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Sentados no terraço do Cinema São Jorge, onde meses antes Pedro Gonçalves (o “gansgter” dos Dead Combo — Tó Trips, o outro membro, assume o papel de “cangalheiro”) foi entregar ao cantor americano Mark Lanegan um livro de poemas ingleses de Fernando Pessoa (Lanegan escolheria “I Know I Alone” para cantar no novo disco dos Dead Combo, Odeon Hotel), o músico foca o olhar na movimentada Avenida da Liberdade e fala sobre a Lisboa cosmopolita e turística: “Este disco também é um bocadinho uma reflexão sobre isso”.
As fotografias para a capa do álbum, que chega às lojas (físicas e digitais) esta sexta-feira e que começa a ser apresentado ao vivo na véspera, 12 de Abril, em Coimbra (Convento de São Francisco), foram tiradas no antigo Cinema Odeon. Pedro Gonçalves e Tó Trips pensaram na metáfora de um hotel enquanto ponto de contacto entre várias culturas (como se vê pela fotografia da capa), o que ilustra bem o caldeirão sonoro dos Dead Combo, onde cabem o fado, o jazz, o rock, os blues e os ritmos sul-americanos devidamente processados. Mas não só: a transformação do antigo cinema (situado ali mesmo, na rua das Portas de Santo Antão) em futuro espaço comercial e residencial ilustra as mudanças em Lisboa, que os Dead Combo veem com curiosidade e alguma preocupação.
“É um disco também sobre percebermos que estamos a viver um momento em que a nossa cidade está a sofrer uma transformação super rápida e não se percebe muito bem no que é que se está a tornar”, prossegue Pedro Gonçalves. Há coisas boas e más, claro. Tó Trips fala na recuperação dos edifícios (“a cidade estava a cair aos bocados”) mas sublinha que, como acontece noutras capitais europeias, “tudo o que abre é para consumo imediato, consumo de passagem”. Diz que Lisboa é já “outra cidade”. Pedro Gonçalves fala no realojamento das pessoas, diz que os moradores “estão todos a sair do centro”, que Lisboa “está a ficar igual às outras cidades europeias”, que o que a distinguia “começa pouco e pouco a desaparecer. Isto já é uma cidade virada só para pessoas cheias de dinheiro e estrangeiros. E isso não é uma cidade, é um resort turístico”.
Se foi, em parte, a transformação de Lisboa a inspirar Odeon Hotel, o sétimo álbum dos Dead Combo (a que acrescem discos gravados ao vivo e um outro em estúdio mas em colaboração com o grupo As Cordas da Má Fama) é o mais virado para fora. A bateria ganha uma preponderância que nunca tinha tido — torna-se “tão principal quanto as guitarras”, dirá a dupla — e a música instrumental ganha um peso rock. Há colaborações de peso, com Mark Lanegan e com o músico, engenheiro de som e produtor Alain Johannes — que já trabalhou com PJ Harvey, Queens of the Stone Age, Arctic Monkeys e Eagles of Death Metal e que ficou responsável pela produção musical do disco. Há uma versão de uma peça de Giuseppe Verdi (“La Forza del Destino”) e há um poema de Pessoa musicado. Tudo para “inovar” dentro de uma “identidade” que a banda há muito consolidou.
Odeon Hotel é o disco que os Dead Combo (já com longa carreira e vários concertos dados no estrangeiro) querem que projete a banda no mundo, daí ser editado pela Sony Music Portugal. “Uma das condições de termos agora, ao final de 15 anos, um contrato com a Sony [uma editora major, uma das maiores da indústria musical] foi a promessa de editarmos lá fora dentro de uma estrutura sólida”, refere Pedro Gonçalves. O disco será editado digitalmente em todo o mundo e fisicamente em “muitos” países.
[o primeiro single, “Deus me dê Grana”]
Ao Observador, a Sony Music Portugal prefere não precisar quais, já que há acordos ainda a ser ultimados com parceiros internacionais, mas diz que está a ser dado um “tratamento preferencial” à internacionalização do álbum e que “há um interesse muito grande e muito maior do que o habitual de parceiros internacionais” num disco português. O que acontece, dizem, pelo percurso qualitativo construído pelos Dead Combo em mais de década e meia e por ser um disco “perfeitamente exportável”, até porque “tem uma identidade muito própria, isto é, não é mais uma disco de pop ou mais um disco de rock igual a outros” e “não tem a barreira da língua”.
