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“O domingo passado, falando na linguagem da terra, celebraram os brancos a sua festa do rosário; e hoje, em dia e ato apartado, festejam a sua os pretos, e só os pretos”, descreveu o Padre António Vieira num dos seus sermões. “Até nas coisas sagradas, e que pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os homens a distinção que a piedade.”
Controverso em vida, polémico mais de três séculos depois da morte, será Vieira um “colonialista”, como sugere uma pichagem surgida esta semana na estátua que em Lisboa homenageia o padre jesuíta? “Descoloniza”, escreveu alguém a vermelho-sangue na base do monumento, acrescentando garatujas da mesma cor às figuras de bronze que representam Vieira de pé, com crucifixo alçado, e três crianças indígenas brasileiras a ele encostadas. O ato de vandalismo, que logo mereceu à PSP diligências de investigação e à Câmara de Lisboa pronta divulgação de uma operação de limpeza, registou-se no contexto da delapidação de estátuas de figuras históricas consideradas racistas, o que tem vindo a acontecer em cidades dos EUA e da Europa na sequência de manifestações contra o homicídio policial, a 25 de maio, do cidadão negro norte-americano George Floyd.
Caberá analisar dúvidas sobre o percurso de Vieira, alegadamente maculado por atitudes ou escritos contrários ao que hoje constitui a noção genérica de Direitos Humanos (inscrita na Declaração Universal das Nações Unidas, de 1948, ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1970). Mas para isso é necessário esquecer o anacronismo de se julgar no século XXI o pensamento e as ações de alguém que morreu há 322 anos, é necessário partir do princípio de que há uma lógica ou atitude política na frase “descoloniza” e, ainda, admitir que seja pacífica a equivalência entre os termos “colonialista” e “racista”. A ser assim, foi Vieira um racista? Para usar uma expressão de ativistas antirracistas quando da inauguração da estátua, em junho de 2017: deve ser considerado um “escravagista seletivo”?
No campo das disputas em torno da narrativa sobre personalidades e factos relativos aos Descobrimentos, ao passado colonial português e à exploração esclavagista e de recursos, Portugal tem sido terreno fértil. As mesmas guerras ideológicas de outros países adquirem por cá forte polarização esquerda-direita e uma sobreposição de valores e interpretações.
Somam-se a este caso polémicas recentes ligadas aos mesmos temas. Por exemplo, a remoção em 2016 de certos arranjos florais do Jardim da Praça do Império, frente ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, por neles estarem representados brasões das antigas “províncias ultramarinas” portuguesas, o que foi considerado um resquício “colonialista”. Ou o Museu da Descoberta (ou dos Descobrimentos), que o atual presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, inscreveu no programa com que ganhou as eleições autárquicas de 2017 e que após longa polémica levou a Assembleia Municipal a recomendar que se criasse não um museu mas vários espaços museológicos dedicados aos Descobrimentos “nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura”.
“Amplo em humanidade”, descendente de uma mulata?
Ao longo das últimas décadas, os biógrafos de Vieira ora sugeriram, ora escreveram com todas as letras, que o jesuíta não só não era racista como empenhou a própria reputação no projeto de abolir a escravatura e dignificar os povos originários brasileiros. Um desses biógrafos, aliás, e isto em 1981, quando o tema do racismo tinha uma dimensão mundial mais modesta do que hoje, fez notar a ascendência mulata de Vieira, e não deve ter sido por acaso. “Todas as diligências feitas pelo Santo Ofício no sentido de lhe indagar os rastos de uma ascendência judaica ou moura mostraram-se improfícuas. Pelas mesmas investigações se tornou provável que a avó materna do futuro orador fosse mulata”, escreveu o filólogo José Van Den Besselaar, em António Vieira: O Homem, A Obra, As Ideias (1981).
No livro de dispersos Ir à Índia Sem Abandonar Portugal (1994), o vieirino mais famoso do século XX português, Agostinho da Silva (1906-1994), fez-lhe um retrato sumário em tom elevado: “Senhor da Língua, estrito na religião, folgado na diplomacia, testarudo [teimoso] em política, amplo em humanidade”. E também “escravagista seletivo”?
