O padre madeirense que em 2018 desapareceu sem deixar rasto confessou, esta quinta-feira, ao Observador ter abusado de menores. Anastácio Alves tentou depois entregar-se na Procuradoria-Geral da República (PGR), mas acabou por não ser recebido e continua em liberdade. Visivelmente mais magro, com uma mochila na mão, o padre chegou à PGR, na rua da Escola Politécnica, em Lisboa, para ser constituído arguido e notificado da acusação do Ministério Público, que lhe imputa cinco crimes. Mas acabou por sair pelo seu próprio pé com a indicação que devia dirigir-se ao tribunal do Funchal. Momentos antes, ao Observador, Anastácio Alves afirmava que estava pronto para “assumir as suas responsabilidades”.
“Estou cá, pode parecer banal mas é sincero, primeiro que tudo para colaborar com a Justiça, para assumir as minhas responsabilidades, e também para ajudar a auxiliar as vítimas”, disse, na única declaração que a sua equipa de defesa o deixou dar ao Observador numa sala de um escritório em Linda-a-Velha, três dias depois de a Comissão Independente criada pela Igreja para estudar os crimes de abuso sexual em Portugal libertar vários depoimentos de vítimas e um retrato que aponta para um número potencial de mais de 4800 vítimas de membros da Igreja.
O padre Anastácio Alves chegou acompanhado de uma equipa de defensores à Procuradoria-Geral da República pelas 15h20 e a informação que lhes foi prestada inicialmente foi que deviam deslocar-se ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado, onde se trata a cooperação internacional, a cerca de 500 metros dali. Tudo, porque no âmbito do processo havia sido acionada a cooperação internacional. Anastácio Alves deslocou-se a pé, sempre calmo, e permitindo ser fotografado. Mas ali chegados levaram outra nega. “Fomos recebidos pela Dra. Joana Ferreira que disse que não tinha competência e disse que o pedido de cooperação judiciária era para ser cumprido em França”, disse o advogado Miguel Santos Pereira ao Observador. “Queríamos que o nosso constituinte fosse constituído arguido e notificado da acusação, que é o teor do comunicado da Procuradoria”.
Em janeiro, depois de o Observador ter noticiado que Anastácio Alves tinha sido formalmente acusado em 2022, – num despacho público que o Ministério Público foi recusando a consulta –, a Procuradoria Geral da República emitiu um comunicado a dar conta de que durante o inquérito chegou a ser pedida cooperação internacional a França para localizar Anastácio Alves, que entretanto deixara as funções de sacerdócio, e que depois da acusação, em março de 2022, tinha sido “acionada a cooperação judiciária internacional em matéria penal, com vista a notificar o arguido da acusação pública”.
Madeira. Padre Anastácio Alves está a ser procurado internacionalmente
Anastácio Alves voltou então à PGR e os seus advogados pediram mesmo para falar com a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago. Só pelas 16h30 uma funcionária informou que, depois de “analisada a questão”, Anastácio Alves teria que deslocar-se afinal à Madeira, onde é o tribunal competente pelo seu processo. “Viemos à PGR porque o pedido de cooperação internacional para notificação da acusação do arguido, e neste caso com a prévia constituição do arguido com a prestação de Termo de Identidade e Residência, foi solicitado pelo Ministério Público e é da competência do Ministério Público. Estamos perante um caso que já não está em investigação, não faz sentido ir a um órgão de polícia criminal. Percebemos que isto não é o normal, mas basta ver a lei. Fica difícil para um advogado e para o seu constituinte colaborar com a Justiça quando a Justiça não quer colaborar”.
O padre que enfrenta uma acusação por cinco crimes de abuso sexual continua sem sequer ser arguido no processo e está em liberdade. A defesa vai agora fazer um requerimento ao Ministério Público do Funchal para que possa ser constituído arguido e notificado da acusação em Lisboa.
Padre foi denunciado duas vezes, mas só à terceira a Igreja agiu. Agora, desapareceu
No último ano viveu sempre no continente
Anastácio Alves passou pelo menos o último ano a viver em Portugal continental. Chegou a estar em casa de amigos de amigos que nunca o reconheceram. Até decidir entregar-se usava barba. Esta quinta-feira fez a barba e mudou de roupa antes de tentar entregar-se às autoridades. Estava agora a viver em São Martinho do Porto numa casa arrendada em nome de uma familiar, perto de um posto da GNR.
Na acusação por cinco crimes de abuso sexual de menor e de ato sexual com adolescente, a procuradora Francisca Fernandes reconhece, no despacho final, que dada a “gravidade do crime imputado ao arguido José Anastácio de Gouveia Alves e ao modo da sua execução, existe o fundado receio de que ele possa vir a cometer crime de igual natureza contra menor, no âmbito de profissão, emprego, função ou atividade que envolva contacto regular com menores” e até sugere que, a ser condenado, que seja também impedido de poder ser tutor, curador, padrinho civil, acolher ou ter a guarda de qualquer menor.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso de Anastácio Alves.