Tó Trips e Pedro Gonçalves estão à espera “para ver no que dá”, com os pés assentes na Terra. Diz o primeiro: “Gostaríamos de ir lá para fora, tocar e tal. Mas já andamos nisto há uns anos e já nos prometeram tudo, ou muita coisa, e depois não se passou absolutamente nada. Já não somos nenhuns putos fascinados a pensar: ‘isto agora é que vai ser’. Não é agora que vai ser, se tiver que ser é. Vamos ver”.
“Chegámos a um ponto em que já não tínhamos muitas saídas”
Passaram-se quatro anos desde o Bunch of Meninos [o anterior álbum de inéditos] e dois desde que editaram o Dead Combo e as Cordas da Má Fama [gravado com o grupo Cordas da Má Fama, depois de uma digressão colaborativa]. São muito perfecionistas, gostam muito de tocar ao vivo ou, com uma carreira longa e com vários discos, a pressa não é a mesma?
Pedro Gonçalves (P.G.) – O que aconteceu na realidade foi que a malta fez o Bunch of Meninos, a seguir andámos dois anos e qualquer coisa na estrada com o disco e depois por acaso aconteceu [o projeto com] As Cordas da Má Fama, com o qual andámos um ano e tal. Gravámos o disco no fim dessa tournée, ou seja, durante estes anos todos não tínhamos necessidade nem tempo quase de fazer um disco.
Tó Trips (TT) – Como isto é um mercado tão pequeno, também nos preocupamos um pouco em não estarmos sempre quase de dois em dois anos a lançar discos. Se não chega uma altura em que estás-te sempre a expor e torna-se quase uma obrigatoriedade. Nós também nunca fomos tipos de sentir pressão para fazer isto ou aquilo.
Cada disco é especial mas este pode ser um marco. Têm vários convidados, um dos quais o Mark Lanegan. É um disco que explora muitas sonoridades, salvo erro é a primeira vez que um disco vosso é produzido por alguém externo à banda, neste caso por um produtor americano… Sentem-se no melhor momento da vossa carreira?
P.G. – Em relação ao produtor, sentimos que chegámos a um ponto em que achámos que já não tínhamos muitas saídas. Andávamos sempre os dois a produzir os discos e chegámos a uma altura em que tivemos a sensação que já nos íamos repetir. Por muito que te esforces e que queiras experimentar coisas novas, é normal já te estares a repetir, estares sempre a cair nas mesmas soluções. Foi um bocado por aí. Se é o melhor momento… até agora é, mas pronto, amanhã logo se vê.
T.T. – O pessoal também não pensa muito nessa história da carreira. Quer dizer, uma pessoa tem uma história, não é? Mas desta vez foi assim, da próxima logo se vê.
P.G. – Convidamos temos sempre muitos. Neste disco até são menos do que o costume. Se calhar o que fizemos desta vez foi escolhê-los mais a dedo.
T.T. – No caso do Mark Lanegan, até foi o Pedro que se lembrou dele.
Já lá irei. Mas antes pergunto-vos: a escolha do produtor [Alain Johannes] deve-se à proximidade que ele tem com o Mark Lanegan? São colaboradores de longa data…
P.G. – Não foi por causa disso. Até foi mais pelo trabalho dele com os Queens of the Stone Age e por ele ser meio produtor deles, meio engenheiro, pelo tipo de som que ele consegue fazer. E depois também por ele ser um músico extraordinário e uma pessoa que tem uma panóplia de conhecimentos e um horizonte gigante de música.
Quando as músicas lhe chegaram, em que fase é que estavam? Fizeram pré-produção?
