Christine Ourmières-Widener foi notícia esta semana por algo que nada tem a ver com a TAP. A ex-presidente executiva da transportadora portuguesa irá assumir a presidência do grupo francês Dubreuil que detém a Air Caraibe, uma companhia que liga várias ilhas da Caraíbas a França e uma low-cost, a partir de 1 de julho, segundo a revista francesa Challenges.
Mas antes de deixar para trás a curta e turbulenta experiência profissional em Portugal, a ex-CEO da TAP terá ainda de lidar com vários processos, uns de que pode vir a ser alvo e outros que pode instaurar contra o Estado português e contra a TAP. As conclusões da auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) ao processo de negociação para a saída de Alexandra Reis da TAP foram o fundamento para a destituição da gestora (e do chairman Manuel Beja) da TAP, o que será alvo de contestação nos tribunais através de mais do que uma ação.
Em meados de julho termina o prazo legal de três meses após a notificação da destituição para apresentar uma impugnação à justa causa invocada. E essa impugnação vai mesmo avançar, confirmou ao Observador um dos advogados, Inês Arruda, sem indicar mais detalhes sobre a estratégia ou valores a pedir.
É quase certo que será mais do que uma ação, como aliás reconheceu outro advogado que representa Christine Ourmières-Widener, Paulo Sá e Cunha, em declarações ao programa Cheque in da Rádio Observador. Para além do criminalista Paulo Sá e Cunha, Christine trabalha ainda com Inês Arruda, da Arruda & Associados, para os temas de direito laboral e comercial, contencioso e arbitragem. Os dois advogados acompanharam aliás a gestora na audição na comissão parlamentar de inquérito à TAP
Segundo informação recolhida pelo Observador, uma das vias dessa contestação passará pelos tribunais cíveis com uma impugnação da deliberação da assembleia geral da TAP e dos fundamentos invocados pelo Estado para a justa causa (a demissão sem direito a compensação). Christine Ourmiéres-Widener e Manuel Beja foram demitidos através de uma deliberação unânime do acionista público no dia 14 de abril, ao abrigo do estatuto do gestor público assinada pelo presidente da Parpública e pela Direção-Geral do Tesouro (DGTF). Também é certo que haverá um pedido de compensação por danos não patrimoniais e reputacionais.
Os danos reputacionais que o próprio Medina reconheceu
Poderá haver mais ações cíveis — os tribunais administrativos não serão a via preferencial dada a demora processual — com pedidos de indemnização por danos não patrimoniais e reputacionais. O próprio Fernando Medina na sua audição (a última da CPI) reconheceu que estes existiram quando afirmou que tinha sugerido à gestora que se demitisse por sua iniciativa para evitar, precisamente, os danos reputacionais que resultariam da sua destituição. Num testemunho que pode ser útil à defesa da ex-gestora, o ministro das Finanças elogiou o trabalho da ex-presidente da TAP e os resultados que a sua gestão conseguiu na companhia e manifestou convicção de que todos os envolvidos agiram de boa fé, mas sublinhou que isso não permitiria ao Governo ignorar as ilegalidades cometidas, nem tirar as consequências que tirou.
De acordo com o jornal Económico, estão a ser ponderados processos contra os ministérios das Finanças e das Infraestruturas e a Inspeção-Geral de Finanças e um pedido superior de compensação superior a três milhões de euros. Este valor, que já tinha sido referido, tem por base a soma das remunerações anuais a que a ex-CEO teria direito até ao final do mandato, cerca de 1,5 milhões de euros, mais os bónus previstos no contrato assinado com a TAP até 120% da remuneração fixa. A ex-CEO afirmou na sua audição na comissão de inquérito à gestão pública da TAP ter direito a esses prémios pelo desempenho da empresa em 2022.
Esta pretensão tem sido recusada por vários responsáveis políticos e dos órgãos sociais da TAP e a sua cobertura legal foi posta em causa por vários dos responsáveis ouvidos pelos deputados, como o ex-presidente da comissão de vencimentos. Tiago Aires Mateus também afastou o cenário de um administrador demitido ter direito a bónus.
Os critérios de atribuição de bónus aos gestores TAP não foram validados pela comissão de vencimentos nem confirmados em assembleia geral, até porque os indicadores de desempenho da TAP nunca chegaram a ser definidos. Os contratos de gestão obrigatórios para os administradores das empresas públicas não chegaram a ser assinados.
