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Um governo de coligação que se fez numa boleia? Sim, já tivemos. Os governos mais curtos da democracia portuguesa aconteceram nos anos 70, mas as histórias desses executivos e o impacto dessas experiências de curta duração chegam até hoje. Entre o primeiro Governo constitucional, encabeçado por Mário Soares, à coligação entre PS e CDS, passando pelo Governo que detém o recorde de ser o mais curto desde que há eleições para a Assembleia da República: 86 dias.

Nobre da Costa, o primeiro (e mais curto) Governo de iniciativa presidencial

Após dois governos que não conseguiram trazer estabilidade política e mediante os poderes que a Constituição lhe atribuía na altura – e que só viriam a ser alterados com a revisão de 1982 -, Ramalho Eanes demitiu Mário Soares e o seu Executivo em julho de 1978. Poucos dias antes, o Governo chefiado pelo líder socialista e que mantinha um acordo parlamentar com o CDS tinha sofrido um último golpe, com Freitas do Amaral, líder centrista, a retirar o apoio ao PS – descrição mais detalhada deste (também) curto Governo em baixo. No dia 1 de agosto, o então Presidente dirige-se ao país e diz dar uma semana para os partidos encontrarem um entendimento. Caso isto não acontecesse, restava-lhe a incumbência de formar um novo Governo de iniciativa presidencial ou convocar novas eleições, algo que estava reticente a fazer devido à recente vinda do FMI a Portugal.

Nobre da Costa

Tomada de posse de Nobre da Costa @CasaComum

Sem resposta positiva por parte do partidos para uma coligação estável, Ramalho Eanes escolhe então Nobre da Costa, antigo ministro da Indústria do I Governo Constitucional, para ser primeiro-ministro e encontrar uma solução governativa. Nobre da Costa, engenheiro e empresário, estava então de férias no Algarve e regressou à capital para uma longa conversa com Eanes e para começar a fazer contactos para o novo Executivo. Em tempo recorde para quem estava fora das lides partidárias e era encarado como um “tecnocrata”, Nobre da Costa reuniu um Governo constituído por figuras como José Silva Lopes, economista – falecido em abril de 2015 – como ministro das Finanças e do então coronel Mário Firmino Miguel, uma das personalidades de continuidade dos últimos dois Governos, que mantinha a seu cargo a pasta da Defesa.

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Eanes dizia que “o seu” Governo duraria seis meses e Nobre da Costa defendia que não seria um primeiro-ministro de gestão, mas que a sua equipa viesse a “assumir por inteiro as responsabilidades que lhe foram confiadas, sem hesitações comprometedoras, tibiezas condenáveis ou comodismos fáceis”, como relata o Diário de Lisboa. O primeiro-ministro, que era próximo do PS e mantinha relações privilegiadas com as elites partidárias, ainda tentou recrutar ministros nos vários partidos para legitimar a sua governação, mas segundo Freitas do Amaral relata no seu livro “A transição para a democracia”, os convites foram rejeitados. Com ministros sem filiação partidária, Nobre da Costa defendia a independência do Governo, mas não assegurava a passagem sem incidentes do seu programa eleitoral na Assembleia da República. Poucos dias depois de tomar posse, o Governo teve de ir ao Parlamento apresentar o seu programa e passar no crivo dos deputados, algo essencial para a sua sobrevivência.

“Os ministros apresentaram-se a esta câmara na defensiva, como a pedirem desculpa por aqui estar (…), com alguma razão o fizeram já que só se representam a si próprios, visto que nunca foram sufragados pelo poder popular”, disse Mário Soares na Assembleia da República.

Aí encontrou a oposição dos vários partidos. Por um lado, Mário Soares estava em guerra aberta com Eanes e apesar de Nobre da Costa ter sido seu ministro, abominava a ideia de um Governo imposto pelo Presidente, especialmente um que o tivesse substituído. Também Freitas do Amaral estava convencido que Nobre da Costa não tinha capacidade para liderar o Governo, apesar de assegurar que tinha estima pessoal pelo empresário, indicando ao seu partido o voto favorável à moção de rejeição apresentada na Assembleia pelo PS. “O problema é estritamente político, o debate desde o primeiro dia mostrou a insanável incongruência deste Governo e também o pecado original da sua formação, ao arrepio do disposto na Constituição da República. Os ministros apresentaram-se a esta câmara na defensiva, como a pedirem desculpa por aqui estar (…), com alguma razão o fizeram já que só se representam a si próprios, visto que nunca foram sufragados pelo poder popular”, disse Mário Soares na Assembleia da República – veja o vídeo do discurso aqui.