P.G. – Há um ano e meio, gravámos umas seis músicas… que, pronto, estavam boas como estavam. Depois estivemos quase mais um ano sem fazer nada. E mais tarde quando decidimos gravar o disco sentimos mesmo necessidade de ter um produtor [externo]. E pronto, aí falámos com o Alain e fomos para estúdio [gravaram nos estúdios Namouche]. Recuperámos algumas dessas músicas, não todas…
T.T. – O disco tem umas 13 músicas. Ao fim e ao cabo, entre as que fizemos antes e depois, gravámos 17. As outras que não ficaram no disco também estão gravadas e misturadas.
P.G. – Pré-produção não fizemos, propriamente. Depois quando fomos com o Alain para estúdio, aí é que as músicas que estão no disco apareceram quase todas. Já havia as melodias e as harmonias mas a música como está surgiu ali, os arranjos, as estruturas…
Conseguem encontrar aspetos concretos na música que estejam lá por causa do Alain?
P.G. – Ele em termos musicais, acho que a parte em que mexeu mais com os Dead Combo foi a parte dos ritmos e dos sons das guitarras…
T.T. – Há mais um lado técnico do que propriamente estético…
P.G. – Eu acho que é um lado estético, mas é de som, não é propriamente a música em si.
É a técnica a influenciar a estética?
T.T. – Ele não era um tipo de ligar muito à estrutura musical, às voltas… ligava mais ao som das guitarras, aos pedais, à ideia de gravar logo com bateria… também influenciou um pouco aqueles sons de teclado, a utilização do mellotron.
Procuraram um produtor externo, convidaram o Mark Lanegan para cantar uma das músicas, fizeram uma versão de uma peça de Verdi (“La Forza del Destino”)… tudo para a música continuar a ser diferente?
P.G. – Somos tipos que gramamos fazer coisas sempre diferentes. Ou tentar. Aquela sensação de estares sempre na corda bamba, sabes? Gostamos disso na música, estarmos sempre ali sem saber se as coisas vão correr bem ou mal. E para isso é preciso arriscar.
T.T. – Sempre sem perder aquilo que se é. Não é um caminho muito fácil, tentar inovar dentro do caminho e da identidade que se construiu…
Os convidados mais presentes no disco são Alexandre Frazão, o João Cabrita e o Mick Trovoada. O que é que eles acrescentaram ao Odeon Hotel?
P.G. – O Alexandre neste disco tem um papel essencial. Grande parte dos arranjos foram feitos no estúdio com o Alexandre. E nós somos muito democráticos, achamos que toda a gente tem uma opinião válida e toda a gente manda igual. Não há chefes. Uma coisa que eu acho que é notória neste disco é que a bateria é um instrumento principal, tão importante quanto as guitarras. Isso, o João Cabrita nos saxofones também a mesma coisa, o Bruno Silva na viola d’arco, o Mick Trovoada nas percussões…
T.T. – Nós damos-lhes ideias mas eles também nos dão ideias a nós… Faz assim, faz assado, tira isso, faz aquilo na guitarra…
P.G. – Até na estrutura da música, não temos cá pruridos nem problemas com essas coisas.
[o showcase secreto que os Dead Combo deram no Pestana Palace, onde apresentaram cinco temas novos]
Não havia ideias muito definidas do que o disco se viria a tornar?
P.G. – Não porque quando vamos para estúdio, mesmo que tenhamos a coisa muito estruturada, normalmente o que acontece é que as coisas acabam sempre por ficar muito diferente [do que se previa]. Isso acontece porque descobres sempre qualquer coisa diferente, experimentas…
Quanto tempo passaram nesse processo de experimentar-gravar?
P.G. – Acho que foram 15 dias.
T.T. – Foram duas semanas a gravar e mais uma para misturar. Três semanas ao todo.
Trabalhavam em que horários?
P.G. – Chegávamos às 10h, 11h. Trabalhávamos, depois íamos almoçar, depois de almoço ficávamos até às 19h, 20h…
T.T. – Nunca fizemos noites.
“Sentimos que é possível exportar esta música”
No novo disco têm o Mark Lanegan a cantar um poema inglês do Fernando Pessoa, têm uma música chamada “Desassossego” [Pessoa escreveu O Livro do Desassossego]… que semelhanças é que a música dos Dead Combo tem com a escrita do Fernando Pessoa?
