Os juros da dívida em mínimos históricos deram, “obviamente”, um “contributo para o reequilíbrio das contas públicas”, reconhece Mário Centeno. Graças a essa poupança, o Estado pôde gastar noutras áreas quase 900 milhões de euros só nestes dois anos: 2020 e 2021. Mas a tendência, avisou, é para um “contributo” cada vez menor: foram 600 milhões no primeiro ano e metade disso no segundo. Em 2022, será menos ainda (150 milhões, segundo o Governo). Este é um dos alertas feitos pelo governador do Banco de Portugal, a dias da entrega da proposta do Orçamento do Estado – o outro é que é preciso reduzir a despesa corrente do Estado (cuja importância no PIB subiu em relação ao pré-pandemia).
Na apresentação do Boletim Económico de outubro, no Museu do Dinheiro em Lisboa, Mário Centeno lembrou que Portugal tem “um peso da despesa – retirando todos os efeitos das medidas Covid, one-offs [impactos não-recorrentes] e tudo o que é financiado por fundos europeus – um rácio da despesa primária corrente no PIB que será, no final deste ano, 1,8 pontos percentuais superior ao de 2019”. Por outras palavras, mesmo sem contar com as medidas que foram lançadas especificamente para o combate ao impacto da pandemia, a despesa do Estado passou a ter um peso maior na atividade económica nacional.
Embora considere esse aumento “normal” e “expectável”, Centeno defende que é preciso voltar a “absorver” esse acréscimo de dívida, “se quisermos retomar a trajetória anterior à crise”, atirou o ex-ministro das Finanças. E quando se fala do peso da despesa pública corrente no PIB fala-se em quê, concretamente? Centeno clarificou que o acréscimo de 1,8 pontos percentuais (p.p.) se divide entre 0,8 p.p. em salários da Função Pública e 1 p.p. em prestações sociais.
“O peso destas duas áreas do Estado no PIB aumentou de forma muito significativa ao longo destes dois anos, 2020 e 2021, insisto, esta tendência é normal, é expectável, aconteceu em todos os países da Europa. Trata-se agora de retomar os níveis anteriores à crise”, referiu Centeno, lembrando que neste período pandémico foi do Estado que adveio 80% do aumento da dívida total do país nestes dois anos. “Esta é, obviamente, uma preocupação no quadro orçamental presente”, avisou.
Centeno recordou que, “no período anterior à crise, observámos uma redução muito significativa da dívida privada”. Em concreto, “no ano de 2019, pela primeira vez em muitos, a dívida privada em percentagem do PIB esteve abaixo da média da área do euro”. Mas nesta fase que alguns acreditam ser o início do “pós-pandemia”, Centeno sublinha que “devemos retomar” essa tendência e tomar as medidas “adequadas”, porque o nível de endividamento, quer público quer privado, é algo que nos deve preocupar a todos“.
A despesa corrente de que fala Centeno é a despesa primária, ou seja, não inclui os juros pagos pela dívida pública. Mas, do ponto de vista mais alargado das contas do Estado, o governador do Banco de Portugal também alertou que “não pode ser esquecido” que a cada ano será menor o “contributo” dos juros mais baixos que se pagam pela dívida – até porque as taxas já estão com tendência de subida nos mercados financeiros.
“Portugal pagará até ao final do ano menos quase 900 milhões de euros do que pagou em 2019, mesmo com um nível de dívida superior. O que significa que essa componente, que tem contribuído obviamente para o reequilíbrio das contas públicas, não pode ser esquecida até porque tem uma dinâmica que não resulta apenas daquilo que se passa das finanças públicas em Portugal”, afirmou Centeno. Essa dinâmica, acrescentou, é “muito influenciada pelo conjunto de políticas a nível europeu” – não só a política monetária do BCE mas, também, as iniciativas mais políticas (como a dívida conjunta para financiar a chamada “bazuca”).
Segundo os cálculos do Banco de Portugal, a taxa média implícita de toda a dívida portuguesa foi de exatamente 2% em 2021, abaixo dos 2,2% de 2020 e dos 2,6% de 2019. É através das novas emissões que o Estado vai conseguindo reduzir esta taxa média global e, dessa forma, diminuir aquilo que tem de ser orçamentado anualmente para pagar a dívida aos investidores – isto porque as novas emissões, feitas a custos mais baixos, vão substituindo gradualmente as linhas de dívida mais antigas e mais caras.