Nobre da Costa ainda tentou retaliar: “Fomos acusados de tecnocratas, parece que é um insulto (…). Até houve quem pusesse em dúvida o que seria esse bicho estranho que é um independente. (…) Eu lamento que as coisas que estou a dizer tenham provocado risos, não é essa a minha intenção”. Não teve sucesso. Tanto PS, como CDS, como a UDP e vários independentes votaram a favor da moção de rejeição, garantido assim a maioria absoluta dos votos contra e o chumbo de Nobre da Costa. Este executivo durou 86 dias, mantendo-se em funções até Eanes nomear Mota Pinto como primeiro-ministro.

O primeiro Governo de Portugal foi minoritário e não durou muito tempo

As primeiras eleições legislativas em Portugal, a 25 de abril de 1976, não deram maioria a nenhum partido, ficando o PS em primeiro lugar com 107 deputados. Devido à solenidade das primeiras eleições para a Assembleia da República e com problemas urgentes para resolver no país como o regresso de centenas de milhares de portugueses das antigas colónias, o Governo foi viabilizado no Parlamento, não havendo rejeição do programa socialista. Os problemas vieram depois. Apesar dos sucessos relativos na acomodação dos retornados e de novas medidas que visavam estabilizar a frágil economia do país, o PS caiu num certo “isolacionismo”, como indica António Reis na coleção “Portugal Contemporâneo”, ostracizando outras forças políticas como o PPD –  que tinha ficado em segundo lugar nas eleições -, o PCP e o CDS. O próprio Mário Soares reconhece no livro “Democracia”, em entrevista a Maria João Avillez, que este foi um dos seus maiores erros políticos. “Apesar de o PS ter ganho as eleições, deveríamos ter, porventura, dialogado mais e estendido a mão quer ao PPD quer ao PC, em vez de ter feito, com alguma arrogância, um Governo assumidamente minoritário, sem concessões”, admitiu Soares.

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Mário Soares toma posse como primeiro-ministro do I Governo Constitucional @CasaComum

O Governo também destabilizou internamente o PS já que criou um afastamento entre Soares e Salgado Zenha, que tinha então expetativas de entrar para o Governo. Com a situação política a degradar-se, a 25 de abril de 1977 Ramalho Eanes deixa um claro aviso a Mário Soares no discurso na Assembleia: “Não hesitarei em tomar as medidas necessárias e correctas que assegurem a viabilidade da nação como sociedade livre onde valha a pena viver” – como relata o “Diário de Lisboa”. O PS começou então a procurar estratégias de apoio a medidas cruciais que ia apresentar nos meses subsequentes como a reforma agrária e a lei de delimitação dos setores vedados à iniciativa privada. Temas que fraturavam o Parlamento e nas quais seria necessário apoio dos restantes partidos. Sá Carneiro defende a abstenção do PPD na reforma agrária, mas estava isolado no partido e por isso, demite-se da liderança, deixando o cargo para Sousa Franco. Em novembro de 1977, a situação do país agrava-se e o PS tem de pedir apoio para criar uma plataforma alargada para negociar com o FMI o resgate ao país.

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Soares na noite em que o Governo caiu @CasaComum

Sem possibilidades nem à esquerda, nem à direita, Soares propõe uma moção de confiança ao seu Governo que é chumbada (no dia do seu aniversário) por CDS, PSD, PCP e UDP. “A partir da uma hora da manhã do dia 8, percebi que cairia. E caí de pé”, assegurou Soares a Maria João Avillez. Caia assim o I Governo Constitucional e o primeiro Governo minoritário da democracia portuguesa, um ano e 7 meses – o executivo ficaria em gestão até janeiro de 1978. Este foi até agora, o Governo minoritário mais curto desde 1976.

