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MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Os amuos de Passos e do dr. Rebelo de Sousa

A relação fria entre Passos e Marcelo dura há 20 anos, mas os conflitos têm-se intensificado. Esta quinta-feira almoçam em privado. História de um relacionamento político muito instável.

ca·ta·-ven·to (forma do verbo catar + vento)
substantivo masculino
1. Bandeirinha ou figura enfiada numa haste
2. [Figurado] Pessoa volúvel.

Passos Coelho chegou sozinho e sem comitiva ao Palácio de Belém, a 20 de outubro de 2016, para uma audiência com o Presidente da República. Contra aquilo que é o hábito no PSD — e nos restantes partidos — nem um único dirigente o acompanhou e apenas dois membros do staff, além do motorista, estiveram em Belém: o fotógrafo do PSD e o histórico assessor Zeca Mendonça, que ficaram fora da reunião. “Isso mostra que, das duas uma: ou não confia na sua direção, o que não me parece possível, ou não confia no Presidente, que é o mais provável”, interpreta um dirigente nacional do PSD em declarações ao Observador. A conversa foi mesmo a sós. Passos e Marcelo são como água e azeite. Desde que um é Presidente e o outro líder da oposição não escondem uma “guerra fria” que vem dos anos noventa. Esta quinta-feira, 29, há um cessar-fogo de Natal, com um almoço em Belém, mas as relações estão longe de ser boas.

A atitude de Passos em ir sozinho a Belém em outubro foi entendida como uma falta de confiança no Presidente da República. Ao ir sem vice-presidentes, seria fácil identificar a fonte do que se soubesse (publicamente) da conversa. A atitude estará na base de uma falta de confiança que Passos não admite publicamente.

“Não gostam um do outro, isso não é novidade nenhuma”, afirma ao Observador um antigo dirigente nacional do PSD. Quando Passos foi a Belém, em outubro, já não ia a uma reunião oficial com o Presidente da República há seis meses, enviando comitivas com vice-presidentes e o secretário-geral. Houve, neste espaço, uma audiência para marcação de eleições regionais nos Açores, imposta pelo calendário, e outra de análise de situação política ainda antes do verão. Passos faltou a ambas.

Ao contrário do que acontece com o primeiro-ministro António Costa, o Presidente da República e o líder do PSD não trocam telefonemas nem SMS com regularidade. “O presidente do partido já é muito institucional. Com Marcelo ainda tem de ser mais. Eles falam muito pouco. O único encontro informal que tiveram no último ano foi em novembro ou dezembro de 2015 para combinarem a forma como PSD iria intervir na campanha presidencial“, conta ao Observador um dirigente social-democrata.

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“Ainda bem que Marcelo não é presidente do PSD”

Os episódios de troca de recados, mais diretos ou indiretos, têm sido vários ao longo do último ano (na verdade, nas últimas duas décadas), mas no início do mês de dezembro a tensão entre Passos e Marcelo teve um pico sério. Tudo começou nas comemorações do feriado da Restauração da Independência, a 1 de dezembro, numa cerimónia onde o líder da oposição não marcou presença. Uma das marcas do anterior Governo foi reduzir os feriados, o uma medida que foi justificada com a assistência financeira a que o país estava sujeito. Ora, o Presidente da República criticou o facto de o feriado que celebra a Restauração ter sido suspenso, alinhando com as forças que suportam no Parlamento o atual Governo.

"Este feriado nunca deveria ter sido suspenso"
Marcelo Rebelo de Sousa, nas comemorações do 1º de dezembro

Na conferência ECO Talks, quatro dias depois, Passos Coelho atirou: “Ainda bem que [Marcelo] não é presidente do PSD”. O líder social-democrata sugeriu ainda a parcialidade do Presidente a favor do Governo, dizendo que “está a fazer tudo o que está ao alcance dele para que o mercado, os agentes económicos, acreditem mais num Governo de que desconfiavam.”

A disputa pegou e Marcelo decidiu pôr água na fervura, dizendo que “[Passos] tem toda a razão. Ainda bem que o PSD está bem entregue e foi possível eleger pelo voto dos portugueses alguém que é Presidente de todos. Não era possível ser ao mesmo tempo presidente do partido e de Portugal. A minha missão é ser Presidente de Portugal”. E continuou, acrescentando que “todos os partidos estão bem entregues aos seus líderes, porque é uma decisão das bases dos partidos”.

