Se Portugal estiver a cometer erros na contagem de mortos por Covid será por excesso e não por defeito. É essa a convicção da Direção Geral de Saúde, expressa no briefing da DGS de terça-feira por Diogo Cruz, subdiretor-geral da Saúde, e reforçada na quarta-feira pela diretora-geral. “Se um médico escreveu no certificado de óbito que o evento terminal foi Covid, então é assim que esse óbito é contabilizado”, esclareceu Graça Freitas. Ou seja, tal como em Itália, Portugal está a registar os óbitos com Covid e não apenas os por Covid. A escolha da preposição faz toda a diferença. Até agora, antes da pandemia, um doente oncológico, por exemplo, podia morrer infetado com Covid, mas o cancro não deixava de ser a causa da sua morte na contabilização. Agora, tudo mudou.
Para perceber essa mudança, é preciso olhar para o processo. Quando o certificado de óbito é preenchido por um médico, as várias linhas do documento vão sendo ocupadas com as causas mais remotas até à causa de morte mais importante e, por último, preenche-se o evento terminal — “aquele que finalmente matou a pessoa” —, explicou Graça Freitas no briefing de quarta-feira. Para as equipas que codificam — identificam no sistema — a causa de morte, detalha a diretora-geral de Saúde, o que contava não era o evento terminal que resultou na morte. “Em muitas situações, o que codifica a causa de morte é a causa básica. Uma pessoa que tem uma doença oncológica terminal, e que nos últimos dias da sua vida teve uma pneumonia bacteriana que a matou, de facto, esse foi um evento terminal, mas é a sua doença oncológica que é codificada como causa de morte.”
Em tempo de pandemia, as regras foram alteradas. “Se o evento final, se a última linha que o médico preenche, for por Covid, nós não estamos a codificar da forma tradicional, estamos a considerar que o evento terminal é a causa última”, explica Graça Freitas.
Na véspera, Diogo Cruz deu uma explicação idêntica. “Em Portugal, estamos a ser muito abrangentes na classificação de casos de falecimento por Covid.” Qualquer pessoa que tenha Covid — “e que tenha a menor causa de falecimento por uma questão infecciosa” — está a ser considerada na contagem dos óbitos derivados do surto de coronavírus, “o que não é verdade para todos os países, incluindo os da Europa.”
Apesar de estarmos a viver uma pandemia, Diogo Cruz lembra que as pessoas podem morrer por outros motivos. “Vou dar um exemplo extremo, só para ficar claro aquilo que estou a dizer. Uma pessoa que esteja positiva para Covid e que tenha um acidente de viação, naturalmente morre do acidente de viação.”
Apesar disso, garante que Portugal está a ser o mais transparente possível, para contabilizar o maior número de casos. “Havendo Covid e havendo a menor suspeita de que possa ter sido Covid, estamos a considerar Covid, ao contrário de outros países da Europa.”
O subdiretor-geral da Saúde não especificou a que países europeus se referia, mas Itália não é seguramente um deles. Ali, no país que atualmente tem o maior número de óbitos em todo o mundo, todos os mortos contam para as estatísticas. Aliás, é a própria Proteção Civil que o frisa constantemente quando faz o balanço da pandemia de coronavírus no país: os óbitos são mortes com coronavírus e não apenas mortes por coronavírus.
Já em Espanha, segundo o El Pais, não são contabilizadas as mortes em lares de idosos, nem sequer as mortes em casa, caso não tenham sido feitos previamente exames de diagnóstico. Mesmo assim, já passaram os 9 mil óbitos e estão logo abaixo de Itália, que passou os 12 mil. Em França, as mortes por Covid só são contabilizadas se ocorrerem num hospital, embora o presidente Emmanuel Macron já tenha dito que também as outras começaram a ser contabilizadas. Já nos Países Baixos só as pessoas hospitalizadas são testadas para Covid.
No Reino Unido, antes da pandemia, não havia obrigatoriedade de especificar qual era o vírus em causa quando o óbito fosse em resultado de uma doença respiratória. A regra foi alterada a 5 de março (altura em que havia uma vítima mortal de Covid no país), quando o coronavírus entrou para o grupo de exceções à regra onde já estavam os vírus de anthrax, botulismo, malária e tuberculose.
Na Alemanha, a baixa taxa de letalidade tem levado a muita especulação sobre a forma como as mortes estão a ser contabilizadas, mas o Instituto Robert Koch garante que, tal como em Itália, estão a contabilizar os mortos por e com Covid.
Em Portugal, essas situações não se colocam, garante Graça Freitas. “Onde quer que ocorra o óbito, ninguém pode ser enterrado sem certificado de óbito, esse é sempre passado pelo médico e é indiferente se se morre num lar, em casa ou na rua.”
