Há 33 anos, quando o maior acidente nuclear alguma vez registado aconteceu, Tanya tinha 8 anos e Vasiliy, o irmão mais velho, 10. Como todas as outras crianças de Musiiky, uma pequena aldeia junto a Ivankiv, hoje a cidade habitada mais próxima de Chernobyl, foram enfiados à pressa e sem grandes explicações num autocarro com destino ao Mar Negro. Era normal, todos os anos iam para o acampamento; em vez de ser no final das aulas, em 1986 ia ser antes, logo nos últimos dias de abril.
Como de costume, os pais ficaram para trás, a trabalhar, e as crianças seguiram viagem rumo a Odessa, na Crimeia. Ficaram por lá durante três meses, à guarda de monitores, sem dramas e com mergulhos, mais ou menos alheios à existência do reator destruído a apenas 50 quilómetros de casa e ao próprio estatuto de refugiados nucleares.
Quando regressaram, a cidade de Pripyat já era fantasma mas em Musiiky a vida continuava, como de costume. Ainda assim, nunca mais seria a mesma, conta agora ao Observador Anya Kot, 20 anos, a mais velha das duas filhas de Tanya — hoje, aos 41, professora de Geografia, ainda a morar em Musiiky.
Para escapar à radiação libertada pela explosão de um dos quatro reatores nucleares de Chernobyl, Tanya foi enviada para a Crimeia. Em 2008, 22 anos depois do desastre e um após enviuvar (o pai de Anya morreu num acidente de viação, tinha ela 8 anos e a irmã, Anastasiya, apenas 1), também ela meteu a filha, então com 9 anos, num autocarro pelo mesmo motivo — a radioatividade da central desativada desde dezembro de 2000 continua (e continuará) a contar vítimas durante pelo menos mais algumas décadas.
O destino é que foi diferente: primeiro aeroporto de Kiev, depois Lisboa, a seguir Peniche, para a casa de Maria e Hernâni Leitão, a família de acolhimento que a recebeu.
Hoje, onze anos e outras tantas viagens para Portugal depois, Anya ostenta com orgulho a cidade piscatória da zona Oeste no perfil de Facebook: é natural de Peniche e vive em Peniche. Ou então não, mas está a trabalhar para isso: “Na Ucrânia é outra vida, há problemas de guerra, problemas de política, problemas de radiação. Aqui uma pessoa com 70 anos já viveu mais do que é normal. Estou a estudar Turismo, mas não há turismo na Ucrânia. Trabalho num banco e vejo que há pessoas que ganham 100 euros por mês e nem o gás conseguem pagar. Não quero ficar aqui e viver menos, quero juntar dinheiro para ir para Portugal. Vou ter uma vida mais feliz, com certeza”.
É num português quase irrepreensível que Anya Kot fala com o Observador, via Messenger, a partir da casa onde vive com o namorado em Brovary, nos subúrbios de Kiev. Durante um ano, chegou a ter aulas uma vez por semana, com uma amiga de família, mas de resto tudo o que sabe aprendeu em Portugal, a um ritmo de cinco semanas de férias por ano, entre os 9 e os 16 anos, a idade limite para integrar o programa Verão Azul da Liberty Seguros.
De pioneira do programa de apoio às crianças mais desfavorecidas da zona de Chernobyl — fez parte do primeiro grupo de nove a viajar para o País — passou a monitora. “Este ano só vou uma semana por causa do trabalho. Chego no dia 14 de julho, volto a 21”.
De Ivankiv para Portugal
Terá sido em 2006 ou 2007, depois de um almoço com amigos espanhóis no entretanto falido Gemelli, que o CEO da Liberty resolveu seguir-lhes o exemplo e fazer alguma coisa pelas crianças vítimas da radioatividade na Ucrânia. “Não consegui dormir nessa noite, a minha cabeça tinha-se transformado num verdadeiro turbilhão de sentimentos desencontrados e conflituantes com o que me tinha sido contado ao almoço. Acordei rebentado e com umas olheiras gigantes de choro e falta de sono, mas com uma firme e inabalável decisão”, recordou José António Sousa em 2017 num livro sobre o programa de intervenção social da seguradora.