Quanto ao favorecimento a Costa, Marcelo defendeu-se dizendo estar convicto de estar “a cumprir meticulosamente o que diz a Constituição em relação ao Governo, criando todas as condições para o Executivo seguir os objetivos nacionais”. Sobre o conflito com Passos, o Presidente disse então, também a 5 de dezembro, que é a pessoa “mais distendida de Portugal por natureza” e que trata com o “mesmo desvelo todos os partidos, quer os do Governo, quer os da oposição, e todos os parceiros sociais, quer os sindicatos, quer os patrões. O presidente não pode ter amuos, não pode gostar mais de uns portugueses do que dos outros”. Mas com Passos tem. E não são de agora.

O ex-líder do PSD, Marques Mendes — que conhece bem os dois –, deixou um aviso ao presidente do PSD no seu comentário semanal na SIC, lembrando que “Marcelo é uma referência de popularidade, de prestigio, de estatuto, de autoridade. Passos Coelho, numa guerra com o Presidente perde sempre, como qualquer líder de oposição perderia. É uma espécie de autogolo.” Para o comentador, Passos “cometeu um erro enorme” ao dizer: “Ainda bem que ele [Marcelo Rebelo de Sousa] não é presidente do PSD”. E lembrou que “tem de ter a noção” que o seu “adversário principal” é António Costa. Assim, adverte o ex-líder social-democrata, o primeiro-ministro “esfrega as mãos de contente.”

"Entre Passos Coelho e Marcelo Rebelo de Sousa nunca passou grande química nos últimos anos, mas isso é um problema mais de natureza pessoal. Politicamente falando, um é lider da oposição e o outro é Presidente da República e têm de ter uma relação de respeito e de cooperação".
Marques Mendes, 11 de dezembro

Já Pedro Pinto, amigo e vice-presidente de Passos no PSD até ao Congresso de abril, diz ao Observador que “a relação de Passos e Marcelo é igual ao que era dantes, porque nunca tiveram grande relação”. Uma questão tem a ver com a idade: “Marcelo é de uma geração completamente diferente no partido”. O deputado do PSD, que destaca que está a dar a sua “opinião pessoal”, lembra que ambos “são muito senhores do seu nariz” e Passos não abdica do “tratamento institucional, por isso a relação com Marcelo vai ser sempre institucional”.

Este deputado social-democrata responsável por levar Passos Coelho para a direção da JSD nos anos 80, lembra que num primeiro mandato todos os Presidentes “estão mais em sintonia com o Governo”, mas Marcelo tem ido além disso. “O Governo [de António Costa] procura a popularidade de forma fácil e a maneira como o Presidente se cola a essa popularidade, mostra que é um Presidente diferente.”

"No início diziam que Passos e Cavaco nunca se iam entender, mas acabaram a dar-se bem. E quem mudou foi o Cavaco em relação ao Pedro e não o Pedro em relação ao Cavaco. Era o Cavaco que tinha algo contra o Pedro e não o contrário. Aqui vai ser igual: quem vai mudar é Marcelo. O Pedro é muito mais firme. Se não cair, não muda. É assim desde miúdo".
Pedro Pinto, antigo vice-presidente e dirigente do PSD

Atualmente, Passos e Marcelo são mesmo como água e azeite e, quando se cruzam, chocam. A 13 de outubro, no encerramento do seminário “Portugal uma estratégia para o crescimento”, Marcelo aproveitou o facto de Passos estar na primeira fila e — de acordo com o relato de vários jornalistas presentes no local — o Presidente olhou para o líder da oposição (que estava na primeira fila) e pediu uma “clareza de demarcação de alternativa de Governo”. O país estava em véspera da entrega do Orçamento do Estado. Passos Coelho não respondeu.