No entanto, no mesmo despacho, ao estabelecer a medida de coação a aplicar ao arguido, a mesma procuradora aplica a medida de coação menos grave, a de termo de identidade e residência — alegando que não estão reunidos os pressupostos do perigo de fuga previstos na lei para lhe aplicar a medida de prisão preventiva. Não há sequer qualquer indicação no despacho de um mandado de detenção internacional. A Procuradoria-Geral da República é que esclareceu, entretanto, que havia sim um pedido de cooperação internacional para constituir Anastácio Alves arguido e notificá-lo da acusação. O que significa que poderá permanecer em liberdade.
Nas últimas semanas Anastácio Alves começou a pensar em entregar-se e contactou o advogado Miguel Santos Pereira, que trabalha com o irmão Bruno Pereira. Com os advogados trabalha também o antigo inspetor da Polícia Judiciária, João Sousa, que está a ser investigado por alegadamente ter forjado provas no caso de Rosa Grilo — que cumpre pena de cadeia pelo homicídio do marido. Antes, este antigo inspetor também já tinha sido condenado a cinco anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e violação do segredo de funcionário num outro processo, tendo cumprido pena de prisão em Évora ao mesmo tempo que José Sócrates. Os advogados e João Sousa, que é agora consultor forense na Eppur, reuniram com o padre num escritório em Linda-a-Velha e delinearam uma estratégia para o entregar.
O Observador encontrou Anastácio Alves na sala onde terá prestado declarações ao antigo inspetor, gravadas em vídeo, ao longo de cerca de 40 minutos. “Esteve à minha frente uma pessoa que praticou um crime e que teve um impulso para se entregar à Justiça, para que fosse responsabilizado pelos seus atos com a disponibilidade máxima para auxiliar as outras vítimas que existem nestes casos desta natureza. É uma pessoa que conhece o erro e reconhece o problema que tem”, limitou-se a dizer João Sousa, temendo que mais informações pudessem prejudicar uma futura defesa de Anastácio Alves.
Foi mandado do Funchal para o estrangeiro, ao segundo inquérito por abuso sexual. Só fugiu no terceiro
Anastácio Alves foi acusado de ter abusado de uma criança de 13 anos em quatro situações distintas e numa quinta vez, em 2017, já o rapaz tinha 14 anos (sendo o crime ato sexual com adolescente). Os abusos aconteceram sempre na casa da família da vítima. Nesta altura a criança vivia com os avós, onde era habitual o padre Anastácio Alves deslocar-se para jantar, mas o caso só foi sinalizado pela Comissão de Proteção de Criança e Jovens em Risco já Anastácio Alves prestava serviço a uma comunidade portuguesa perto de Paris.
Tal como o Observador noticiou em primeira mão na investigação sobre abuso sexual na Igreja “Em Silêncio”, o comportamento da criança na escola despertou a atenção das técnicas. Os abusos que o então padre infligiu à vítima comprometeram “o seu normal desenvolvimento psíquico, afetivo e sexual, antes e depois de ter 14 anos”, reconheceu agora o Ministério Público. A Comissão comunicou o caso às autoridades, enquanto que alguém mandou uma carta anónima à Igreja a relatar os factos. E só por esta altura Anastácio Alves foi alvo de um processo de averiguações por parte da hierarquia católica.
Madeira. Padre Anastácio Alves acusado à revelia de cinco crimes de abuso sexual de menor
Segundo o despacho de acusação, que se resume a 11 páginas, no processo existem 18 folhas que descrevem todas as diligências que as autoridades fizeram para encontrar Anastácio Alves nos últimos quatro anos. Em vão. Desde que soube que corria um processo contra si, que Anastácio Alves não mais foi visto. Deixou o carro que tinha na paróquia em Paris e só voltou a dar sinal de vida através de uma carta entregue à diocese do Funchal onde pedia a dispensa do sacerdócio, em 2019. Assim, foi acusado sem nunca sequer ter prestado declarações no processo.
Anastácio fez sempre uma vida normal
Anastácio Alves já tinha sido investigado em 2005 e a diocese tinha simplesmente mudado o sacerdote de paróquia. Tempos depois, soube o Observador, Anastácio ainda fez terapia para o que dizia ser uma compulsão. Mas as consultas eram no continente, não permitiam grande frequência e ele acabou por desistir. Na segunda investigação de que foi alvo, em 2007, acabou por ser mudado de país por ordem do bispo: esteve na Suíça e depois em França.
Os dois casos acabariam por ser arquivados. Ninguém valorizou os depoimentos das vítimas. Só à terceira denúncia contra Anastácio Alves, que agora foi formalmente acusado à revelia, o então bispo do Funchal, D. António Carrilho, decidiu suspendê-lo de funções — embora não tenha comunicado o caso às autoridades. Cerca de um ano depois de ter desaparecido de Paris, o padre fez chegar uma carta por ele assinada à diocese do Funchal a pedir dispensa do sacerdócio, o que foi concedido travando qualquer processo canónico por parte da Igreja.
O Observador sabe que ainda terá passado pelo Brasil, mas que o último ano terá sido passado em Portugal continental, sem o mínimo esforço de se esconder ou passar despercebido.