“A conversa com os meus amigos espanhóis foi a pedra basilar para a Liberty Seguros começar a contribuir para trazer a Portugal, no verão de cada ano, um grupo de crianças de uma cidade chamada Ivankiv, próxima de Chernobyl, permitindo-lhes assim passar um verão saudável, alimentando-se apropriadamente, vivendo no seio de famílias portuguesas que acabam por lhes dar educação moral, cívica e higiénica”, continuou a explicar o gestor, no mesmo texto.
No início, as famílias de acolhimento eram apenas as dos funcionários da empresa; com o passar dos anos e a divulgação do projeto, qualquer residente em solo nacional passou a poder candidatar-se para receber uma (ou mais) crianças de Chernobyl em casa.
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- 1000 euros por criança é o valor médio gasto pela Liberty Seguros em viagens e seguros
- Em 2019 serão 29 as crianças a viajar para Portugal
- Os gastos com a estadia, alimentação e atividades de cada uma das crianças ficam a cargo das respetivas famílias de acolhimento
- 36 foi o número máximo de crianças trazidas para Portugal num só ano
- Podem candidatar-se crianças entre os 6 e os 16 anos. “Mas em Portugal não é habitual quererem receber crianças com menos de 8 ou 9 anos”, diz Paulo Guerra Pires
Como Anya foi das primeiras crianças a viajar de Ivankiv para Portugal, Paulo Guerra Pires foi também dos primeiros mas a fazer o percurso inverso. Gestor de sinistros da Liberty, faz parte do grupo restrito de funcionários encarregues de eleger, com a ajuda do Centro Social e Psicológico Doviria, criado na cidade menos de 10 anos depois do desastre, as crianças que seguem para as cinco semanas de férias em Portugal. “Todos podem candidatar-se, quando lá vou visito todas as casas, conheço os pais, e falo com os miúdos, para ver se têm o mínimo interesse em vir. Queremos que não venham apenas para comer e melhorar a saúde, mas também para aproveitarem qualquer coisa.”
Ao todo, já esteve na região mais de uma dezena de vezes, a última delas em março deste ano. “Ivankiv fica na zona de exclusão de Chernobyl e é uma vila pequena, de 10 mil habitantes, com algumas aldeias miseráveis à volta, onde há quem chegue a passar fome. As pessoas são pobres e se há famílias estruturadas também há muitas que não o são, vi casas com um cheiro horroroso, bebés pelo chão, pais alcoólicos… Tirando uma fábrica de portas, não há indústria nem trabalho, tem tudo a ver com o desastre. Algumas pessoas vendem cartuchinhos com cogumelos ou batatas à beira das estradas, mas trabalho realmente não há. Não podem ter produção de leite porque, se se souber que é de Chernobyl, ninguém quer comprar, e o mesmo acontece com os produtos agrícolas. Aquele povo ficou um pouco abandonado ali”, começa por contextualizar Paulo Guerra Pires que, com a agora ex-mulher e com os filhos, à data com 12 e 14 anos, também foi dos primeiros a acolher em casa uma criança ao abrigo do programa. “Queria, além de ajudar, mostrar-lhes que a vida é difícil”, justifica.
Depois, continua a descrever um estilo de vida pobre e rural, a que só o advento das novas tecnologias e da internet veio, nos últimos anos, dar alguma contemporaneidade: “Eu e a minha família recebemos a Alina, durante seis anos, e a Karolina, por outros três. A Karolina, por exemplo, tem 10 irmãos e irmãs, que foi ela que ajudou a criar. É das mais velhas, tem 19 anos, e a mais nova tem uns 3 ou 4. A casa é pequena, têm um quarto para os pais, outro para os meninos e outro para as meninas, e cada um tem tarefas definidas: um trata dos coelhos, outro dos porcos, outro vai buscar água… São uma família pobre mas estruturada, têm eletricidade, um poço, o pai tem um empregozeco, salgam carne para o inverno, fazem compotas para aproveitar a fruta… A vida gira muito à volta disto, não há cinemas, uma vez por outra fazem um teatro, mas de resto não se passa nada. A grande revolução para estas pessoas foi a internet. Agora têm noção do que se passa no exterior mas há 11 anos, quando lá fui pela primeira vez, nem isso, só havia televisão”.
