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Maria João Avillez entrevistou o Papa no Vaticano (Foto gentilmente cedida pela TVI)
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Maria João Avillez entrevistou o Papa no Vaticano (Foto gentilmente cedida pela TVI)

Maria João Avillez entrevistou o Papa no Vaticano (Foto gentilmente cedida pela TVI)

Os bastidores de uma entrevista com o Papa Francisco

Tudo se precipitou com um telefonema. Pouco depois, Maria João Avillez respirava fundo e entrevistava "um homem alto, hoje mundialmente conhecido como Francisco". Agora, conta como tudo aconteceu.

Hoje

O vidro da porta deixava antever uma figura branca a caminho da sala. Lá dentro, a expectativa pesava, o momento exigia competência e responsabilidade, havia as duas coisas. Com acompanhamento eclesiástico, a equipa da TVI tinha mudado alguns móveis de sítio, trocado cadeiras, arredado vasos de plantas, estudado enquadramentos e planos, aprimorado a melhor luz. Tudo estava a postos. Ouve-se o silêncio. Segundos depois, um homem alto, hoje mundialmente conhecido como Francisco, entra na sala, apoiado numa bengala. Vem sozinho. Movimenta-se devagar, coxeia um pouco, sorri, cumprimenta. Observa. Tem o olhar vivíssimo, dois berlindes escuros que ora se movem ora se fixam, atentos, sempre.

O Sumo Pontífice cumprimenta os três repórteres de imagem — João Franco, David Felix, Romeu de Carvalho —, o produtor Alexandre Assunção e inquire com o olhar qual a cadeira para onde deve dirigir-se. Não há assessores soçobrando papéis, nem secretários com garrafas de água. Continua a sorrir, enquanto lhe agradeço este privilégio (que tomo como uma bênção e também lho digo).

“Quanto tempo tenho?”, pergunto. “Uma hora, por aí. Está bem assim?”, responde com afabilidade. “E posso falar português muy despacio?”, pergunto ainda, enquanto já em contagem decrescente nos são colocados os microfones e se prepara a claquete. Sem qualquer rede por debaixo do trapézio, volto a respirar fundo: é o sucessor de Pedro que nesta tarde escaldante de 11 de Agosto de 2022 está sentado nesta sala do Vaticano.

Do lado de lá do telemóvel, alguém credenciado no Vaticano me avisava que "a entrevista pedida ao Santo Padre estava acordada". O encontro seria "o mais breve possível, talvez ainda em Julho, princípios de Agosto, depois se veria concretamente onde".

Ontem

Foi uma grande história. Estávamos no início de Julho, e naquele dia a estrada entre a Régua e o Pinhão quase ardia, quanto calor! Era o inclemente verão no Douro, mas não havia lugar para esmorecimentos: dali a nada, numa quinta debruçada sobre o rio, estaria a receber o prémio D. Antónia Ferreira do ano 2022, havia que estar à altura. A meio do trajecto, o telemóvel zumbe. O indicativo de Roma no visor anula a preguiça de atender: Roma?

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Do lado de lá do telemóvel, alguém credenciado no Vaticano me avisava que “a entrevista pedida ao Santo Padre estava acordada”. O encontro seria “o mais breve possível, talvez ainda em Julho, princípios de Agosto, depois se veria concretamente onde”. E ouço ainda: “Sua Santidade teria gosto em que esta entrevista ocorresse justamente agora, um ano antes da Jornada Mundial da Juventude, que se realizarão em Portugal em 2023. Tudo o que necessitamos de momento é a certeza da sua disponibilidade e a indicação de quais os meios de comunicação onde ela será publicada. Falamos para a semana, quando tiver respostas”.

Uma convocação. Respirei fundo. De um segundo para outro quase tudo se esfumava e a própria D. Antónia Ferreira, agora subitamente envolta num remoto nevoeiro, fora substituída por outras memórias, cujos fios se iam desatando: a breve conversa havida com o meu interlocutor fora suficiente para perceber que a inesperada convocatória para a Santa Sé não era senão o feliz epílogo de um pedido por mim feito — há muito tempo — a alguns membros da Igreja portuguesa e ao próprio Vaticano: se 2023 traria a Portugal a Jornada Mundial da Juventude, quem melhor que o Papa Francisco para lançar as suas sementes a um ano da sua realização, fazendo delas um momento fértil de fé e reencontro? Ninguém, de facto.

O diálogo televisivo com o Papa Francisco na Casa de Santa Marta acabou por durar mais do que a hora por ele prometida. O Santo Padre não mostrou pressa: "continuava a trabalhar" neste Agosto, mas dispunha de um pouco mais de tempo para si ("rezo mais, leio mais, ouço ópera…").

