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Ovar. “A cidade está toda parada, parece que nos desligaram as máquinas”

Na sexta-feira, a situação era "complicada". Esta terça, foi declarado estado de calamidade. Com comércio e serviços não essenciais fechados, os habitantes antecipam prejuízos e já pedem ajuda.

Aberta apenas ao almoço, a taberna de comida tradicional portuguesa onde Helena Resende trabalha recebe diariamente dezenas de trabalhadores de fábricas têxteis vizinhas e algumas famílias. Recebe não. Recebia. “Estou neste momento com a cozinheira a guardar e a congelar o que é possível, mas há muita coisa que vai acabar no lixo. Vai ser um prejuízo muito grande, não estava à espera desta pancada”, lamenta. A chamada do Observador chegou pouco depois de o presidente da Câmara e de o Governo anunciarem que o concelho de Ovar ficaria em quarentena geográfica pelo menos até ao dia 2 de abril. Ninguém entra, ninguém sai, e, com exceção dos considerados essenciais, todos os estabelecimentos comerciais serão fechados — incluindo a Taberna Dom Joaquim.

A decisão foi tomada depois de Ovar ter sido classificado como local de transmissão comunitária ativa do novo coronavírus. É a primeira cidade no país onde isso acontece. E as medidas são semelhantes às que Itália tomou quando o surto da doença começou a norte, na Lombardia. A situação piorou nos últimos dias: foram 30 (dos 51 da região centro) os casos positivos confirmados no concelho, juntamente com 440 casos suspeitos identificados em monitorização. Salvador Malheiro, o presidente da Câmara, tinha avisado na sexta-feira que a situação estava “muito complicada”. A escalada continuou (dos 8 casos na região centro registados no boletim da DGS no sábado, passaram a 10 no domingo, 31 na segunda e 51 esta terça). O alarme andava pela cidade à medida que as suspeitas cresciam e os números aumentavam. E hoje a cidade ficou isolada por um cordão sanitário.

Salvador Malheiro

ESTELA SILVA/LUSA

Ovar está já praticamente deserta. Uns foram apanhados de surpresa e estão mais inconformados com a decisão. Outros estavam à espera e compreendem que este é um passo que tem de ser dado para assegurar a saúde pública, mesmo sabendo que isso pode trazer prejuízos para o negócio.

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Helena Resende sabe que vêm por aí problemas. “Os clientes são fiéis e pedem-me para não fechar, mas vai ter que ser”, diz em entrevista ao Observador. O caso é, nas palavras de Salvador Malheiro, o presidente da autarquia, “crítico, histórico e caótico para o município e para o país”.

Cidade cercada, comércio fechado, PSP e GNR nas fronteiras. Como será o estado de calamidade em Ovar

Situação de calamidade: o que vai mudar?

Segundo o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, o estado de calamidade que foi decretado no município de Ovar significa a criação de uma cerca sanitária e o estabelecimento de “um conjunto de restrições quer a atividades económicas, quer à circulação de pessoas dentro do concelho”.

Mas, este cenário não se verifica em todas as situações. Os profissionais de saúde, as forças de segurança ou de socorro, os habitantes que regressam à sua residência, ou o abastecimento de áreas que devem continuar em funcionamento — tal como supermercados ou postos de abastecimento de combustível — são exceções à regra.

Aos residentes fica vedada a saída do município e aos não residentes não é permitido entrar em Ovar.

Os profissionais de saúde, forças de segurança ou de socorro, habitantes que regressam à sua residência, ou o abastecimento de áreas que devem continuar em funcionamento — tal como supermercados postos de abastecimento de combustível — são exceções à regra.

Transportes

De acordo com as medidas avançadas pelo ministro, a linha ferroviária do Norte, que atravessa o município de Ovar, vai continuar a operar, embora nas estações situadas no concelho não vá ser possível a entrada e a saída de passageiros. Ao Observador, fonte da CP – Comboios de Portugal avançou que os comboios da linha norte não vão parar nas estações que atravessam Ovar: Valega, Ovar, Carvalheira-Maceda, Cortegaça e Esmoriz.