Das primeiras vezes que viajou para a zona de Ivankiv, conta o gestor de seguros, ainda teve medo das radiações e por várias vezes perguntou às pessoas por que motivo não tinham fugido dali depois do acidente nuclear. “Respondiam-me sempre a mesma coisa: «Tenho aqui a minha casa, que eu próprio construí, tenho amigos e família, o que vou fazer para outro lado qualquer da Ucrânia?!». Com a passagem do tempo, o perigo deixou de ser tão direto, pelo menos para quem, como eu, vai lá durante dois ou três dias e depois se vem embora. Agora, quando há um surto de gripe, as escolas fecham, porque as crianças não têm defesas e ficam todas doentes. Também há muitas alergias e a incidência de cancro da tiróide é muito alta. E em termos hospitalares aquilo é uma desgraça, não há nada, nem sequer medicamentos.”
Anya Kot recorda-se bem de, pelo menos nos primeiros anos em que viajou para Portugal, passar o início das férias de médico em médico, a fazer check-ups gerais. “Tinha alguns problemas de coração e de nariz — adenóides acho que se diz assim –, custava-me a respirar. Como não comia bem, tinha muitas dores de barriga. E também tinha problemas com os olhos, compraram-me uns óculos. É muito triste, muitas das pessoas que ficaram nesta terra morreram por causa da radiação, outras têm cancro e problemas de pele. O ar é tapado, faz muito mal. Comemos comida que está na terra com radiação, bebemos água com radiação, tomamos banho com radiação. Lembro-me, quando era pequena, de que quando chovia o chão ficava com umas coisinhas amarelas…”
Um dos objetivos do programa Verão Azul é esse mesmo: interromper, através do ar, do sol, do mar e da alimentação, o ciclo de radioatividade a que estas crianças, filhas dos filhos de Chernobyl, estão sujeitas. Apesar de ser apenas durante algumas semanas, garante Paulo Guerra Pires, faz toda a diferença: “Os estudos dizem que o sol e a praia são bastante benéficos para eles. Um mês em Portugal permite-lhes baixar muito os níveis de radiação e recuperar um pouco. Ao mesmo tempo, aproveitam para comer melhor, viver melhor e ver um pouco o mundo, queremos abrir perspetivas de vida também. A maior parte destas crianças vive a 90 quilómetros de Kiev e nunca lá foi”.
O regresso a Chernobyl
Os casos de Alina, que hoje tem 22 anos e está a fazer um mestrado em Kiev, na área do Direito Internacional; de Anya, de 20, que trabalha e estuda com o objetivo de se mudar para Portugal; e de Karolina, de 19, que está a tirar enfermagem, estão bem longe de ser a regra na zona de Ivankiv. Mas é exatamente por isso que têm meios e capacidade para conversar com o Observador sobre como é nascer e viver num dos sítios mais tétricos do mundo.
Via sms, com a ajuda de um tradutor online, Karolina Vasyanovytch explica que também os pais, ele condutor de tratores, ela doméstica, foram levados para a Crimeia três dias depois do acidente nuclear de 26 de abril de 1986. Uma vez regressados a Musiiky, não voltaram a sair.
Nos últimos 23 anos, tiveram onze filhos: Petya, de 23, Maksim, de 22, Karolina, de 19, Yuri, de 18, Cristina, de 17, Veronica, de 16, Darya, de 14, Roman, de 13, Nastya, de 11, Sofia, de 10, e Mariana, de 4. Só Sofia já não vive na aldeia: “As pessoas já estão habituadas a isto e já não têm medo, mas há muitos problemas de saúde, doenças cardíacas, cancros de tiróide… A minha irmã Sofia teve problemas nas pernas, tinha muitas dores, fomos ao hospital e os médicos disseram-nos que não percebiam o que se passava, que estava tudo bem. Por causa disso, passou a morar em Espanha. Está lá já há um ano”, conta Karolina, que entre os 12 e os 17 anos passou os verões em Portugal, primeiro com Luís e Margarida Leite, em Espinho, mais tarde com Paulo Guerra Pires e Paula Mourão, em Paço de Arcos. “Passaram a ser da minha família e sinto muito a falta deles. Gosto muito de Portugal, das pessoas, da arquitetura, da comida e das estradas — são muito mais bonitas e largas do que na Ucrânia”, diz, num português traduzido automaticamente e nem sempre muito percetível.