Uma coligação em sete meses

Com o fim do I Governo minoritário e a necessidade de financiamento externo, a prioridade é encontrar um novo Governo. Ramalho Eanes ausenta-se em visita oficial à Alemanha, afirmando que viabilizaria a formação de um novo que tivesse  apoio parlamentar de uma “maioria estável e coerente”. Em vez de optar por novas eleições, Soares admitiu mais tarde que cometeu novo erro político: aceitou tentar formar novo Governo “por razões patrióticas”. Depois de falhadas as negociações com o PCP e com o PSD –  que continuava em tumulto interno -, Soares recorreu ao CDS. Segundo Alçada Baptista, advogado e romancista, as negociações começaram da seguinte forma: o escritor estava a passar na Alexandre Herculano quando o carro de Soares pára ao seu lado e pede-lhe para entrar. Já lá dentro, o socialista diz-lhe: “Você é que podia ir dizer aos seus amigos do CDS se eles não querem formar um Governo comigo”. Em S. Bento, Baptista liga a Freitas do Amaral e assim começaram as negociações.

Freitas do Amaral não confirma esta história, mas diz que recebeu um telefonema do gabinete do primeiro-ministro a 12 de dezembro para um encontro na casa de Soares. A liderança viu com bons olhos a entrada num Governo, não só pela legitimação do partido, mas também pela saída da sombra do PSD que agregava grande parte dos votos à direita. A conversa entre Soares e Freitas do Amaral começou às escuras – houve um apagão – e muitas se seguiram até fechar o acordo. O PS queria um entendimento parlamentar também com o PCP, mas o CDS recusou tal possibilidade. O CDS teve direito a três pastas Comércio e Turismo, com Basílio Hora, Negócios Estrangeiros, com Victor Sá Machado e Reforma Administrativa, com Rui Pena e ainda cinco secretários de Estado. Freitas do Amaral relata no seu livro que este Governo foi visto pelo partido como uma vitória face aos comunista e sentido como “um legítimo orgulho”.

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Soares e Freitas do Amaral assinam acordo de coligação @CasaComum

O II Governo Constitucional tomou assim posse em janeiro de 1978, mas não produziu uma solução governativa estável. Apesar de as negociações com o FMI correrem bem – foram levadas a cabo por Vítor Constâncio, então ministro das Finanças -, as bases não receberam bem este acordo tanto no PS como no CDS. Com a necessidade imposta de melhorar a performance financeira e os esforços de contenção a que isso obrigava, o PS pôs em marcha a edificação do Sistema Nacional de Saúde para agradar ao seu eleitorado. Enquanto isto, no PSD, a crise interna continuava e Sá Carneiro ia exigindo eleições intercalares e seduzindo o eleitorado do CDS que estava desiludido com a união aos socialistas. Freitas do Amaral relata no segundo volume das suas memórias políticas que os primeiros tempos de Governo correram “francamente bem”, mas distribuição de altos cargos na administração pública e a reforma agrária foram afastando os dois partidos. Aos centristas chegavam as queixas da entidades patronais e das associações de agricultores. A 25 de abril de 1978, Ramalho Eanes, pressentindo a instabilidade, faz novo aviso: “O Presidente da República mantém a sua inflexível determinação de assegurar, por todos os meios constitucionais, as condições de realização do projeto nacional. Des deveres que o povo português lhe impôs, nenhum incompreensão, nenhum obstáculo, nenhum desafio, nenhum perigo o poderão demover”.

Em julho, o CDS pediu para o PS substituir o ministro da Agricultura, Luís Saias, mas Soares não cedeu. “Freitas do Amaral pedira publicamente a demissão de Luís Saias e exigia que eu acedesse a demiti-lo, como condição sine qua non para que os ministros do CDS permanecessem no Executivo. No dia em que o fizesse, passaria o CDS a liderar o Governo”, afirmou o então primeiro-ministro a Maria João Avillez. Freitas do Amaral, que ficara fora do Governo, diz no seu livro que ainda amnteve uma conversa com Almeida Santos em que este lhe propõe o cargo de vice-primeiro-ministro, mas que o então centrista terá recusado. Freitas do Amaral retirou o apoio formal ao Governo de coligação a 24 de julho e o Governo ficaria em funções até agosto de 1978. Esta coligação durou sete meses e 6 dias.