Dr. Rebelo de Sousa, o senhor feliz. Passos, o senhor descontente

Antes de outubro, Passos Coelho só tinha ido a uma reunião oficial com Marcelo Rebelo de Sousa como chefe de Estado e quase obrigado: para a audiência da praxe pós-Congresso. “Uma boa conversa”, disse à saída o presidente do PSD. As provocações têm sido mútuas. Ainda Marcelo não estava há um mês em Belém quando, no início de abril e em pleno Congresso do PSD — quer no púlpito, quer em declarações aos jornalistas — Passos se referiu ao Presidente como “dr. Rebelo de Sousa” ou “Rebelo de Sousa”. Nunca “senhor Presidente”, como fazia com Cavaco Silva. Nem sequer “dr.” Marcelo Rebelo de Sousa. Nem tão pouco “professor” Rebelo de Sousa. Aliás, já se referia assim a Marcelo muito antes deste ser presidente. No primeiro dia do Congresso, despachou na intervenção inicial a saudação ao então recém-eleito Presidente da República.

"Ao suspenso militante do PSD Marcelo Rebelo de Sousa, desejamos neste congresso, também com muito afeto, um abraço muito forte, com votos de que possa ter um mandado com muita esperança para os portugueses e recheado dos maiores sucessos."
Passos Coelho, a 1 de abril, na intervenção de abertura do XXXVI Congresso do PSD

Passos não se coibiu, ainda durante o Congresso, de enviar recados ao Presidente, avisando que devia “dar garantias de um exercício à margem dos partidos” e que devia ter “presente o interesse estratégico nacional, mais do que a espuma dos dias.” O líder do PSD já tinha sugerido que não gostou de ver Marcelo dizer que a banca espanhola não devia ter uma “posição exclusiva” em Portugal. Passos Coelho — que entretanto criticava a interferência de Costa nas negociações entre Isabel dos Santos e o BPI — fez advertências dirigidas ao chefe de Estado em declarações ao i: “Quem faz a regulação financeira é o Banco de Portugal e é a CMVM. Não é o primeiro-ministro, não é o ministro das Finanças, que não têm nenhuma competência na matéria. Nenhuma! Nem o Presidente da República, por maioria de razão“.

Já Marcelo, no primeiro fim-de-semana de abril, esteve em casa a assistir de cadeira ao Congresso do PSD e chegou a enviar SMS a vários dos amigos que tinha na reunião magna dos sociais-democratas e a outros notáveis, após os discursarem no púlpito.

Pouco depois, voltaria à carga no discurso das comemorações do 25 de abril. O Presidente deixava um recado para mostrar quem era o Chefe de Estado: “Pela sua própria natureza, [o mandato do Presidente] é mais longo e mais sufragado do que os mandatos partidários”. Acrescentou ainda uma frase entendida como um recado a Passos: “O Presidente não depende de eleições intercalares”. Isto por oposição ao presidente do PSD, que podia depender do resultado das autárquicas.

Passos também não descansou e, no final do mês de abril, voltaria à carga com ironia em entrevista ao semanário Sol, onde começou por dizer que se recusava a fazer “apreciações de estilo”. Mas fez. Descreveu Marcelo como “alguém que está bem na sua pele” e que “transmite aos outros essa satisfação e essa felicidade. Pode dizer-se mesmo felicidade, porque há uma certa imagem de felicidade que irradia do Presidente”.

Marcelo não se importou de ser o “senhor feliz”, sendo que Passos, definitivamente, não é o “senhor contente”. O Presidente reagiu em Moçambique, onde estava em visita oficial, a 6 de maio, para dizer que não é “daqueles otimistas irritantes que negam a realidade com o seu otimismo”, mas destacou que também não é “daqueles céticos que não gostam de irradiar felicidade. Eu gosto de irradiar felicidade – embora me irrite de quando em vez um otimismo desproporcionado em relação aos termos da realidade”.

As críticas do Presidente em privado

Em privado, com amigos de longa data e gente ligada ao PSD, Marcelo tem criticado Passos Coelho e o estilo de oposição que tem feito, sabe o Observador. Em Belém comenta-se que a direção do PSD desperdiça todas as críticas que o Presidente faz ao Governo e nunca as aproveita para o combate político. O chefe de Estado, que não resiste a ser comentador político em privado, vai dizendo a amigos que considera uma estratégia errada puxar tanto por Maria Luís Albuquerque, já que a ex-ministra das Finanças foi o “rosto dos sacrifícios” a que os portugueses estiveram sujeitos durante o mandato anterior. “Ele tem preparado algumas armadilhas ao Pedro”, diz ao Observador um dirigente do PSD, que denuncia que “Marcelo quer agradar à esquerda, ter o apoio de todos e não apaparica a direita porque esses votos já ele tem”.