P.G. – Olha, somos de Lisboa [ri-se], somos portugueses, andamos todos a tentar ganhar a vida a fazer aquilo que gramamos…
T.T. – O Fernando Pessoa também é uma figura um bocado de ficção. Há poucas imagens do Fernando Pessoa, são sempre as mesmas, parece que é sempre um tipo que existiu mais ou menos. Sabe-se coisas através da escrita, da poesia…
P.G. – É um bocado como os Dead Combo [que mantêm também os seus alter-egos: desde o início que se vestem de gangster e cangalheiro].
T.T. – O Pessoa é uma personagem que andou aí. São poucas as fotografias que existem dele, há a caminhar na rua e pouco mais. Tem essa imagética que acho que tem a ver connosco — ou nós temos a ver com isso.
Quem escolheu o poema?
P.G. – Foi o Lanegan [Mark Lanegan]. Nós sugerimos para aí uns três poemas e ele disse: deixa ver, estou na estrada, vou vendo… E houve um dia em que ele disse: olha, descobri aqui um poema que acho que é mesmo bom para esta música, para cantar.
T.T. – [Vira-se para Pedro Gonçalves] E vieste aqui ao São Jorge entregar-lhe o livro [de poemas ingleses de Pessoa]. Ele tinha aceite e tu vieste aqui entregar-lhe o livro.
Ele já ouviu o resultado final?
P.G. – Já, gramou à brava.
T.T. – Mandou subir as vozes [ri-se].
P.G. – Trocávamos vários e-mails. Houve uma altura em que ele próprio sugeriu fazermos um disco conjunto. Quem sabe um dia…
Sendo também um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos fora de Portugal, sendo também o Mark Lanegan quem é, esperam que a canção tenha impacto internacional?
T.T. – Não fizemos a canção a pensar nisso.
P.G. – Não sei se é defeito ou feitio, mas nunca pensamos nas coisas em termos de objetivo. Quando as coisas acontecem, depois de acontecerem é que paramos e dizemos: olha que fixe, aconteceu.
T.T. – Gostaríamos de ir lá para fora, tocar e tal. Tudo isso. Mas não fazemos as coisas a pensar nesses termos, até porque isso é estar a pôr a carroça à frente dos bois. Por acaso nisso acho que temos os pés bem assentes na terra. Também já andamos nisto há uns anos e já nos prometeram tudo, ou muita coisa, e depois não se passou absolutamente nada. [Risos] É verdade. E como já não somos nenhuns putos fascinados a pensar “isto agora é que vai ser”… não é agora que vai ser, se tiver que ser é.
A discussão da projeção internacional da música portuguesa tem-se intensificado nos últimos anos.
T.T. – Acho que sim. O pessoal que faz coisas aqui, seja música ou não, acho que é fixe não se limitar a este país que é pequeno, a este mercado. Há coisas que são feitas cá que são válidas em qualquer parte do mundo. É bom pensar que existe um mercado lá fora… Agora, não é fácil porque existem milhares de coisas fixes. E nós sabemos bem que não é fácil, porque andamos há anos a tentar. Uma das condições de termos agora ao final de 15 anos um contrato com a Sony foi a promessa de editarmos lá fora, de editarmos lá fora dentro de uma estrutura sólida, vá. O disco vai ser editado em alguns países.
Esse objetivo já existia desde início? Ou foi-se tornando uma vontade maior com os anos?
P.G. – Vem desde o início. Não sei se foi depois do primeiro ou do segundo disco que fomos à Polónia e a mais uns sítios. Eram uns concertos nuns buracos. Mas realmente chegava-se aos sítios e mesmo sendo num buraco…
T.T. – Em concertos que tinham tudo para correr mal…
P.G. – Corria bem. Tocava uma banda de punk hardcore antes, por exemplo, e a seguir íamos nós. E corria sempre bem, as pessoas gostavam muito da nossa música.
T.T. – Acontecendo isso em sítios variados, com pessoas que não nos conheciam de lado nenhum, fica-se com a ideia…
P.G. – Que é possível exportar esta música. Só que a nossa parte é fazer a música, a parte do exportar têm que ser outras pessoas.