Quanto mais elevada for a indemnização a pedir ao Estado, maior será o custo do processo, o que também será considerado na hora de decidir.
A falta de consenso dentro do Governo sobre as razões invocadas para despedir
Por outro lado, também há fragilidades da parte do Estado. Um dos primeiros embaraços causados pela comissão parlamentar de inquérito ao Governo foi a da aparentemente frágil fundamentação jurídica da decisão de demissão. Durante dias falou-se num parecer jurídico que o Governo recusou entregar, primeiro por razões de interesse público, pois poderia fragilizar a posição do Estado, segundo justificaram duas ministras (Mariana Vieira da Silva e Ana Catarina Mendes). E depois porque, afinal, “era um mito”, não existia enquanto parecer jurídico autónomo, mas apenas argumentos para fundamentar a destituição com base no que Medina descreveu como o mais “sólido” fundamento legal, o parecer da IGF.
A deliberação social única de 12 páginas, divulgada pelo Observador, invoca violações graves da lei e dos estatutos a que estavam vinculados os gestores, mas aponta ainda falhas na “integridade, lealdade, cooperação, confiança e transparência com o acionista”, assinalando ainda a omissão por não terem comunicado o afastamento de Alexandra Reis ao Ministério das Finanças ou ao membro do Governo que exercia função acionista na TAP.
Sabemos que este último argumento levantou dúvidas dentro do Governo, com a chefe de gabinete de João Galamba, Eugénia Correia, que alertou para o risco de fragilidade e desorientação por parte do Estado ao tentar ir mais longe do que os fundamentos dados pela IGF. Outra fragilidade indicada tem sido a não audição presencial da presidente executiva da TAP em sede de contraditório pela Inspeção-Geral.
Mas se a parte do ataque da ex-presidente da TAP conhecerá desenvolvimentos em breve, já do lado da responsabilização financeira, criminal e contraordenacional não parece haver grandes desenvolvimentos e a bola está duplamente do lado do Ministério Público. Um dos processos que a ex-gestora da TAP pode enfrentar é o de responsabilização financeira enquanto gestora pública.
Responsabilização financeira do Tribunal de Contas à espera do Ministério Público
Uma das recomendações da auditoria da IGF foi o envio ao Tribunal de Contas do relatório “para conhecimento da matéria de facto e de direito, designadamente das situações que podem consubstanciar infrações financeiras de natureza sancionatória (multas), bem como de gerar responsabilidade financeira reintegratória” (se bem que este tipo de responsabilidade de pagamentos considerado ilegais e que causem danos ao erário público terá ficado prejudicado pela devolução à TAP por parte de Alexandra Reis de grande parte do valor líquido que recebeu).
Questionada sobre o processo de apuramento destas responsabilidades, o Tribunal de Contas esclarece que o relatório foi “remetido ao Ministério Público (que tem representantes permanentes no Tribunal de Contas), órgão que tem legitimidade para requerer julgamento de responsabilidades”. Ou seja, só depois desta iniciativa é que o Tribunal poderá avançar com um eventual processo de efetivação dessas responsabilidades.
Também sob investigação do Ministério Público para o apuramento de eventuais crimes está o tema do pagamento pela TAP da indemnização de 500 mil euros a Alexandra Reis. Este processo, que potencialmente envolverá a ex-presidente da TAP, está em segredo de justiça, refere ao Observador a Procuradoria-Geral da República, sem avançar mais detalhes.
Christine Ourmières-Widener poderia ainda ser chamada a assumir responsabilidades no processo de contraordenação aberto pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) para averiguar o cumprimento pela TAP do dever de prestar informação correta ao mercado, a propósito do comunicado de 2022 que descreveu a saída de Alexandra Reis como uma renúncia de iniciativa da própria e não em resultado de um acordo.
Esse comunicado, assinado pelo atual administrador financeiro da TAP, Gonçalo Pires (que até agora escapou ileso de todo este caso) já foi corrigido pela TAP, por ordem da CMVM. No entanto, o processo sobre o qual o presidente do regulador, Luís Laginha de Sousa, nada quis revelar aos deputados da comissão de inquérito, “encontra-se sujeito a segredo de justiça até que seja proferida a decisão final”, adiantou fonte oficial do supervisor do mercado.