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Sem Instagram, Facebook e Twitter. Com acesso restrito à informação e 1.418 sites de notícias bloqueados devido a conteúdos relacionados com a guerra na Ucrânia. Desde o dia 24 de fevereiro, a Rússia tenta cortar os laços da população com a internet, como a conheciam até então. Os bloqueios atingem organizações sem fins lucrativos como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch, jornais como a BBC ou o alemão Bild, e as páginas oficiais da Ucrânia — o site da Presidência ou o do Ministério da Saúde.
À medida que as restrições começaram a aumentar, centenas de milhares de pessoas começaram a desafiar Putin e a sua tentativa de isolar a Rússia do mundo. Para conseguirem restabelecer contacto com o Ocidente, muitos instalaram uma VPN (Virtual Private Network)— ferramenta que possibilita o contorno do bloqueio imposto pelo regime de Moscovo porque permite ‘mascarar’ a localização de onde se está a aceder à internet.
A procura por este serviço, entre 27 de fevereiro e 2 de março e em comparação com os 30 dias anteriores, aumentou 668% na Rússia e 609% na Ucrânia. Os downloads diários em Moscovo dos 10 serviços de VPN mais populares passaram de menos de 15 mil, pouco antes da guerra, para 475 mil em março, segundo o jornal The Washington Post. Mesmo assim, as empresas que disponibilizam acesso às VPN também não escaparam da censura russa — que já implicava com esta ferramenta muito antes de o conflito ter eclodido.
VPN, um ódio antigo de Moscovo
A ambição de restringir o conteúdo a que a população da Rússia tem acesso não é nova. Há anos que Moscovo luta contra a crescente popularidade das VPN. Em 2017, Putin promulgou uma lei que proibia a utilização de ferramentas que permitissem esconder a identidade de um utilizador na internet e que possibilitassem o acesso a sites que já estavam então bloqueados no país — como sites de jogos de azar, de conteúdo adulto ou de pornografia infantil. O diploma estabelecia também que haveria uma lista com as hiperligações proibidas pelo Roskomnadzor, o regulador russo das comunicações, e as empresas estavam obrigadas a não conceder acesso às mesmas com recurso às VPN.
A lei entrou em vigor em novembro de 2017, mas não foi aplicada até 2019. Só neste ano as autoridades russas começaram a enviar notificações aos fornecedores de serviços VPN para que cumprissem as exigências de não ajudar os utilizadores a acederem a conteúdo considerado ilegal através das hiperligações não autorizadas — nomeadamente sites da oposição ao regime de Putin. As empresas não cederam.
Se concordassem com o governo russo, os fornecedores de VPN seriam obrigados a entregar registos de todas as comunicações dos utilizadores, bem como os dados dos mesmos. As exigências apresentadas pelo Kremlin são contra o propósito destes serviços, que pretendem oferecer privacidade e segurança na navegação online de quem os utiliza.
Inicialmente, o diploma acabou por beneficiar as empresas estrangeiras que podiam ignorar as proibições por não ter funcionários locais que pudessem enfrentar possíveis consequências. Mesmo quando as suas VPN eram bloqueadas, estes servidores encontravam soluções alternativas para continuar a operar. Com o eclodir da guerra, em 24 de fevereiro, as proibições aumentaram e a vida destas empresas ficou mais complicada.
Com a guerra, as VPN ajudaram a população russa a manter-se conectada com o mundo?
Com o início da guerra, cerca de 70 mil trabalhadores do setor tecnológico fugiram da Rússia para outros países porque não conseguiam aceder aos serviços de que precisavam para realizarem os seus trabalhos. Para os cidadãos que ficaram em solo russo, as VPN tornaram-se particularmente necessárias para aceder a redes sociais como o Facebook ou o Instagram e a sites como a BBC. Milhares de hiperligações bloqueadas pela polícia russa das telecomunicações só conseguiam ser acedidas com recurso a esta ferramenta.
No mês de abril, em vários sites da darkweb começaram a ser publicados anúncios para a venda de acesso a serviços bloqueados como o Spotify Premium ou a Netflix, mas também de acesso a VPN. Os preços começavam em 20 rublos, mas dependiam não só do vendedor como também da duração da assinatura. Mas, atento a estes movimentos, o regulador atuou: desde que o conflito eclodiu cerca de 20 empresas que fornecem serviços de VPN foram bloqueadas na Rússia.
Para Mikhail Klimarev, diretor executivo da Internet Protection Society — grupo associado ao líder da oposição russa Alexei Navalny e que quer proteger a internet da Rússia da censura, o Roskomnadzor “está a reagir muito nervosamente ao rápido crescimento do mercado das VPN”, comentou, em declarações à Wired.
Mas, as restrições e os bloqueios não deverão parar nos próximos tempos. “As VPN são bloqueadas diariamente. Não é uma tarefa fácil, mas está a ser feita”, assumiu o político Alexander Khinshtein, presidente do Comité de Política de Informação, Tecnologias da Informação e Comunicação da Rússia na Duma.