Quais foram os maiores apoios e dificuldades nessas tentativas?
P.G. – Apoios… bom, existem apoios individuais, não é? Porque apoios estatais não existem.
T.T. – Já tivemos apoios do Instituto Camões para umas viagens… mas isso não é futuro para ninguém. Também não não somos muito de apoios.
P.G. – Não somos porque quando existem não é uma coisa continuada, é uma coisa pontual. Portugal anda há anos e anos a falar de uma coisa que existe em imensos países: criar um gabinete do do Estado para exportar a cultura portuguesa. Há em todo o lado.
T.T. – Sim mas não pode ser, por exemplo, todos os anos os Dead Combo terem apoios para ir lá para fora. É este ano termos nós, amanhã outra banda… Não acho solução estar-se sempre a receber apoios, a banda tem de conseguir furar lá fora por si. Quem quiser viver disto tem de ser assim, não pode estar sempre à espera de apoios para fazer as coisas.
“Aqui, a cultura é vista como pessoal que não quer fazer nenhum”
Há uns anos esteve para nascer um gabinete estatal dedicado à exportação da música portuguesa, no final do segundo mandato de José Sócrates. Não chegou a avançar, veio a Troika…
P.G. – É uma vergonha, sinceramente. Ainda por cima há países que têm isso super bem feito, super bem desenvolvido. O caso mais antigo de todos que acho que é a Suécia, com os ABBA, que representavam 1% do PIB [sueco]… Não me venham dizer que a música não dá dinheiro, dá, tem é de se trabalhar e de se investir. Um por cento do PIB é muito dinheiro.
T.T. – Aqui, da direita para a esquerda, a cultura é vista como pessoal que não quer fazer nenhum. Não é trabalho, é divertimento. Entretenimento. Como se vê, agora e desde sempre, nunca passou de zero vírgula qualquer coisa.
P.G. – É a importância que a malta tem para esses gajos.
Daqui até ao verão vão tocar muito em Portugal. Datas internacionais têm três, duas na Alemanha e uma na Suíça. Vão esperar pela receção ao disco para marcarem concertos no estrangeiro?
P.G. – É um bocado por aí porque isto também se atrasou tudo um bocadinho, principalmente por culpa nossa. Atrasou-se o processo todo de negociação, vá lá, do disco. E então a parte da internacionalização começou a ser tratada já um bocado tarde. A ideia é o disco ser lançado no maior número de territórios possíveis e isso é logo uma coisa… Quando se está associado a uma editora como a Sony, que é uma grande editora, a probabilidade de se ir tocar à Tailândia, digamos, é muitíssimo maior do que estando associado a uma editora pequenina ou sendo uma edição de autor.
T.T. – Mas tudo isso é novo para nós. Vamos ver o que é que acontece.
P.G. – À partida está tudo bem, mas prognósticos só depois do jogo.
Ao longo destes mais de 15 anos, construíram cumplicidades com outros músicos? Mais novos, da mesma idade e mais velhos?
P.G. – Acho que temos uma sorte do caraças. Para já, somos dois tipos que gostamos à brava de ouvir música e depois não estamos fechados na nossa conchinha. Por isso é que acho que sim, que isso aconteceu. E aconteceu com desde bandas recentes, com meia dúzia de anos, até com bandas mais antigas.
Há algumas mais próximas?
P.G. – Agora temos a nossa sala de ensaios no [estúdio] Haus, portanto temos uma relação próxima com bandas de lá…
T.T. – Já tocámos com a bateria siamesa dos Paus, tocamos com pessoal do jazz…
P.G. – O baterista dos Quelle Dead Gazelle também já tocou connosco.
T.T. – O Camané, a Ana Deus…
“Não se pode afastar Lisboa das pessoas que aqui vivem”
Num entrevista antiga explicavam a vossa ideia de Lisboa e como ela influenciava a música. Diziam que era uma Lisboa “meio romântica, antiga, cinematográfica. Uma mistura daquela Lisboa antiga do Cais do Sodré com bandidagem, as prostitutas, isso tudo, aquelas ruelas escuras, aquele imaginário meio Hitchcock meio filme negro”.