Salvador Malheiro explicou ainda que vai ser implementado um perímetro próprio no município, onde só poderão passar “pessoas que trabalham em serviços indispensáveis e mercadorias que transportem bens indispensáveis”.

Comércio

Com esta decisão, ficam também interditas todas as atividades comerciais ou industriais no município, exceto as que são relacionadas com o setor alimentar. Restaurantes, bares e cafés vão ser encerrados, mantendo-se abertas as padarias e os supermercados por fornecerem bens essenciais. Permanecem abertas ainda as farmácias, os bancos e os postos de abastecimento de combustíveis.

“Apelo a uma grande compreensão dos cidadãos e uma absoluta restrição das suas atividades, deslocando-se apenas para aceder à compra de bens com estas características, ou para trabalhar nas áreas que se mantenham em funcionamento”, pediu Eduardo Cabrita.

“Temos já o nosso posto de comando e controlo definido na câmara municipal para manter a paz social e tentar vencer esta crise da forma mais eficaz e eficiente possível”
Salvador Malheiro, presidente da Câmara Municipal de Ovar

Serviços

É garantida a manutenção de todos os serviços essenciais, nomeadamente hospitais, centros de saúde, estruturas das forças e serviços de segurança, estruturas de socorro, comunicações e abastecimento de água e energia.

O presidente da Câmara Municipal de Ovar, Salvador Malheiro, referiu que será também constituído um gabinete de crise com a Proteção Civil. “Temos já o nosso posto de comando e controlo definido na câmara municipal para manter a paz social e tentar vencer esta crise da forma mais eficaz e eficiente possível”, explicou aos jornalistas esta tarde.

“Vai haver prejuízo, mas vamos tentar aguentar”

Noutro restaurante, o Jardim dos Campos, a notícia do encerramento dos espaços não essenciais foi conhecida através do telefonema feito pelo Observador. José Matos não estava a ver as notícias e não sabe como vai ser o futuro do seu espaço, mas garantia: “Se for preciso encerrar, encerra-se. Isto toca a todos e é para o bem de todos. Compreendo a decisão porque é preciso prevenir para que isto não piore. Isto não é para brincar”.

Na semana passada, o responsável deste restaurante decidiu deixar de servir as refeições à mesa e passou a servi-las ao balcão. No início, conta, “os clientes não percebiam muito bem” o porquê, mas agora entendem a medida. “Está tudo muito deserto, já não é a mesma Ovar de antes. É uma solidão terrível. Muito pouca gente. Vai haver prejuízo, mas vamos tentar aguentar”, refere ao Observador.

Helena Resende, funcionária da Taberna Dom Joaquim, não recebeu a notícia da mesma forma, mas também terá de se habituar à ideia. Além da cozinheira, conta também com a ajuda de três funcionários, que agora são obrigados a ir para casa. “Quem vai pagar as despesas?”, questiona. Segundo a comerciante, o restaurante estava a trabalhar com “todas as precauções de higiene e segurança, com funcionários de luvas e álcool nas casas de banho e nos balcões. “Aqui as pessoas sentiam-se seguras”, garante.

“Tomei conhecimento desta situação hoje pelo Facebook da câmara. Nada me fazia prever isto, ninguém da câmara municipal se dignou a passar pelos estabelecimentos para falar connosco”, critica.
Jorge Marques, proprietário do Café Pinheiro

A proprietária da taberna de comida tradicional portuguesa confessa ter sido surpreendida com esta decisão do Governo. “Sabia que a situação aqui em Ovar estava a agravar-se, mas se queriam tomar uma decisão radical deviam ter fechado tudo há um mês, no Carnaval. Porque é que uns podem passear o cão e eu não posso servir os meus clientes?”