Mas esse efeito de descida das taxas tende a tornar-se menos veloz, em parte porque os juros da nova dívida já não estão nos mínimos históricos. No prazo de referência a 10 anos, por exemplo, as taxas de juro estão a aproximar-se dos 0,4%, o que é comparável com os 0,1% de meados de agosto – consequência dos redobrados receios em torno da inflação na zona euro e o perigo de essa subida dos preços poder forçar a mão do BCE e levar Christine Lagarde a diminuir os estímulos monetários mais rapidamente.
Em Portugal, a taxa de inflação deverá terminar 2021 nos 0,9%, uma revisão em alta face aos 0,7% que foram estimados em junho. Mário Centeno já disse publicamente que não deve haver precipitações na reação aos números da inflação – porque esta “já nos enganou no passado” – mas os mercados financeiros mundiais têm vindo nas últimas semanas a incorporar uma redução dos estímulos mais rápida não só na zona euro mas, também, nos EUA.
Neste momento, acrescentou o responsável, as estimativas apontam para uma taxa de inflação de 1,5% em 2022 e de 1,7% em 2023. E Centeno diz que “ainda” se continua a acreditar que a subida da inflação se deve, sobretudo, a fatores “transitórios” e “efeitos-base” associados à retoma pós-pandémica – porém, este é um aspeto que tem de ser “monitorizado” a todo o momento, salientou o governador do Banco de Portugal.
Este é um boletim económico trimestral que, nesta edição de outubro, como habitualmente, não inclui previsões para 2022 – aliás, não surge qualquer referência ao ano de 2022 quando se pesquisa as 77 páginas do documento.
Não há projeções (novas) para o próximo ano porque se está a poucos dias de ser apresentada a proposta do Orçamento do Estado – por isso, até ao próximo boletim económico (a divulgar em dezembro) continua a valer a projeção feita em junho, que foi de um crescimento de 5,6% em 2022.
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Quanto a 2021, o Banco de Portugal manteve a previsão de um crescimento de 4,8% – mas, debaixo da superfície, essa é uma projeção que traz alterações relevantes: por um lado, o consumo privado vai dar um contributo maior, crescendo 4,3%, quando em junho apenas se esperava 3,3%; por outro lado, o investimento (formação bruta de capital fixo) só irá aumentar, afinal, 5,6%, quando em junho se previa um “salto” de 7,6%.
Também as exportações serão menores do que se previa em junho: nas exportações de bens prevê-se um aumento de 10,7%, que compara com os bem mais animadores 17,4% que se antecipavam em junho. Já as exportações de serviços – basicamente, a atividade turística – só subirá 7% em 2021, menos do que os 7,5% anteriormente calculados.
Apesar destas mudanças ao nível das componentes do produto económico, no final de contas o Banco de Portugal antecipa que, “no final do ano, o PIB aproxima-se do observado pré-pandemia“. “O choque pandémico revelou-se temporário, não obstante o impacto mais prolongado em alguns setores e empresas”, salienta o boletim económico trimestral.
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O Banco de Portugal aponta que “nestes casos existe o risco de acumulação de situações de maior debilidade financeira, que podem traduzir-se num aumento das empresas não viáveis face a 2019”. Os economistas de Mário Centeno escrevem que “a ação das medidas de apoio à liquidez das empresas foi crucial, mas poderá ter adiado o necessário ajustamento de algumas empresas“.
Isso é um fator ainda mais preocupante porque, depois dos 4,8% que se prevê que a economia cresça neste ano de 2021 e dos 5,6% de 2022, os anos seguintes serão marcados por expansões económicas bem menos fulgurantes – e o País precisa de se preparar para uma “desaceleração muito significativa do crescimento económico“, avisou o governador do Banco de Portugal.
Mário Centeno avisa que “os desafios de crescimento que se colocavam antes desta crise vão estar, outra vez, presentes na economia portuguesa” e, nessa altura, “para fazer crescer uma economia temos necessidade dessa reafetação de recursos entre setores. É assim que as economias crescem. Portanto, nós temos de estar preparados para a necessidade de observar essa reafetação”.