P.G. – Já nem as putas há, sequer.
Como é que têm visto as mudanças na cidade?
P.G. – Este disco também é um bocadinho sobre isso. A história do Hotel Odeon, aquela capa [as fotografias para o disco foram tiradas no Cinema Odeon, tendo os Dead Combo dado um título mais “hoteleiro” ao disco], aquelas coisas todas são um bocado também uma reflexão sobre isso, sobre percebermos que estamos a viver um momento em que a nossa cidade está a sofrer uma transformação super rápida e não se percebe muito bem no que é que isto se está a transformar. À partida, a primeira reação que um tipo tem é pensar que a mudança não está a ser uma coisa lá muito boa, porque vês as pessoas todas a saírem do centro da cidade, onde viviam… Isto aconteceu nos anos 1970, 1980, agora está a voltar a acontecer. E depois uma coisa que me faz alguma confusão é que vês a cidade a ficar igual às outras cidades todas: as lojas são iguais, a oferta que tens é igual às de todas as outras [de outros países]. E depois as coisas que distinguem Lisboa de todas as outras cidades começam pouco e pouco a desaparecer. Havia sítios incríveis que eram únicos de Lisboa que pura e simplesmente já não existem. E que já não existem por uma questão económica.
Há alguns que frequentassem mais?
P.G. – O Cais do Sodré, por exemplo. Antigamente era uma coisa que eu acho que tinha um belo equilíbrio entre o antigo e o moderno, o jovem e o velho, o decadente e criminal — uma coisa ilegal à brava — e o cosmopolita. Era assim um equilíbrio muito giro. E isso desapareceu. Mas pronto, lá está, desapareceu dali mas aparece noutros sítios. A cidade, como organismo vivo, vai-se transformando…
T.T. – Uma coisa que foi fixe é que a cidade estava a cair aos bocados e havia sítios em que não se passava nada. Hoje a cidade está arranjada… é outra cidade.
P.G. – É, há coisas boas e más… Agora, não se pode afastar a cidade das pessoas que viviam nelas.
T.T. – Depois, há outra coisa que acho que tem a ver com os dias de hoje e não acontece só aqui: tudo o que abre é para consumo imediato, ou seja, tudo de consumo de passagem. É cafés, é restaurantes, é hotéis… sei lá. Agora estive em Dublin, vi duas lojas de música lá nuns buracos e tudo o resto era bares, restaurantes, lojas de roupa… tudo de consumo imediato.
É uma ideia de Lisboa um bocadinho menos polémica do que aquela que o Fernando Ribeiro transmitiu há uns tempos, numa crónica em que falava do emergir de uma “Afro Lisboa” que encantava a imprensa [falou ainda, por exemplo, dos “losers e wannabes das pistas de dança do Lux“, dos “saloios” que “a Madonna entretém”, do “kizomba“, dos “novos poetas elétricos” e do “novo rock das caves e garagens lisboetas de gente desafinada, feia e sem talento”].
P.G. – E qual é o problema disso? A única coisa que me preocupa em Lisboa não é as coisas estarem a mudar, isso nunca me preocupou, acho que isso é essencial. A evolução e a mudança fazem parte da vida. Preocupa-me é se as coisas mudam para um caminho que não permite as pessoas terem casas em Lisboa, no centro. Só por preços altíssimos e tal… não pode ser. Acho que isto já é uma cidade virada só para pessoas cheias de dinheiro e estrangeiros. E isso não é uma cidade, é um resort turístico.
Penso que o comentário dele ia mais no sentido da ostracização que ele dizia sentir estar destinada, na imprensa, a certos géneros musicais — rock, música feita com guitarras, por aí — em detrimento de outros, que ganharam reconhecimento nos últimos anos, como a música eletrónica, o hip hop… Sentiram essa ostracização?
T.T. – Não, não sentimos. Há música eletrónica a que eu não acho piada nenhuma, há outra que eu acho, não tem nada de mais.