Até ao momento, cerca de 20 VPN populares na Rússia já foram bloqueadas. Elas continuarão bloqueadas”, afirmou, segundo a Interfax.
Não só as autoridades estão mais atentas às empresas que disponibilizam este serviço, como as sanções do Ocidente também dificultam a vida aos cidadãos russos que utilizam esta ferramenta. Pagar por uma VPN tornou-se uma verdadeira luta, uma vez que vários negócios retiraram os seus serviços financeiros da Rússia. Sem Visa ou Mastercard e sem conseguir utilizar o Google Pay ou a Apple Pay, fica difícil contornar os bloqueios. E, no caso das VPN gratuitas, o Washington Post fala em serviços mais irregulares e com riscos ao nível de dados pessoais.
Rússia gasta milhões para contornar a própria censura
A Rússia restringe a utilização de VPN e já bloqueou cerca de 20 servidores. Mas a sua utilização foi assumida até pelo porta-voz do Kremlin. Dmitry Peskov revelou recentemente que utiliza uma VPN: “Sim, não é proibido”, disse, de acordo com vídeos que circulam no Twitter e segundo a tradução feita pelo Business Insider. Se respeita ou não a lei ao utilizá-la depende do uso que lhe dá, nomeadamente se acede ou não aos sites bloqueados.
“You have installed VPN”- tells journalist to Peskov. “Yeah it’s not banned”, answers Peskov. pic.twitter.com/6IOdbnAADA
— Ani Chkhikvadze (@achkhikvadze) April 2, 2022
Para contornar as imposições do governo russo, também algumas empresas estatais e privadas gastaram milhões para manter o acesso aos meios de comunicação internacionais e às redes sociais. Uma investigação do Top10 VPN, divulgada pelo Business Insider, revelou que foram gastos quase 10 milhões de dólares em VPN, sendo que só as agências governamentais gastaram mais de 8 milhões. As empresas com sede na região de Moscovo foram as que mais gastaram (2,4 milhões), seguidas das de Krasnoyarsk (1,8 milhões) e das de Tyumen (700 mil dólares).
“À medida que o Kremlin continua a bloquear centenas de websites para tentar controlar a narrativa em torno da invasão da Ucrânia, é provável que os funcionários [do governo] se tornem cada vez mais dependentes de VPN para manter o acesso a informações vitais do exterior”, admitiu Samuel Woodhams, um dos autores da investigação. “Dada a extensão das restrições de conteúdo, não é surpreendente que funcionários [governamentais], como cidadãos [que são], estejam a tentar contorná-las”, acrescentou.
Mesmo assim, a dependência dos cidadãos e de empresas estatais das VPN pode ter os dias contados. O Kremlin, apesar de também recorrer a esta tecnologia, quer restringi-la ao máximo. Nas últimas semanas, muitas foram as VPN que começaram a registar problemas de acesso e tantas outras deixaram de funcionar.
Ocidente não consegue ‘visitar’ a Rússia através das VPN
É cada vez mais complicado encontrar uma VPN confiável que ainda funcione na Rússia. Com cerca de duas dezenas de serviços VPN oficialmente banidos por não cumprirem as exigências do Kremlin, os russos têm mais dificuldades em viajar digitalmente para o mundo ocidental. Porém, também para o Ocidente está mais complicado conhecer a realidade virtual de Moscovo.
Nas últimas semanas, vários utilizadores de VPN na Rússia têm vindo a confirmar problemas no acesso a essas plataformas — desde falhas de acesso a bloqueios sem razão aparente. O Roscomnadzor confirmou que estava a adotar medidas para banir estes serviços, uma vez que as ferramentas que permitem desbloquear sites proibidos em Moscovo são ilegais. Assim, os seguintes serviços já não estão oficialmente disponíveis porque foram reconhecidos como uma “ameaça”: VyprVPN, Hola VPN, IPVanish, Opera VPN, KeepSolid VPN Unlimited, Speedify VPN, Betternet, X-VPN, Lantern, PrivateTunnel, Cloudflare WARP, Tachyon VPN e o VPNOutline.
Mas há mais que registam problemas. No dia 2 de junho, a ProtonVPN reconheceu estar com dificuldades devido à provável interferência das autoridades russas. “É provável que os ISP [fornecedores de acesso à internet] locais e as autoridades estejam a interferir nas conexões VPN” e “poderá não ser possível resolvermos estes problemas”, disse a empresa com sede na Suíça em comunicado. O bloqueio deste serviço foi posteriormente confirmado pelo Roscomnadzor, mas Stanislav Shakirov acredita que a empresa vai contornar as restrições. “Aqueles serviços com os quais comunicamos, por exemplo, Proton, querem contornar o bloqueio, porque, em primeiro lugar, isto é um negócio, e a Rússia, em princípio, é um mercado bastante grande — várias dezenas de milhões de utilizadores resultam, provavelmente, em várias centenas de milhões de dólares por ano. Eu acho que é bastante razoável que grandes servidores recorram ao desbloqueio dos seus serviços na Rússia. Algum tempo passará… dias, talvez uma semana, e todos os serviços voltarão a funcionar lentamente. Não todos, mas a maioria”, disse o diretor técnico da Roskomsvoboda, organização não governamental russa que apoia a proteção dos direitos digitais dos utilizadores da internet, em declarações ao site Mediazona.