Figura controversa, António Vieira (1608-1697) continua a manifestar hoje a relevância dos seus atos e pensamentos, da sua história de vida — ou não tivesse sido precisamente uma estátua que o representa o alvo do ato de vandalismo. Nascido em Lisboa, cresceu e fez vida no Brasil, então parte do império português. Para lá se dirigiu primeiramente o pai, Cristóvão Vieira Ravasco, natural de Santarém e escrivão de tribunal, e mais tarde a mãe, Maria de Azevedo, lisboeta, que ensinou as primeiras letras ao filho. Aos 15 anos, na então capital do Brasil, a Bahia, entrou para a Companhia de Jesus.
A vida de Vieira conheceu “uma série de transes críticos e perigosos”, notou José Van Den Besselaar. “Longe de os evitar, parece que andava à procura deles para poder mostrar o seu brio de lutador.” O jesuíta “era infatigável em defender os direitos dos índios”, afirmou o autor. Estes, pela lei, “não podiam ser escravizados a não ser em casos expressamente estipulados”, mas “na prática as leis eram pouco respeitadas” e “os governadores regionais não dispunham de meios eficazes para refrear a cobiça dos colonos” perante o trabalho escravo dos índios.
Parece, pois, consensual que terá sido um destacado defensor dos povos originários do Brasil, cuja exploração era vista pelo sistema colonial como pedra-de-toque da vida económica do território. Em 1653, o religioso anotou: “Não há outro ouro nem outra prata mais que o sangue e o suor dos índios: o sangue se vende nos que se cativam, e o suor se converte no tabaco, no açúcar e nas mais drogas que com os ditos índios se lavram e fabricam.”
Pela mesma época, terá escrito a D. João IV e em 1654 decidiu atravessar o Atlântico para pedir pessoalmente ao rei que criasse “legislação justa para os indígenas”. Nas vésperas dessa viagem, na igreja de São Luís do Maranhão (que era um estado separado do Brasil, depois do domínio francês), terá proferido o Sermão de Santo António aos Peixes: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.” É um dos mais célebres momentos da sua obra.
Os negros não mereceram a mesma atenção de Vieira?
De igual modo, Vieira foi autor de passagens eloquentes sobre as condições de vida dos escravos negros que os portugueses traficavam para o Brasil. Como esta: “Uma das grandes cousas que se vêem hoje no Mundo, e só pelo costume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América. Atravessaram o mar oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos.”
Neste particular são de livre interpretação as análises que oferecem os investigadores. Nas palavras do historiador António Borges Coelho, “a escravatura constituía um dos alicerces da vida social no mundo ibérico, colonial e continental, e a pedra angular da construção do Brasil”. Disse mais, o antigo professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, numa comunicação de 2008: “Segundo alguns cálculos, durante o século XVI, entraram no Brasil cem mil escravos da Guiné e de Angola, mas ao longo do século XVII o ritmo de entrada acelerou. Os colonos utilizavam-nos nas suas casas, nos engenhos, nas plantações e vacarias. Os Jesuítas faziam o mesmo. No seu engenho de Sergipe do Conde morriam cada ano cinco dos seus oitenta escravos jovens.”
Perante este cenário, que fez e pensou Vieira? A análise de Borges Coelho fala por si e poderá justificar acusações ao padre. A passagem é longa:
“Integrado na sociedade colonial onde a Ordem dos Jesuítas ocupava um lugar eminente, António Vieira tinha consciência da violação do direito natural, mas não considerava possível outra solução. Em sermões que, em tempos diferentes, pregou aos negros da Bahia, Vieira não combate a escravatura dos negros como negócio e como organização da sociedade e do trabalho, preocupa-se tão-só com a salvação das suas almas e com os maus tratos que os senhores brancos lhes infligiam. Do ponto de vista teológico, não lhe faltavam autoridades que fundamentassem a legitimidade da escravatura. Desde logo as narrativas do Velho Testamento, depois Santo Agostinho que a justificava como castigo divino pelo pecado de Adão. Num dos sermões pregados aos negros da Bahia, António Vieira recorreu a São Paulo: ‘Escravos, obedecei aos vossos senhores carnais’. Exortava-os à paciência, confortava-os com a crença de que a Irmandade da Senhora do Rosário lhes prometia, a todos, carta de alforria no outro mundo.”
