.
Marta: a mãe que cruzou a fronteira para reencontrar as filhas (que já não via há 10 anos)
Marta, quando soube do que se passava em Ceuta, ficou preocupada. As duas filhas — de 13 e 14 anos — viviam em Marrocos com o pai, que morreu em 2018. Logo que recebeu a informação de que as filhas estavam entre os 2000 menores que atravessaram a fronteira, a mãe, que vive em Tarragona, na Catalunha, pôs-se a caminho de Ceuta para as tentar localizar.
O aviso foi dado pela familiar do pai e Marta não só se prontificou a ligar para as autoridades, como também se deslocou 1000 quilómetros para reencontrar as filhas (que já não via há mais de 10 anos). As autoridades trataram do caso e conseguiram-nas localizar através do Cartão de Cidadão que a mãe apresentou, emitido quando as jovens eram bebés.
A mãe narrou a sua história de vida à polícia e, de acordo com El Confidencial, Marta é espanhola e apaixonou-se por um marroquino, tendo-se mudado para Marrocos. Lá, tiveram cinco filhos, mas a relação terminou; entretanto, a mulher voltou para a Catalunha com três filhos, enquanto o pai ficou com as duas menores.
Dois agentes de segurança que testemunharam o reencontro disseram ao jornal que as “menores reconheceram a mãe” e ficaram, temporariamente, sob guarida da progenitora — podendo, portanto, permanecer em Espanha. Um polícia relata que foi um momento “muito bonito e muito emocionante” e que as três “se fundiram num abraço”.
As duas melhores amigas e vizinhas que distribuem comida nas ruas de Ceuta
Sabah e Nayat são duas vizinhas que moram em Ceuta há algum tempo. São ambas marroquinas e, perante as imagens que viam na televisão, não podiam ficar sem fazer nada. As duas mulheres organizaram-se para ajudar quem precisava e encheram o carro cheio de comida. Em mais de duas horas, cozinharam 25 quilos de macarrão e preparam 60 sanduíches, suficiente para alimentar 80 pessoas — e gastaram 100 euros do “próprio bolso”.
“Tenho em minha casa mais de 20 jovens ali alojados”, conta ao jornal Heraldo Sabah, que diz que tem sido bastante procurada e que até tem aceitado pessoas a dormir “na sua porta”.
Para além de ajudarem com comida e com a guarida, as duas tentam conhecer mais do historial de cada um daqueles que lhe vem pedir comida. Mohamed, de 23 anos, disse-lhes que “em Marrocos tudo está mal. Há muita tensão e está toda a gente muito nervosa desde que começou o coronavírus. Tenho pânico de voltar para lá”.
Mohssi, de 22 anos, também narrou a Nayat que, apesar de “estar no primeiro ano de Direito”, não quer voltar a Marrocos. Argumenta que “estudar não garante um posto de trabalho”, sendo que o sucesso no país depende de “ter um padrinho” e de “ser de boa família”. “É o que permite entrar no mercado laboral”.
Ao Heraldo, Sabah considera ainda que a atitude espanhola e marroquina é “indigna” e afirmou que o que está a passar em Ceuta é como se se estivesse a “comercializar humanos”.