Outra das VPN populares era a Windscribe, que disse à Wired, em março, que quase um milhão de pessoas da Rússia se tinha registado para utilizar o serviço desde o início da guerra. Um número que representava um valor 20 vezes superior à taxa normal de utilizadores. Mas, no final do mês de maio, na rede social Reddit, muitos já se queixavam de que os serviços da empresa não funcionavam em território russo.
Os primeiros rumores de que Windscribe também estará indisponível na Rússia surgiram na Reddit. “Olá! Não é possível conectar aos servidores Windscribe da Rússia hoje. Eu, a minha namorada e outros utilizadores da Rússia temos esse problema (vi isso num fórum conhecido na Rússia). Erro ao conectar a qualquer um dos servidores”, escreveu o utilizador u/xorek52, que recebeu uma resposta da empresa, que disse estar a acompanhar o problema e a investigá-lo.
Para além da Windscribe e, apesar de serem pagas, a ExpressVPN e a NordVPN também eram consideradas das melhores VPN para que o Ocidente conseguisse aceder a conteúdos da Rússia. Atualmente, tal já não é possível, uma vez que estes servidores já não oferecem a possibilidade de selecionar Moscovo nas suas aplicações. Contudo, os russos poderão ainda conseguir utilizá-las para viajar virtualmente para países onde as redes sociais e os sites de notícias não estejam bloqueados, não existindo queixas online de que não o conseguem fazer.
O Observador testou tanto a NordVPN como a Windscribe e conseguiu comprovar que, a partir de Portugal, estes dois serviços já não permitiam ‘viajar’ até à Rússia.
Nem todas as empresas saem da Rússia contra a sua vontade. A F-Secure parou de oferecer o seu serviço VPN, Freedome, na Rússia em 2017 para evitar que os utilizadores que queriam fugir ao escrutínio do regime russo sentissem uma falsa sensação de segurança. “Na Rússia, todas as VPN oferecidas devem transmitir, por lei, as chaves de descriptografia para o estado”, explicou Rüdiger Trost, representante da F-Secure, à revista alemã Der Spiegel. “Isso contradiz o uso real de uma VPN”, acrescentou, mostrando-se contra o diploma aprovado por Putin.
A empresa finlandesa assume que opera apenas em países onde consegue seguir as leis e, por isso, saiu livremente. A lista de VPN a ficarem indisponíveis aumenta à medida que a Rússia estará a tentar transformar a internet do país numa ilha, cortando os laços com os servidores globais, revelou a Wired.
A Rússia pode sair da internet? “Para isolar os russos não basta cortar cabos”
Russo utilizou VPN e descobriu um novo Zelensky
O governo russo argumentou que quer proteger as suas plataformas online e por isso é que bloqueou determinados websites. Estas restrições e isolamento digital a que o jornal The Washington Post chama de “cortina de ferro” têm alguns buracos. Um deles foi explorado por Konstantin, russo de 52 anos, que recorreu a uma VPN para conseguir ter acesso às hiperligações banidas. Ao jornal norte-americano contou que no seu apartamento em Moscovo descarregou uma VPN.
“Muitas pessoas na Rússia simplesmente assistem à televisão e ‘comem’ o que quer que o governo lhes esteja a dar. Eu queria descobrir o que realmente estava a acontecer”, explicou. A curiosidade levou-o a perceber que simpatiza com Zelensky, Presidente da Ucrânia, que considera ser corajoso e que a imprensa russa tentou retratar como “viciado em drogas”.
Eu adorava-o como ator, mas agora sei que Zelensky também é corajoso porque o vi falar em sites de notícias ucranianos com a minha VPN”, contou Konstantin, que não revelou o seu apelido por medo de represálias do Kremlin.
Tal como Konstantin, mais pessoas ficaram curiosas com o mundo fora da “cortina de ferro”. Natalia, de 83 anos, é uma dessas pessoas. Com medo que a Rússia bloqueasse o YouTube pediu à filha que a ajudasse a descarregar uma VPN para o computador. A ferramenta revelou-se útil para visitar os sites de notícias bloqueados e para se manter informada, embora não tenha servido para o YouTube — que ainda está disponível na Rússia. “As pessoas agora apenas acreditam em mentira após mentira. Eu sinto-me tão isolada”, alertou ao Washington Post revelando que os seus amigos acreditam na narrativa de Moscovo de que os ucranianos são nazis.
Konstantin e Natalia são apenas dois dos muitos russos que descarregaram VPN nos últimos meses. O download era relativamente simples: alguns cliques e a introdução de um método de pagamento para depois escolherem o país para o qual desejam “ir” para ganharem acesso aos sites bloqueados. Com o avançar do conflito na Ucrânia e das restrições, ter acesso a uma VPN tornou-se cada vez mais complicado — tanto para os russos, como para os países que desejam visitar virtualmente a Rússia.