Com a ideia em mente metera mãos à obra, ora crendo, ora descrendo que a minha candidatura passasse algum dia disso mesmo. Sabia da fortíssima importância da Jornada Mundial da Juventude se realizarem em Lisboa com um Chefe da Igreja que sabe tão bem falar, animar, interpelar os jovens quanto ouvi-los. E, como o próprio Papa Francisco se empenha, e com que gosto, nesses encontros onde se celebra o fulgor e a generosidade de uma fé jovem.

Meia hora e muito calor depois do breve diálogo telefónico entre Roma e a Régua, foi numa quase sensação de irrealidade que ouvi as mais generosas palavras sobre o meu trabalho jornalístico ditas por Artur Santos Silva, presidente do júri do Prémio Dona Antónia. Respondi com outras, tentando estar à altura do prestígio daquela distinção. Com cabeça num torvelinho e metade de mim já no Vaticano.

A vida seguiu o seu curso aos encontrões com a pandemia, o país fechava e abria, as Jornadas adiaram-se, o tempo passou. Sem notícias, ignorava que nos “bastidores” alguma coisa estava a acontecer. Não havia certezas, havia diligências, por definição morosas. Até hoje nunca soube entre quem, nem em que termos. Aconteceram. A Igreja levou-as a bom porto.
E a Jornada Mundial da Juventude de Agosto de Lisboa 2023, ganharão com isso.

Amanhã

O diálogo televisivo com o Papa Francisco na Casa de Santa Marta acabou por durar mais do que a hora por ele prometida. O Santo Padre não mostrou pressa: “continuava a trabalhar” neste Agosto, mas dispunha de um pouco mais de tempo para si (“rezo mais, leio mais, ouço ópera…”).

Apesar do calor tão húmido, preferiu não trocar a cidade por Castel Gandolfo, refúgio dos Sumos Pontífices nos arredores da capital e onde quase nunca vai. Sente-se bem nesta Casa. Foi, aliás, logo após a sua eleição, em Março de 2013, que anunciou querer fazer dela a sua morada.

É lá que se levanta sempre às 4 horas da manhã (“mas às 10 horas apago a luz e durmo”); onde celebra missa diariamente, trabalha, lê, reflecte, ouve, decide, almoça, janta. (Toma as suas refeições numa espécie de recanto da casa de jantar e, não fora o traje branco, ninguém daria pela sua presença. Pude testemunhar isso mesmo in loco, uma vez que lá almocei, há já um bom par de anos).

Surpreende a agilidade mental, a atenção, a fluidez do verbo. E só o problema ortopédico que lhe tolhe um dos joelhos impede que se diga que, aos 85 anos, está em plena forma física.

Surpreende, sobretudo, a desconcertante simplicidade. Mas depois lembramo-nos que o argentino Jorge Bergoglio é um homem da igreja latino-americana, marcado — e norteado — pela cultura, a história, as vivências daquela geografia. Começou a evangelizar na rua, com os pobres, o que o fez naturalmente atribuir cada vez maior importância à influência moral e à responsabilidade social da instituição Igreja; foi sempre eloquente na forma como mostrou querer uma “Igreja em saída”, ao encontro dos fracos e dos frágeis, sem que porém nunca, na sua acção pastoral, se tenha consentido qualquer desvio à disciplina institucional. Quer, em suma, uma instituição mais compadecida, mais próxima, uma Igreja mais aberta do que abrigada em quatro paredes acolchoadas. Sem grandes ornamentos e dispensando a pompa.

Há “pompa de menos” queixam-se alguns — mundo fora, Igreja dentro — que gostariam de “mais”, mas foi assim que o Chefe da Igreja se quis. E não por acaso Francisco foi o nome escolhido, o mesmo de uma das suas maiores (a maior?) inspiração, S. Francisco de Assis. Despojamento e humildade.

No final de uma longa conversa sem interditos ou reticências, impossível não admirar a solidíssima formação teológica, impossível sobretudo não reter a marca da fé: a certeza de Deus; a certeza do bem redentor sobre o mal; a frequente evocação do Divino Espírito Santo, o marianismo ampliado no “silêncio único de Fátima” (“Portugal, para mim, é Fátima!”); o comprometido empenho no caminho sinodal em curso; a indispensabilidade da esperança, a valorização da “harmonia” como ponto de partida e de chegada, a vital importância do diálogo. De todos, com todos.

"Portugal, para mim, é Fátima!", diz o Papa Francisco na entrevista

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

E claro – e em relevo — a importância da realização da Jornada Mundial da Juventude, pretexto e razão da aceitação do Santo Padre em conceder esta entrevista.