Helena Resende parece não ser a única surpreendida e inconformada com o encerramento dos estabelecimentos comerciais de primeira necessidade em Ovar. Jorge Marques é proprietário do Café Pinheiro e só a partir desta quarta-feira irá deixar de servir cafés. “Tomei conhecimento desta situação hoje pelo Facebook da câmara. Nada me fazia prever isto, ninguém da câmara municipal se dignou a passar pelos estabelecimentos para falar connosco”, critica.

Desde o final da semana passada que o comerciante encurtou o horário de funcionamento e viu a sua faturação cair para metade. “Entre renda, fornecedores, água e luz são cerca de 1.500 euros por mês. Quem me paga as contas agora?”, questiona Jorge Marques, acrescentando que os últimos dias não têm sido fáceis.

“Pelas novas regras, tínhamos um limite de máximo de dez pessoas no espaço, mas nem sempre conseguimos chegar lá. Antes ainda pediam uma sanduíche ou um bolo, agora tomam um café ou pedem uma cerveja e vão logo embora”, lamenta. O proprietário, também residente em Ovar, afirma que à sua volta as pessoas “sentem medo e receio”, vê muita gente de máscara nas ruas e acredita que o cenário “ainda pode piorar”.

Já na Padaria Ávila, as portas vão continuar abertas. Carlos Couto, responsável do negócio, teve mais sorte e não vai ter de fechar o seu estabelecimento, uma vez que se trata de um local que produz um bem essencial: o pão. Ainda antes de saber se iria ou não encerrar, não foram precisas muitas palavras para descrever a situação em Ovar: “Caótica, caótica, caótica”. As ruas, diz, “não têm ninguém e agora vai ser pior”. O negócio, que “está a ser afetado já desde a semana passada”, toma agora um rumo de incerteza: “Tem de ser um dia de cada vez”.

“A cidade está toda parada, parece que nos desligaram as máquinas”

Na zona histórica da cidade de Ovar fica o Twelve Café, o negócio de Marco Resende. Encerrou na passada sexta-feira e ainda não tem data definida para voltar a receber clientes. “A cidade está toda parada, parece que nos desligaram as máquinas”, começa por dizer ao Observador.

Antes de fechar as portas, Marco Resende ainda recebeu no seu café Salvador Malheiro, o próprio presidente da Câmara Municipal de Ovar, que lhe deixou um aviso. “Por ele já tinha fechado tudo na cidade mais cedo. Disse-me mesmo que isto não estava para brincadeiras.”

O famoso restaurante Oxalá deixou de funcionar logo no domingo. “Ainda abrirmos ao almoço durante uns dias, mas depois não foi possível e tivemos mesmo que encerrar”, lamenta o funcionário António Rebelo. Além de trabalhar no concelho, António também mora em Ovar. “Há muito menos gente nas ruas, é uma realidade”, partilha em entrevista ao Observador.

Apesar de estar em isolamento voluntário em casa com a família, o funcionário tem dúvidas de como se deverá comportar nos próximos dias. “Não sei se terei possibilidade de sair de casa, sinceramente. Tudo o que soube até agora foi pela comunicação social, vou esperar para ver o que acontece.”

“Temos contas da luz, do gás, Segurança Social, temos os nossos impostos para cumprir. Não estando a trabalhar vai ser muito difícil. Vamos ter que gerir isto de outra maneira. Mas tem que ser. Pelo bem e pela saúde de todos. Todos temos que pensar assim”, acrescenta.
Maria João Pais, do Restaurante João da Vareirinha

Quando Maria João Pais soube da notícia do encerramento de todos os estabelecimentos comerciais, a decisão de encerrar o seu próprio restaurante já tinha sido tomada antes. “Fechámos ontem [segunda-feira]. Hoje era dia de folga e comunicámos o encerramento”, explica. A diferença no número de clientes que apareciam no restaurante João da Vareirinha desde a semana passada começava a ser demasiada: “Era muito menos do que aquele um terço que tínhamos como limite. Começámos a perceber o que se passava e decidimos encerrar mesmo”.