Ao telefone, via Messenger, Anya Kot é mais eloquente. Recorda a birra que fez da primeira vez que a “mãe Maria” lhe pôs um prato de polvo cozido à frente — “Chorei tanto, tanto quando vi aquilo na mesa, não queria comer, nunca tinha visto polvo antes. Não gostei nada, queria vomitar! Agora adoro polvo, é tão bom!” –, e garante que a alimentação portuguesa não só sabe bem como faz bem à saúde — “Nos primeiros anos em que vim para Portugal e comi peixe de mar, outras batatas e outras frutas fiquei melhor”.
Apesar de não ter visto ainda a série da HBO que voltou a colocar Chernobyl na ordem do dia, a estudante de Turismo não é alheia à moda mais ou menos recente que incluiu a cidade abandonada de Pripyat e a velha central nuclear nos roteiros turísticos e até já obrigou o argumentista da série a pedir contenção nas selfies e afins. “Agora em Pripyat há um hotel e há sempre muita gente a chegar em autocarros. Para mim não é normal, isto não é uma zona para fazer excursões e passeios.”
Apesar disso, ela própria já visitou Chernobyl. Tornou-se uma espécie de tradição para as pessoas que vivem junto à zona de exclusão: em jeito de comemoração da derrota do regime nazi na URSS durante a Segunda Guerra Mundial, a 9 de maio, Dia da Vitória, há romaria ao local. “Nesse dia Chernobyl está sempre aberto para nós, ucranianos. Já lá fui umas três vezes, a primeira vez quando tinha 12 anos, com a minha mãe, o meu padrasto e a minha mana, Nastya. Lembro-me de que havia muita polícia, abriram as portas do nosso carro, saímos e fomos revistados. Depois deram-nos um papel que tínhamos de devolver à saída.”
Nessa visita, recorda Anya, a primeira coisa que fizeram foi procurar a casa de uma tia, que em abril de 1986 deixou Pripyat apenas com a roupa que tinha vestida e os documentos de identificação para nunca mais voltar — hoje vive com a família na zona de Donetsk, a mais de 850 quilómetros de distância. “Havia muitas árvores, tudo era verde. Entrámos na casa da minha tia e estava tudo igual: havia água na garrafa, colheres em cima da mesa, a cama estava aberta e os jogos das crianças espalhados pelo chão. Pripyat era uma grande cidade, tinha tudo — até coisas que não existiam em Kiev. Tinha hotéis, restaurantes, um grande rio, parques, escolas, universidade. Se não tivesse acontecido o que aconteceu, se calhar hoje era a capital da Ucrânia.”
Numa altura em que turistas posam com máscaras de gás e compram canecas, ímanes e até preservativos que brilham no escuro, acredita Anya Kot, é necessária uma chamada à realidade: ali morreram pessoas. “Foi impressionante, os meus tios não trabalhavam em Chernobyl, mas todas as pessoas que trabalhavam e que morreram na altura fizeram tudo por nós, para que pudéssemos agora viver nesta zona. Todos os anos, no dia de Chernobyl, passam filmes e notícias na televisão. É um dia muito difícil, é uma história muito triste e emocional.”
Paulo Guerra Pires, que desde o divórcio deixou de acolher crianças mas continua empenhado no programa que durante cinco semanas por ano resgata crianças à radioatividade de Chernobyl, bate na mesma tecla: “Com a passagem do tempo, percebemos que alguns miúdos morreram. Lembro-me de perguntar à minha miúda e de ela me dizer que um amigo nunca mais tinha aparecido, que nunca mais tinha ido à escola. Nunca se sabe bem o que aconteceu, não fazem propaganda sobre o assunto, é um pouco tabu, mas Chernobyl continua a provocar vítimas”.