Um Governo que “envergonha”, que tem falta de “coragem”, limitado e que limita o país, refém da troika e defensor do patronato, responsável pela suborçamentação na Saúde, que se esconde para fazer os negócios de sempre, que se serve dos partidos da esquerda como “fantoches” e que quer viver à custa da “fama” de uma ‘geringonça’ que “matou” sem dó nem piedade. Três anos depois de ter dedicado toda a convenção a falar numa hipotética mas desejada incursão num Governo de esquerda, o Bloco apareceu na reunião magna de Matosinhos disposto a fazer António Costa em picadinho.
Uma após uma, as principais figuras do partido desdobraram-se em críticas às falhas, insuficiências e contradições que apontam ao Governo socialista. E se há dado que ficou evidente neste segundo dia de convenção é que o Bloco está apostado em descolar-se ao máximo do PS para tentar crescer à esquerda.
Um processo que será longo e que implicará maturação, mas que está em curso, e que vai implicar a transição de um partido que sonhava ser poder ao lado do PS para um partido que sonha em desfazer os sonhos de poder absoluto do PS — para continuar a ser relevante à esquerda.
Quando houver eleições legislativas e se o quadro político obrigar a novos entendimentos, então logo se vê. Ainda não chegou esse tempo. Horas antes do arranque desta convenção, em entrevista ao Observador, Pedro Filipe Soares assumia precisamente e que este não era ainda o momento de definir a estratégia para as próximas eleições legislativas e que haveria tempo para nova convenção, algures em 2023.
Até lá, a ideia é aumentar o tom dos ataques aos socialistas. Os dirigentes do BE resistem em consumar o divórcio e colocam a pressão toda (e a culpa) do lado do PS. Mas as reivindicações de agora são as mesmíssimas que motivaram o chumbo ao último Orçamento do Estado (banca, Saúde, Lei Laboral) e o fim do casamento entre socialistas e bloquistas. Logo, o desfecho tem tudo para ser o mesmo. Baralhando e dando de novo: o Bloco vai aproveitar os próximos dois anos para aumentar a tensão com o PS e para tentar crescer à esquerda.
Pedro Filipe Soares: “Bloco nunca contribuirá para que a direita chegue ao poder”
As críticas, uma a uma
Catarina Martins, de resto, abriu as hostilidades e definiu o tom para os demais congressistas. Primeiro, enquadrou. “Como explicou António Costa, e cito, ‘um Bloco forte significa ingovernabilidade’. Nada foi mais importante para o PS do que atacar a esquerda nessas eleições”.
Depois, apontou o culpado pelo desenlace. “A responsabilidade é de quem não cumpriu. Não foi feito o que tinha que ser feito”. Apesar de todas as garantias de que estão dispostos a voltar à mesa das negociações, aos olhos dos bloquistas, este ciclo esgotou-se.
Ao longo de quase 12 horas de trabalhos, os bloquistas atiraram-se a praticamente todas as áreas de governação socialista, desde a Diplomacia, às finanças, passando pela banca, privatizações, saúde, mercado laboral e própria estratégia de governação.
Mariana Mortágua, aliás, resumiu o estado de espírito dos bloquistas naquela que foi uma das intervenções mais aplaudidas da tarde. “O PS guardou a melhor artilharia para evitar que o BE influencie três áreas: banca, serviços públicos e trabalho. E por isso ficam tão irritados quando conseguimos fazê-lo. Não somos fantoches da democracia. Queremos mudar as regras da finança, do trabalho, queremos serviços públicos fortes. Chamem-lhe socialismo, um projeto de igualdade”, atirou a deputada.
Antes e depois da intervenção da bloquista, o tom dos dirigentes que representam a linha oficial do partido não variou. E, em muitos casos, conheceu termos muito duros. Marisa Matias, por exemplo, disse-se “envergonhada” com Augusto Santos Silva e a resposta portuguesa ao que está a acontecer na Palestina.
Na noite anterior, a eurodeputada, reconhecida interna e externamente por representar uma linha mais moderada do Bloco, tinha sido igualmente violenta ao falar sobre a presidência da União Europeia e o levantamento das patentes nas vacinas contra a Covid-19. “O Governo português protege os interesses do Governo alemão em vez de salvar vidas”, chegou a dizer.
Moisés Ferreira, em duas intervenções diferentes, fez o mesmo. Primeiro, acusou o PS de ser tudo menos socialista. “O Governo de um partido que ainda se diz socialista diz que não ao levantamento de patentes e que alinha com interesses da BioNTech e Pfizer contra o direito dos povos.”
A seguir, novo golpe: “A crise não se resolve ao centro, com o usual social-liberalismo. A crise resolve-se à esquerda. Precisamos de um Governo com coragem para dizer ‘paciência’ ao Óscar Gaspar. Que tenha coragem para dizer aos António Saraivas desta vida para dizer ‘azar’.”
A reforma do mercado laboral, que tem sido o grande obstáculo nas negociações entre PS e Bloco de Esquerda, lançou o deputado e dirigente José Soeiro contra os socialistas.
“O Governo tem um tabu sobre o trabalho. O PS proclama construir soluções à esquerda, mas não aceita tocar no legado da troika no código do trabalho, não aceita mexer em nada estrutural das relações de força entre trabalhadores e patronato e só parece disponível convergir com a direita.”
Na Saúde, o desencanto é idêntico. “O PS pode parar de rabear para o lado que lhe dá mais jeito e começar por fazer aquela que é a escolha mais importante de todas neste momento e mais fundamental, investir no futuro do SNS. E essa escolha só se faz à esquerda”, defendeu Bruno Maia, candidato do Bloco à autarquia de Gondomar.
Isabel Pires, deputada do partido, não lhe ficou atrás e criticou a gestão do Governo na CTT, na TAP e na Groundforce. Curiosamente três dossiês que estão nas mãos da grande esperança do Bloco para a futura liderança do PS — Pedro Nuno Santos. “Vai muito mal o PS quando não tem uma política de reversão de privatizações”, lamentou.
A deputada Joana Mortágua, que tem a pasta da Educação no partido, atirou-se igualmente à jugular do Governo. “A geringonça não é uma fama atrás da qual o PS se possa esconder enquanto continua com os negócios do costume, nem um espírito que ilumina e torna aceitáveis orçamentos que não são porque não servem o país. Os limites do PS não são as impossibilidades do país.”
Caberia a Francisco Louçã anunciar o óbvio: para o Bloco de Esquerda, “o PS matou a geringonça em 2019 depois de não ter conseguido poder absoluto”. Curiosamente, e ao contrário de todas as outras vozes do Bloco de Esquerda, foi o único a recuperar a tentação de ser poder que marcou a última convenção.
“Quando a Mariana Mortágua for ministra das Finanças, o Estado não será um porquinho mealheiro”, sonhou o antigo líder do Bloco de Esquerda e um dos grandes pensadores do partido. Programa político ou desejo inconsequente?