Publicamente, o Presidente passa a imagem de não querer interferir no partido. Seria gravíssima essa ingerência de um árbitro. Quando explodiu nos jornais a hipótese Luís Montenegro como sucessor de Passos, o que fez Marcelo? Rasgados elogios ao líder parlamentar do PSD.

"Não pode, nem deve o Presidente da República substituir-se ao papel daqueles que têm por função prever o futuro de quem anda na ribalta da política, mas cabe ao Presidente da República registar com alegria o poder contar certamente ao longo do seu mandato com muitos sucessos políticos de Luís Montenegro"
Marcelo Rebelo de Sousa, a 16 de junho de 2016, em Espinho

Eixo Relvas-Passos nervoso com um “alguém se há-de arranjar”

O ano de 2016 foi de frieza entre ambos, mas o arrefecimento das relações é antiga. Passos Coelho era um expectável líder do PSD, tal como Marcelo foi um anunciado Presidente da República. Ambos têm em comum um facto: atrapalharam o outro nessa caminhada. O primeiro a ir a jogo foi Passos Coelho. Em outubro de 2009, logo após Ferreira Leite perder as legislativas, Passos Coelho começa a posicionar-se para a candidatura à presidência do PSD. O “professor” não gostou. No programa de domingo, na TVI, Marcelo arrasou o antigo líder da JSD: “Alguém se há de arranjar, o partido não fica para Passos Coelho“.

"Alguém se há de arranjar, o partido não fica para Passos Coelho"
Marcelo Rebelo de Sousa, em outubro de 2009, na TVI

Pedro Passos Coelho — que nessa época já se tinha assumido como candidato à sucessão de Ferreira Leite — respondeu dias depois numa entrevista à SIC Notícias, desafiando Marcelo a candidatar-se à liderança do PSD. Passos começou por lembrar que “há várias semanas que aparecem notícias dizendo que se há-de encontrar uma solução para que o partido não fique nas minhas mãos.” Encheu o peito e lançou então um desafio claramente direcionado: “Espero que aqueles que acham que têm um caminho melhor do que eu [apareçam], que de repente o professor Marcelo apareça e se vá candidatar.

Entretanto, um grupo de jovens tinha criado um movimento, Jovens com Marcelo, em que, aparentemente à revelia do professor, o desafiavam a candidatar-se à liderança do PSD. No próprio blogue do movimento havia um post de Marcelo que não excluía a possibilidade. “Quando se é jovem, é-se assim: irreverente o suficiente para criar blog de apoio mesmo sem autorização expressa do visado. Acredita-se numa coisa e quer-se forçar que ela aconteça”, escrevia Marcelo, adensando o mistério em torno de uma eventual candidatura.

Também no seu comentário dominical, ia respondendo com uma espécie de “nim” ao desafio de Passos Coelho. Dizia que não estava para aí virado, mas lembrava que também não estava quando avançou para líder em Santa Maria da Feira.

No mesmo dia do desafio de Passos, houve até uma vaga de fundo concertada por uma candidatura de Marcelo ao partido, atualmente quase esquecida. Paulo Rangel (que acabaria a ser o herdeiro da fação “marcelista” nas diretas de março de 2010), José Luís Arnaut e Alexandre Relvas defenderam a candidatura de Marcelo ao PSD, com minutos de diferença:

  • 21h15, Paulo Rangel, na RTP1: “Um partido que tem entre os seus militantes um militante com as qualidades do professor Marcelo Rebelo de Sousa, do meu ponto de vista, não deve desperdiçar a oportunidade de o fazer líder do partido e de o tornar primeiro-ministro de Portugal”;
  • 21h30, José Luís Arnaut, na SIC-Notícias: “Um partido que tem um valor como Marcelo Rebelo de Sousa não se pode dar ao luxo de o desperdiçar“.
  • 23h00, Alexandre Relvas, na Rádio Renascença: “[Marcelo] é de facto, hoje, o militante do PSD melhor colocado para ser presidente do partido, se tivermos em conta a credibilidade e popularidade que ele tem, não só no PSD, mas no país”.