P.G. – Acho que isso é uma coisa que está na cabeça das pessoas, que parte delas: se te sentes ostracizado tens é de pensar porque é que te estás a sentir ostracizado. Se calhar o problema está em ti, não está nos outros.
T.T. – Também o Fernando tem de perceber que aquele metal que ele faz…
P.G. – É muito específico.
T.T. – E vem de uma história de uma evolução dentro do metal. Houve tipos que se calhar dentro do metal ou do heavy metal olham para aquilo que ele faz e dizem: “epá, aquilo já não é…” Não sei, quer dizer, isso depende. Acho é que um tipo deve ser um bocado aberto às coisas. Independentemente do resto, pelo menos respeitar. [ri-se]
P.G. – Outra coisa que eu acho é que às vezes parece que algumas pessoas “conquistam” um determinado lugar e pensam que aquilo é um estatuto. Pensam que agora estão ali e dali não saem. Isso não existe… nunca existiu. Agora estás aqui e amanhã se calhar levas com uma árvore nos cornos e morres. E então, onde é que está o teu estatuto? Não está, acabou a conversa.
T.T. – Um gajo deve ser aberto. Eu tanto gosto de ouvir coisas pesadas como coisas afro, sei lá…
A mistura de influências, latitudes, géneros, faz aliás parte da identidade musical do Dead Combo.
T.T. – Sim. E há o caso nos anos 1990 dos Sepultura quando lançaram aquele disco, o Roots, com ritmos brasileiros… é um grande disco! Não é? Aí está um bom exemplo de uns tipos abertos dentro da cena do metal fizeram um disco revolucionário na sua altura e revolucionário para o mundo inteiro. Eles podiam entrar aqui a criticar coisas tradicionais, podiam ser assim. Mas não — e aquilo, para mim, está um grande disco de metal…
“Há um ano, ano e meio, estivemos para acabar com isto [Dead Combo]”
Voltando ao vosso percurso: dos primeiros ensaios juntos a este disco e às perspetivas de uma projeção forte internacional, houve momentos decisivos, marcantes?
P.G. – Houve para o bem e para o mal. Para o bem houve coisas marcantes como a do Bourdain [os Dead Combo conversaram com o famoso chef americano no episódio que este gravou em Lisboa, para o programa “No Reservations”], que foi muito importante. Houve uma série de coisas que foram bocados de sorte que tivemos ao longo destes anos todos e que nos permitiram também chegar a mais pessoas e sermos mais reconhecidos. Isso do Bourdain não foi só uma coisa lá para fora, foi uma coisa interna, também. De repente havia montes de malta cá que não nos conhecia e começou a conhecer. E havia malta que nos conhecia e de repente começou a pensar que até éramos importantes. O que é uma palermice, mas pronto…
T.T. – Um bocado aquela coisa à provinciano: é preciso vir alguém lá de fora dizer que alguma coisa é boa. A partir desse momento começou a aparecer um outro tipo de pessoas nos concertos.
Acham que também acontece no cinema, quando alguma realizador ganha um prémio internacional, por exemplo?
T.T. – Acontece em tudo.
P.G. – Recebes uma medalha lá fora e és o maior.
T.T. – Até no futebol acontece. Podes ser criticado mas depois vais jogar para um clube lá fora e já é o maior…
P.G. – É provincianismo.
E os momentos mais complicados, quais foram?
P.G. – Normalmente esses não têm nada a ver com música, têm a ver com sermos só dois e chegarmos a uma determinada altura em que um de nós, ou os dois, está assim mais avariado da cabeça e desatinamos e pronto… chateamo-nos.
São muitos anos de convívio?
P.G. – Sim, são coisas que não têm nada a ver com música, que na realidade não têm importância nenhuma…
Houve momentos em que chegou a haver a possibilidade de terminarem a banda?
P.G. – Sim. Aconteceu aliás recentemente, há um ano, um ano e meio. Chegou uma altura em que estivemos mesmo para dizer: ‘bora’ lá acabar com isto. Se é para ser assim… E era por uma estupidez. Não tinha nada a ver com música.
