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O ano de 2020 foi tenebroso para o cinema. A pandemia fechou as salas e deixou mal povoadas as que reabriram, parou a produção, levou os grandes estúdios a adiar a estreia das suas superproduções ou a enviá-las para o “streaming”, pôs em causa o modelo de negócio baseado nas salas multiplexes e nas estreias em grande escala, cancelou grandes e pequenos festivais de cinema, transferindo muitos para a Net, e deu um impulso inimaginável ao citado “streaming”, que se substituiu ao cinema em todo o mundo. Mesmo assim, conseguimos elaborar uma selecção dos melhores filmes estreados em Portugal, quase todos eles antes do encerramento das salas e um deles disponível apenas na Netflix.
“O Caso de Richard Jewell”
De Clint Eastwood
Em 1996, Richard Jewell, um anónimo segurança dos Jogos Olímpicos de Atlanta, descobriu uma bomba posta num parque da cidade durante um concerto, ajudou a evacuar o recinto e impediu um massacre. Mas foi herói nacional durante pouco tempo. Pouco dias depois, passou a suspeito de ter posto a bomba. Pressionado pelo governo, o FBI decidiu que Jewell era o culpado e a comunicação social foi atrás, cegamente. Clint Eastwood sai aqui em defesa do zé-ninguém, o “little guy”, avisando contra os poderes – do Governo e suas agências até aos media – que deviam estar do lado dele, mas em vez disso se esmeram para o intimidar, humilhar, desacreditar e esmagar. Mesmo em democracia. O até aqui “secundário” Paul Walter Hauser é notável no papel de Richard Jewell.
“O Caso de Richard Jewell”: Clint Eastwood sai em defesa do zé-ninguém
“Diamante Bruto”
De Benny e Josh Safdie
Este policial melodramático dos irmãos Safdie estreou-se apenas na Netflix (a Portugal chegou no início do ano) e é propulsionado pela interpretação elétrica de Adam Sandler, no papel de Howard Ratner, um negociante de diamantes novaiorquino e jogador compulsivo, que deve uma pipa de dinheiro a um usurário (Eric Bogosian) a chegar ao limite da paciência e que quer cobrar a dívida, seja como for. Howard espera resolver todos os seus problemas com a venda a um famoso basquetebolista de um valioso diamante contrabandeado para os EUA. Mas será que consegue contrariar a sua natureza e não estragar tudo? Os Safdie também escreveram, com Ronald Bronstein, o argumento deste filme febricitante e em alta rotação nervosa, que parece ter sido teleguiado pelo Martin Scorsese dos tempos de “Os Cavaleiros do Asfalto” e “Taxi Driver”.
“Diamante Bruto”: agora toda a gente gosta de Adam Sandler, não é?
“Mulherzinhas”
De Greta Gerwig
A sétima versão para cinema do clássico de Louisa May Alcott anda num virote cronológico nas mãos de Greta Gerwig, mas não é por isso que a atriz e realizadora não consegue fazer justiça ao livro e às suas personagens, em todos os aspetos, do emocional à reconstituição de época, passando pela caracterização das irmãs March. Tal como Saoirse Ronan a interpreta, Jo March é tudo aquilo que caracteriza a personagem: arrapazada, inteligente, decidida, resmungona e revoltada. E nada neste “Mulherzinhas” é hirto, decorativo, verboso ou artificial. Tudo, das casas e do guarda-roupa aos sentimentos e às atitudes, soa a autêntico, do seu tempo, daquela sociedade e no seu lugar, naqueles anos da Guerra Civil americana e nos imediatos, em que se passa a história de Jo e das suas três irmãs.
“Mulherzinhas”: Greta Gerwig revitaliza (e desarruma) o clássico de Louisa May Alcott
“Corpus Christi — A Redenção”
De Jan Komasa
Finalista pela Polónia ao Óscar de Melhor Filme Internacional, esta realização de Jan Komasa deve a sua tração dramática a um formidável jovem ator chamado Bartosz Bielenia, e ao argumento sem facilidades ou piedades de Mateusz Pacewicz, que se inspirou num facto real. Bielenia interpreta um delinquente que acabou de sair de um reformatório e sente vocação para padre, embora não a possa seguir, por ter cadastro. Mas consegue passar por sacerdote na vilazinha onde foi colocado para trabalhar numa serração, e enganar os seus habitantes, tal a forma como se envolve nos problemas locais. Este é um poderoso filme sobre os paradoxos da fé e da revelação espiritual, sobre os caminhos tortuosos que a vontade divina pode seguir e as pessoas improváveis que pode tocar.