Seguiram-se outras figuras. Na manhã seguinte, José Matos Correia (mais tarde vice-presidente de Passos Coelho), dizia que Marcelo é “a pessoa de que o partido e o país precisam”. O mesmo fez José Eduardo Martins, que nunca morreu de amores por Passos, afirmou: “É evidente que não há ninguém em melhores condições de ser presidente do PSD do que o professor Marcelo Rebelo de Sousa.”

A entourage de Passos começava a ficar nervosa. Miguel Relvas valia por vinte no aparelho do partido, embora existissem importantes “conselheiros” como Nogueira Leite ou Ângelo Correia. Relvas teve mesmo de vir a público defender Passos: “Essas personalidades que se juntaram estão no direito de o fazer e é muito positivo o debate. Mas é importante relembrar que essas personalidades são co-responsáveis pelo desastre eleitoral que o PSD teve no dia 27 de Setembro, o pior resultado que o PSD teve na sua história a partir da oposição.

Marcelo esteve tentado. Pelo meio houve um episódio da sua vida pessoal que ainda contribuiu mais para que não entrasse em aventuras. Rita Cabral, sua namorada desde os anos 80, descobriu um problema cardíaco, que se agravou, precisamente, nos últimos meses de 2009. A pior fase da doença coincidiu assim com a altura em que houve as vagas de fundo pró-Marcelo. O professor teve de optar e escolheu não ir a jogo. Rita ia ser operada ao coração e era essa a prioridade de Marcelo. Além disso, o professor, crente, considerava o agravar da doença como um sinal divino para não avançar para o PSD.

Os barões bem iam dizendo que o país queria Marcelo, mas Relvas tinha o partido na mão e não tinha medo de o dizer: “A escolha do líder do PSD não é uma seleção social, é uma seleção política e o líder do PSD é eleito de norte a sul por milhares e milhares de militantes do PSD.” Marcelo não matou a candidatura de Passos, mas moeu. E alimentou os maiores obstáculos que Passos teve para chegar a líder. Sem êxito.

Nem cata-vento, nem bom casamento

Passos não é dos políticos mais vingativos, mas respondeu na mesma moeda, criando nervos a Marcelo. Na moção de estratégia global que levou ao Congresso do partido, em fevereiro de 2014, o líder do PSD apresentava um perfil de candidato presidencial para 2016, que pretendia excluir Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente do PSD, impunha — no documento que foi conhecido a 19 de janeiro de 2014 — que o candidato apoiado pelo partido fosse “mais como um árbitro ou moderador, evitando tornar-se numa espécie de protagonista catalizador de qualquer conjunto de contrapoderes ou num catavento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político“. Um fato à medida de Marcelo, que acusou o toque.

O professor reagiu no dia seguinte, assumindo que o perfil rejeitado por Passos era o seu: “Claramente, eu acho que ele [Pedro Passos Coelho] quis excluir na moção de estratégia o candidato Marcelo Rebelo de Sousa. Quis, o que é perfeitamente legítimo. Está nas suas mãos e quis fazê-lo.” Marcelo dramatizou, retirando-se da corrida: “A questão está resolvida”. Na verdade. não se retirou. Como adora uma bela intriga política, e o grande efeito mediático, apareceu de surpresa nesse Congresso do PSD para ser aplaudido de pé pelos delegados. Fez um discurso emocional e mostrou a Passos que se quisesse tinha o partido com ele. Disse que não se estava a “fazer ao piso para qualquer coisa” e puxou dos galões dos tempos em que andou pelos telhados de Beja a fugir da extrema-esquerda em 1975. Passos ouviu, colocou os dedos em “V” e gritou: “PSD,PSD, PSD!”

Crítica, elogio, crítica, elogio. Talvez não seja assim tão equilibrado, mas como comentador político, Marcelo foi alternando entre críticas (com mais impacto) e elogios à governação de Pedro Passos Coelho. Passou um ano e o antigo-líder foi alimentando o tabu presidencial: só decidiria no último trimestre. O partido pressionava Passos a apoiar Marcelo: a ala Relvas queria o apoio ao professor, a ala Marco António Costa tinha esperança num avanço de Rui Rio. Passos Coelho, embora sem o dizer publicamente, preferia Rio.