À despedida, oferece um terço e um belíssimo livro a cada membro da equipa, à qual se juntaram já o director da TVI, Nuno Santos, e o jornalista Joaquim Franco, presentes numa salinha contígua à nossa, onde ambos tinham seguido a gravação da entrevista. Os sete membros do grupo recebem as prendas abençoadas, tiram-se fotos, trocam-se mais algumas palavras. O Papa Francisco está ali convivialmente, não deixando de nos espantar com a sua capacidade de provocar e de praticar um humor que a solenidade daquele encontro nunca impediu: “Rezo todos os dias desde há 40 anos a S. Tomás More para nunca perder o humor!” (Um jovem sacerdote colocado na Santa Sé que foi o nosso “guia” e também assistira a esta gravação, não se conteve: “Via-se que o Santo Padre se sentia duplamente em casa”.)

O Papa partiu como chegou: sozinho, ou quase. Desta vez, saiu na sua cadeira de rodas, entretanto trazida para a sala e discretamente conduzida por alguém da Casa de Santa Marta. Francisco despediu-se deixando no ar o rasto dessa “harmonia” cuja procura vivamente recomendou.

Nenhum destes sinais exteriores da sua tão cativante personalidade ilude ou nos ilude, porém: sob cada um deles está o peso do mundo. Sabemos que não podia ser de outro modo e a isso se chama missão.

Entrou hoje sozinho na nossa sala como de certo modo sozinho continuará amanhã, apesar de audiências, viagens, multidões. A mochila é pesada.

Insistindo na importância da Jornada Mundial de Juventude, louvou a “criatividade” dos jovens de hoje, "tão diferentes da juventude de ontem". Pediu-lhes que "abrissem uma janela", deu exemplos de como os convoca e lhes fala.

Conhece os pecados cometidos; sabe a fragmentação que fere o universo católico onde se degladiam diferentes entendimentos e opostas perspectivas sobre a Igreja, as suas prioridades, o seu modus operandi. No decurso da nossa longa conversa cheguei a empregar a expressão “guerra civil” para o interrogar sobre a dividida Igreja de hoje. Mas Francisco serve-a. Tentando reformá-la, evitando divisões e cismas, sancionando pecados. E sabendo melhor que ninguém como eles ferem, nunca desiste: continua a servi-la.

Experimenta a dificuldade face a impossíveis equilíbrios e improváveis consensos. Tem a certeza de que o desânimo é planetário, não ignora a orfandade que ele provoca. Sabe tudo isso, mas acredita. É apesar de tudo isso que acredita.

Também sabe que desconcerta; que há quem o desejasse mais “europeu” e menos latino-americano; mais afecto ao brilho das vestes e à grandiosidades dos rituais; mais chefe de Igreja e menos protagonista nos palcos do mundo, cuidando de conflitos.

Os mais conservadores permanecerão previsivelmente reticentes, os mais progressistas não cederão — ambos pedem o impossível. Entre uns e outros, mas acolhendo todos, o Santo Padre carrega a mochila. Talvez poucos antecipassem como o mundo está hoje — e continuará amanhã — mais feio, mais perigoso, mais incerto. Ou suspeitassem os males que hoje afectam a Igreja e também a portuguesa. E, nesse sentido, há qualquer coisa de confiável no modo “não desistente” como o sucessor de Pedro, nunca prescindindo de se manter igual a si mesmo, se mantém à tona. Um cipreste. Liderando a Igreja e confiando no mundo. (“Não, nem tudo é mau, há tantas, tantas coisas boas hoje”).

É assim que o jesuíta Bergoglio se interpreta como Francisco: permanecendo. “Separando o trigo do joio”, como aconselhou a que se fizesse, o que é outra forma de opor a beleza ao pecado numa história antiga de dois mil anos.

Insistindo na importância da Jornada Mundial de Juventude, louvou a “criatividade” dos jovens de hoje, “tão diferentes da juventude de ontem”. Pediu-lhes que “abrissem uma janela”, deu exemplos de como os convoca e lhes fala. Lida com eles como ninguém, sejam ou não crentes, e eis o que também define este Papa. Está inteiramente certo da indispensabilidade do encontro mundial de Agosto de 2023, certo de que será um momento maior de luz e reconciliação com jovens vindos dos quatro cantos do mundo. Um motor de arranque, a alavanca da possibilidade de outro amanhã. Desinstalado e sem medo.

Talvez valha a pena ouvir o Papa falar assim, para além das agendas do dia. É capaz de ter razão. É desconcertante? É: mesmo quando parece dividir, agrega. É um Pastor que sabe muito bem o que quer, no que acredita, as responsabilidades e os compromissos que tem com Deus e com a Igreja de Cristo. E, por isso, mais que desconcertar, converte.

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