Não é por isso que muitas vezes as bandas acabam — “coisas que não têm nada a ver com música, que na realidade não têm importância nenhuma”?
T.T. – Sim, o normal é isso… aqui [nos Dead Combo] também não há muito a coisa do ego [como músicos].
Recuemos à formação da banda. Há uma história sobre como se conheceram, alegadamente foi numa noite no Bairro Alto. É mesmo verdade?
P.G. – Nós já nos conhecíamos, através de amigos comuns… mas a história que se conta é mesmo verdade: fomos os dois ver um concerto do Howe Gelb, mas separados — eu fui sozinho e o Tó foi sozinho. Ele no fim veio-me pedir boleia porque sabia que eu vivia ali no Bairro Alto e ele queria ir para lá. E eu disse-lhe: epá, boleia dou-te, mas é a pé que eu não tenho carro nem tenho carta. Quando vínhamos a pé, a andar, ele disse-me: “Convidaram-me [o Henrique Amaro] para gravar uma música de homenagem ao [Carlos] Paredes, não queres meter lá um contrabaixo?” E eu disse que sim, que era fixe. E a partir daí…
T.T. – A banda nasceu sem expectativa. Acho que quando é assim, as coisas até dão mais resultado do que quando são muito pensadas, quando é tudo planeado. Fizemos isto porque calhou. Também acredito que as melhores e as piores coisas surgem na rua. Às vezes pensa-se muito em fazer isto e aquilo e depois a montanha pariu um rato e às vezes das coisas mais descomprometidas, sem ambições, sem nada, surgem coisas porreiras.
Vão agora começar a apresentar o disco. Quem terão convosco nesta digressão?
P.G. – Vamos tocar ao vivo com mais três músicos: o Alexandre Frazão [baterista], o António Quintino que toca contrabaixo e mellotron e o Gui [dos Xutos & Pontapés], que vai tocar saxofone e mellotron.
Vão tocar sobretudo o disco, também o disco ou apenas o disco?
P.G. – Vamos tocar o disco quase todo, há para aí uma música ou duas que não vamos tocar.
T.T. – Dá-me ideia que, além do interlúdio, é só uma que não entra. A “Braço”.
P.G. – Pois, essa não entra.
Porquê?
P.G. – Porque a malta não conseguiu arranjar nenhuma solução para aquilo. É uma música que tem uns seis ou sete saxofones a tocar ao mesmo tempo e aquilo só com um não vinga.
T.T. – É a primeira vez em que fazemos um disco e vamos tocar aquilo que fizemos. Às vezes fazemos umas coisas a mais e depois tocamos os dois.
P.G. – Vai ser giro.
Os concertos de apresentação de ‘Odeon Hotel’ já anunciados:
12 de abril – Convento S. Francisco, Coimbra
13 de abril – Auditório Municipal Ruy de Carvalho, Carnaxide (Festival Soam as Guitarras)
14 de abril – Teatro Garcia Resende, Évora (Festival Soam as Guitarras)
28 de abril – Centro Cultural e de Congressos, Caldas da Rainha
12 de maio – Centro de Artes do Espetáculo, Portalegre
17 de maio – Teatro Louletano, Loulé
18 de maio – Teatro Mascarenhas Gregório, Silves
26 de maio – Auditório Municipal, Seixal
30 de maio – Video Lucem, Vila Real de Santo António
8 de junho – Anadia
16 de junho – Fórum Municipal Luísa Todi, Setúbal
21 de junho – Teatro José Lúcio da Silva, Leiria (Festival A Porta)
17 de julho – Parque Marechal Carmona, Cascais (EDP Cool Jazz)
20 de julho – Festival Mimo, Amarante
22 de julho – Boom Festival, Idanha-a-Nova
25 de julho – Rote Fabrik, Sommerbühne, Zurique, Suíça
27 de julho – Festival Palp, Martigny, Suíça
18 de agosto – Festival Vodafone Paredes de Coura (com Mark Lanegan)
24 de outubro – Casa da Música, Porto
9 de novembro – Teatro Municipal, Vila Real
17 de novembro – Cine-teatro António Lamoso, Santa Maria da Feira]