A decisão tomada esta terça-feira, explica, “é compreensível”, mesmo que isso traga muitos prejuízos ao negócio. “Temos contas da luz, do gás, Segurança Social, temos os nossos impostos para cumprir. Não estando a trabalhar vai ser muito difícil. Vamos ter que gerir isto de outra maneira. Mas tem que ser. Pelo bem e pela saúde de todos. Todos temos que pensar assim”, acrescenta.

O pedido de Maria João é “que o Governo dê alguma ajuda” para depois, “quando tudo isto passar”, consiga recuperar parte do negócio. E Maria, que também reside em Ovar, fala numa população “consciente” do que se passa, que começou “a fechar as casas para o bem de todos”. “Há pessoas infetadas, e não são poucas aqui em Ovar, mas não estamos em pânico. Estamos a agir todos da melhor maneira. Todos em casa”, assegura.

O mercado de Ovar é um dos locais onde ainda se poderá ir às compras

JOSÉ COELHO/LUSA

Mas não é só a restauração que vai ser obrigada a fechar as portas até dia 2 de abril. Nos hotéis, a situação é semelhante. António Condé Pinto, presidente executivo da Associação Portuguesa de Hotelaria Restauração e Turismo (APHORT), disse ao Observador que Ovar está a viver “uma situação muito particular e extraordinária”, por isso desde a semana passada que os associados estão a ser informados dos procedimentos a adotar. “A restauração não tem sido um problema, uma vez que os proprietários têm fechado por iniciativa própria. No caso dos hotéis, até à meia noite vão ter que encerrar”, adianta.

No caso do Hotel Meia Lua, a única unidade de alojamento associada no concelho, desde o fim de semana que tem sofrido várias mudanças. Alguns dos 12 funcionários foram dispensados, não foram aceites mais reservas e os poucos hóspedes que ainda existem têm sido informados da gravidade da evolução epidemiológica em Ovar e, por isso, foram aconselhados a abreviar as suas estadias.

“No geral, os trabalhadores têm respondido positivamente a estes apelos e compreendem a situação. A maioria dos hóspedes são empresários e ao ver a desaceleração da atividade económica no concelho acabam por também querer sair”, explica António Condé Pinto.

Como Ovar se tornou num lugar de contágio da comunidade

Os primeiros dois casos registados em Ovar foram uma mãe e uma filha. A escola da filha (em Santa Maria da Feira, fora do concelho de Ovar) foi encerrada por precaução após o caso, bem como a Unidade de Saúde Familiar em S.Vicente Pereira, onde ambas tinham ido antes de saberem que eram portadoras da doença. A fábrica onde a mulher trabalhava na Yazaki Saltano, uma fábrica em Ovar com 2.200 trabalhadores. Assim que se soube do caso, os trabalhadores foram colocados em quarentena, mas não se sabe quantos possam ter sido infetados (nem quem infetaram antes disso).

Na sexta-feira, 13, foram feitos testes a 11 profissionais de saúde, sete dos quais estavam infetados e fechou uma segunda entidade onde trabalhavam: a Unidade de Saúde Familiar de S. João de Ovar. Antes de saberem estar infetados alguns destes médicos contactaram com dezenas ou mesmo centenas de utentes que podem ter ido infetados para junto das suas famílias. Havia ainda um treinador de futebol de camadas jovens suspeito de infeção, havendo o risco de ter contaminado algum dos seus jogadores. Que depois foram para casa e para a escola, onde contactaram com familiares e amigos.

Com todos os elementos, Salvador Malheiro percebeu que Ovar era uma bomba relógio de contaminação e enquanto definia medidas com o delegado de saúde fez logo um apelo desesperado no Facebook a toda a comunidade: “A SITUAÇÃO ESTÁ MUITO COMPLICADA EM OVAR. POR FAVOR CANCELEM TUDO O QUE PUDEREM. E TENTEM FICAR EM CASA”. Logo ali, o autarca sabia que havia risco de a ocorrer uma cadeia de transmissão ativa na comunidade em Ovar.

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