“O Lago dos Gansos Selvagens”
De Diao Yinan
Um fulgurante e vertiginoso policial de ação chinês, passado na cidade de Wuhan, onde decorre uma dupla caça ao homem. Um “gangster” que matou um polícia por acaso durante uma noite de assaltos em larga escala, é perseguido pelos agentes da lei, e também pelos outros marginais. Em “O Lago dos Gansos Selvagens”, Daio Yinan (“Carvão Negro, Gelo Fino”, premiado no Festival de Berlim) transpõe, para a China dos nossos dias, as atmosferas, a violência, a agilidade visual, o negrume moral e o fatalismo das séries B policiais americanas das décadas de 40 e 50, enquanto nos mostra uma China marginal, pobre, decrépita e “kitsch”, muito distante do país “high tech”, laborioso, otimista e lançado para futuro que aparece na propaganda fabricada pelo Partido Comunista Chinês.
“O Lago dos Gansos Selvagens”: uma trepidante caça ao homem na China dos marginais
“O Tempo Contigo”
De Makoto Shinkai
O realizador de animação japonês Makoto Shinkai gosta de contar histórias com personagens adolescentes que se envolvem de forma insólita, onde o tempo atmosférico desempenha um papel importante, e nas quais se combinam o realista e o fantástico, o terra-a-terra e o místico. É o que sucede em “O Tempo Contigo”, uma fantasia meteorológica e romântica sobre Hodaka, um miúdo de 16 anos que fugiu de casa para ir trabalhar em Tóquio, e Hina, uma Rapariga do Sol, que tem o dom de parar a chuva e fazer aparecer o astro-rei com orações. Hodaka propõe-lhe então que use esse dom para ganhar dinheiro e fazer as pessoas felizes. Shinkai esmera-se em mostrar o tempo nos seus mais ínfimos cambiantes e nas suas alterações mais temíveis, deslumbrantes e impercetíveis, e remata a fita em jeito de ficção científica distópica.
“O Tempo Contigo”: amor e fantasia numa Tóquio onde chove a potes
“Retrato da Rapariga em Chamas”
De Céline Sciamma
Na França de finais do século XVIII, pré-revolução, uma pintora (Noémie Merlant) é contratada para fazer o retrato de uma jovem aristocrata (Adèle Haenel), para ser enviado ao futuro marido, um nobre italiano que não a conhece, e que se revela uma modelo muito relutante. Mas as duas mulheres acabam por se tornar amantes e a relação artista/modelo altera-se, por força desse envolvimento íntimo. Céline Schiamma assina aqui um filme elegante e sugestivo, emocional e psicologicamente intenso sob uma superfície recatada, e contidamente erótico, em que quase tudo passa pelo olhar. Os olhares trocados pelas duas protagonistas, mas também os de ambas para a câmara. A fita nunca é rígida ou afectadamente “pictórica”, e não se converte em banal e anacrónico panfleto feminista.
“Retrato da Rapariga em Chamas”: a história ardente da pintora e da sua modelo
“Pinóquio”
De Matteo Garrone
Uma das melhores adaptações ao cinema do já muito filmado livro de Carlo Collodi, este “Pinóquio” pertence ao universo de outro filme de Matteo Garrone, “O Conto dos Contos”. Ambientado na Itália rural do século XIX, foi rodado em imagem real com atores de carne e osso, recorre muito mais a efeitos especiais tradicionais do que aos digitais (cenários de estúdio, trucagens mecânicas, maquilhagens fantasiosas, grotescas ou antropomórficas, etc.) e não omite algumas das sequências mais cruéis da história original (o enforcamento de Pinóquio pelos bandidos numa árvore, por exemplo). O menino de madeira é interpretado pelo jovem Federico Ielapi, com três horas de maquilhagem em cima, e Roberto Benigni personifica Gepeto, após ter já sido Pinóquio no filme que realizou e interpretou em 2002.
Matteo Garrone recuperou Pinóquio para mostrar “quão perigosa e violenta pode ser a vida”