Bastidores do Jornal das 8 com Marcelo Rebelo de Sousa

Marcelo manteve-se comentador da TVI quase até avançar para Belém. Neste espaço, criticou muitas vezes Passos Coelho.

A hipótese de Rui Rio para Belém foi alimentada até ao verão de 2015. A 17 de junho, Passos encontrou-se com Rio no Porto e terão negociado uma candidatura do antigo presidente da câmara municipal do Porto à Presidência da República. A conversa correu bem entre ambos e até chegaram ligeiramente atrasados a um debate de apresentação de Paulo Rangel, “Jesus e a Política”, no Salão Árabe do Palácio da Bolsa. O líder do PSD disse que só poderia dar o apoio a Rio, no entanto, após as legislativas, a 4 de outubro. Rio esperou, esperou e perdeu o timing.

A 9 de outubro, Marcelo assume-se como candidato a Belém e já nada o travaria. Apresentou a candidatura na terra da avó Joaquina, Celorico de Basto, às 18.00. Antes disso, o ex-líder do PSD enviou um SMS a Passos Coelho às seis da manhã e, pela manhã, ligou aos líderes dos dois partidos de centro-direita Paulo Portas (CDS) e a Passos Coelho (PSD).

O partido queria Marcelo e Passos — a tentar ficar no Governo, após vencer as eleições sem maioria — precisava de tudo menos comprar uma guerra com o militante número 3. Rui Rio deixou o comboio passar e seis dias depois retirou-se da corrida. Passos ficou sem opção e acabaria por apoiar Marcelo, o cata-vento, na corrida às Presidenciais. Durante dois anos o presidente do PSD nunca desmentiu que o cata-vento era Marcelo, mas, em vésperas das eleições presidenciais, disse em declarações à Rádio Renascença que “não é verdade que tenha, rigorosamente, chamado catavento ao doutor Rebelo de Sousa”. Disse ainda que “não se referia a ninguém em particular” na moção de estratégia e que o problema “foi o próprio professor Rebelo de Sousa que, na altura, achou que aquilo lhe era dirigido”. O líder do PSD não participou em nenhuma ação de campanha do candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa, que foi justificando até à exaustão que isso nem fazia sentido.

O Pedro da jota fez Cristo descer à Terra

– “Professor, toda a gente diz que é candidato… vai avançar para a
liderança?”

– “Nem pensar, nem pensar!… Não, não e não!… Em caso algum!
Nem que Cristo desça à Terra!…

A pergunta foi feita por Ana Sá Lopes, então jornalista do Público, a Marcelo Rebelo de Sousa, transformando-se na manchete daquele diário no dia seguinte, a 3 de fevereiro de 1996: “Marcelo fora da corrida”. No mesmo sábado, o Expresso trazia uma manchete em sentido contrário: “Marcelo aceita ser líder por um ano.”

O artigo do Expresso falava em “fontes próximas” e muitos desconfiaram que fosse o próprio a fonte, dizendo em off o contrário do que disse em on. O próprio Marcelo terá negado ser ele a colocar a notícia no semanário e confessou desconfiar que a fonte fosse o próprio Passos Coelho. Ou Marques Mendes.

O PSD começou então à procura de líder para suceder a Fernando Nogueira e, perto do Carnaval, quando Marcelo se começava a preparar para umas mini-férias em Madrid com os filhos, recebeu um telefonema do “Pedro da jota”. Já não era líder da JSD, mas era desde esses tempos que Marcelo e Passos mantinham uma boa relação, ainda que não fosse próxima.

“O Marcelo quando aparece nessa altura já era uma espécie de senador, tinha-se afastado da vida ativa do partido com Balsemão, ia a uns conselhos nacionais, mas não tinha grandes amigos ou seguidores, não havia ‘marcelistas’ e, definitivamente, Passos Coelho não era um deles”, conta um social-democrata que viveu esses tempos no partido.