Também na China as dúvidas são muitas, até porque, depois de a maioria dos mortos terem sido cremados, as urnas que estão a ser entregues às famílias ultrapassam em muito os números oficiais, escreve o La Vanguardia. Se as autoridades apontam para 2.535 mortes em Wuhan, epicentro do surto, a Radio Free Asia, um meio de comunicação social que frequentemente questiona as versões do governo chinês, faz as contas a 42.000 urnas com cinzas das vítimas mortais a serem entregues às famílias.
A primeira vítima de Covid não morreu de Covid?
“A primeira morte de Covid em Portugal, para mim, não foi uma morte por Covid”, diz Jorge Torgal, médico especialista em saúde pública. “Era uma situação gravíssima, em que o doente já só tinha um pulmão a funcionar. Eu não teria considerado que a causa de morte era Covid, mas isto é a minha opinião. E isto só mostra como esta é uma questão muito fluída”, defende o professor catedrático da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa que deu a cara pelo Conselho Nacional de Saúde Pública quando este organismo anunciou a decisão de não encerrar as escolas em Portugal.
Primeira vítima mortal é Mário Veríssimo, o amigo de Jorge Jesus
A 16 de março, morria Mário Veríssimo, de 80 anos, depois de vários dias internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Para além de outras doenças, o antigo fisioterapeuta do Estrela da Amadora tinha cancro do pulmão. Ficou para a história da pandemia como a primeira vítima mortal portuguesa.
“Cada país conta os mortos à sua maneira e cada país vai continuar a contar à sua maneira. Em França, por exemplo, não contam os mortos nos lares e isto vai fazer com que haja diferenças nos métodos de contagem de cada país”, defende Jorge Torgal.
“Se queremos ter comparabilidade, temos de contar todos da mesma maneira”, defende Ricardo Mexia, médico de Saúde Pública do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. “Claro que podemos ter um doente de Covid que é atropelado e este é um exemplo extremo que não faz sentido incluir na contagem, mas seria melhor contarmos como óbito todos os doentes positivos que acabam por morrer, como o jovem de Ovar, sem prejuízo de poderem ter morrido de outra coisa.”
Rapaz infetado com Covid-19 morreu na Feira. DGS diz que “é complexo” atribuir morte ao vírus
Para que não houvesse dúvidas, mesmo em situações sem pandemia, só com autópsia é que pode ser feito um diagnóstico de causa de morte correto, defende Jorge Torgal. “Claro que não se pode fazer autópsias a todos e, em muitos casos, a causa de morte é a esperada e é consensual. Mas, se olharmos para as causas de morte, também vemos que, vergonhosamente, temos demasiadas por causa desconhecida.”
O motivo? “Facilitismo, falta de certeza absoluta… Não sei dizer.”
Mais vale pecar por excesso do que por defeito
Para Ricardo Mexia, dada a situação atual, mais vale contar a mais do que a menos, já que é sabido que nem todos os doentes serão autopsiados e só nesse momento se poderia ter certeza absoluta da causa de morte. Mas mais do que contar por defeito ou por excesso, o importante é que o método seja igual em todo o país. “É preciso que haja uniformidade, é importante definir uma regra, porque só assim é que se consegue perceber qual é a verdadeira tendência da curva da pandemia. Idealmente, esse método seria o mesmo não só no país, mas também na Europa e no mundo.”
A 29 de março, um jovem de 14 anos, de Ovar, morreu no Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira, tornando-se a mais jovem vítima mortal de Covid em Portugal. No entanto, no dia seguinte, as notícias davam conta de que, segundo a autópsia, a causa mais provável de morte era meningite. Já na terça-feira, no briefing diário, Diogo Cruz, subdiretor-geral de Saúde, confirmava que a morte do jovem, que ainda estaria a ser investigada, não estava refletida nos números da DGS. Esta quarta-feira, continua a não estar.
Esta decisão deixa o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), desconfiado de que os números de óbitos possam estar a ser sub-reportados. Roque da Cunha defende que o método de contagem italiano é o mais correto. “Se as pessoas que estão infetadas morrem, dizer que a Covid não teve nada a ver é um crime de lesa ciência”, argumenta. “Não quero tornar os números mais negros, mas é fundamental conhecer a verdade para se combater o problema de forma séria.”
Jorge Torgal deixa um outro alerta: “No final, é preciso olhar para todas as causas de morte e ver se outras patologias não aumentaram mais do que seria de esperar. É um problema delicado que tem de ser gerido com atenção para que, durante a pandemia, outras patologias fiquem descuidadas. Temos de evitar a todo o custo esse tipo de danos colaterais.”