Passos e Marcelo tinham, no entanto, uma boa relação desde que, em 1994, a JSD decidiu apresentar um projeto de revisão constitucional. Rever a Constituição é um objetivo antigo de Passos que o defendeu quer como líder da “jota”, quer como líder do PSD. Marcelo, como constitucionalista reputado, achou graça e ajudou os jovens sociais-democratas. Ora, dois anos depois de terem discutido a Constituição, Passos perguntava claramente a Marcelo se queria ser líder. O professor disse que não.

Passos já era teimoso na altura e pressionou Marcelo para apresentar uma moção de estratégia ao Congresso. Disse ainda que era importante colocar alguma informação sobre essa moção na edição seguinte do semanário Expresso. Marcelo hesitou, mas acabou por se deixar seduzir e ditou a Passos Coelho seis ou sete tópicos da moção por telefone. Feito. Manchete do Expresso a 17 de fevereiro de 1996: “Marcelo apresenta moção ao congresso.” Estava lançada a candidatura de Marcelo e com a mão de Passos.

No XVIII Congresso Nacional do PSD, em Santa Maria da Feira, Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito líder do Partido Social Democrata.

No XVIII Congresso Nacional do PSD, em Santa Maria da Feira, Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito líder do Partido Social Democrata

O professor acabaria por vencer o Congresso sem concorrência, mas Passos Coelho nem ficou para assistir à consagração. Abandonou o Congresso a meio. Marcelo não ouviu o ex-líder da JSD (e um dos principais impulsionadores da candidatura) sobre estratégia nem sobre a escolha dos nomes para a direção do partido — para a qual não o convidou. Marcelo relegou Passos Coelho para um desonroso oitavo lugar na lista ao Conselho Nacional. Estratega, Marcelo queria controlar o partido distribuindo lugares pela lógica das distritais. A partir daí, cruzaram-se várias vezes, mas a relação nunca mais foi a mesma. A confiança entre ambos, foi-se desvanecendo.

Marques Mendes candidatou-se depois a líder parlamentar e escolheu Passos Coelho para vice-presidente e porta-voz da bancada do PSD que se opunha a António Guterres. Nessa condição, o agora líder da oposição participaria em várias reuniões noturnas na sede do PSD para combinar a estratégia do partido. As divergências ficariam, momentaneamente, para trás das costas.

Passos chegaria a integrar uma comitiva do líder durante uma visita a Cabo Verde, para assistir a um congresso do MpD, onde além de Passos Coelho, segue o seu sucessor na JSD e amigo, Jorge Moreira da Silva, e, claro, Marques Mendes. É em Cabo Verde que Passos assiste a uma desavença entre José Luís Arnaut, então braço-direito de Marcelo, e o líder do PSD. Arnaut começa a dar pontapés debaixo da mesa a Marcelo para ele moderar as declarações e o líder do PSD e Marcelo passa-se: “Eh pá, por amor de Deus, daqui a nada bato-lhe!…Você leva um par de bofetadas, pá!” E acaba mesmo por haver pelo menos um empurrão. Mais tarde, o próprio Marcelo comentaria o assunto: “Não bati. Ele [Arnaut] diz que eu lhe bati, dei-lhe para aí um safanão…” Passos terá tudo isto na memória. Em 1997, durante a presidência de Marcelo, Passos Coelho foi candidato à câmara municipal da Amadora e Marcelo fez campanha ao lado do ex-líder da JSD. Mas nunca lhe deu qualquer sinal de apoio — enquanto líder do partido — nas suas duas candidaturas à distrital de Lisboa, uma contra José Pacheco Pereira e outra contra Pacheco Pereira e Duarte Lima (que havia de ganhar a distrital).

Nessa época, Passos Coelho ainda conseguia viver na montanha-russa que era a liderança de Marcelo Rebelo de Sousa. Hoje não se revê naquilo que considera ser a personalidade instável e maquiavélica do “doutor Rebelo de Sousa”. Ele próprio tem as suas táticas e, por exemplo, colocou na sua direção política uma social-democrata próxima de Marcelo, Sofia Galvão. Muitos comentavam no Congresso de abril que era para “tentar apaziguar Marcelo”. O almoço desta quinta-feira servirá de apaziguamento?

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