Tráfico legal era “mal menor” para muitos teólogos
Um cartaz crítico da estátua de Vieira em Lisboa, e presumivelmente divulgado na internet por ativistas que depois se manifestaram presencialmente frente ao monumento a 5 de outubro de 2017 (acabando por dispersar perante a ameaça de uma contra-manifestação de “nacionalistas da extrema-direita“), alegava: “Com a colaboração da Igreja, mais de seis milhões de africanos foram escravizados pelos portugueses no tráfico trnsatlântico. Padre António Vieira era um escravagista seletivo. A colonização portuguesa no final do século XVI já tinha dizimado 90% da população indígnea. A evangelização jesuíta foi a maior responsável pela etnocídio ameríndio.” Entre os manifestantes contavam-se membros do movimento Descolonizando, composto por “investigadores, professores, artistas e ativistas de diversas nacionalidades”, de acordo com a página oficial que então existia no Facebook.
De facto, no dizer da historiadora Maria do Rosário Pimentel, professora da Universidade Nova de Lisboa e antiga investigadora do Centro de História da Cultura, “a iniciativa de introdução de africanos na América” coube “inteiramente aos colonos”, mas “foi, em parte, sob a ação dos jesuítas que em Portugal se promoveu a substituição do índio pelo negro e se sensibilizou o governo de Lisboa para conceder regalias aos moradores da colónia com essa finalidade”. A análise foi partilhada no Congresso Internacional Vieira, que decorreu há 12 anos em Lisboa e de que resultou o livro Padre António Vieira: O Tempo e os Seus Hemisférios.
“O próprio tráfico, feito legalmente, sem ser com indivíduos fraudulentamente escravizados, era considerado, pela maior parte dos teólogos, como um mal menor dado que permitia a evangelização e a perseverança na fé cristã. É dentro desta ordem de ideias que encontramos os missionários do mundo moderno, pregando e invocando a escravidão”, escreveu Maria do Rosário Pimentel.
Na mesma ocasião, debruçado sobre o posicionamento de Vieira face à escravatura negra e aos ameríndios, Fernando Cristóvão, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, notou que quem não está habituado a “estudar os factos históricos no contexto da história das ideias e dos acontecimentos políticos e sociais do tempo em questão” surpreende-se ao verificar que “Vieira e outros religiosos não tenham atacado frontalmente a escravatura como violação dos direitos humanos”. Contemporizaram com ela, preocuparam-se apenas com a “afirmação da igual dignidade dos homens, mas admitindo a prática da escravatura, insistindo sobretudo na humanização dos cativeiros”.
Por isso, para Fernando Cristóvão, a atitude de Vieira a respeito da escravatura pode resumir-se desta maneira: “Defendendo intransigentemente a igualdade dos homens e a liberdade de negros e índios contra todas as tentativas de escravidão por parte dos colonos, consentiu e aprovou a escravidão dos negros, apesar das reiteradas afirmações de que também assistia aos naturais de África não só a justiça de um tratamento humano e cristão, mas o direito a serem plenamente livres.”
“Aceitava a escravidão, não quer dizer que a aplaudisse”
Se a omissão não é uma aprovação, mas será uma forma velada de apoio, certo é que se passaram mais de 300 anos. Pode-se, a esta distância, fazer o julgamento sumário de uma figura histórica que viveu num tempo de valores inconcebíveis nos dias de hoje? Será viável afirmar que Vieira foi um defensor do esclavagismo? “Aplicar, de forma mecânica, esquemas mentais e grelhas de questionário do século XXI a homens e situações do século XVII” é uma “estupidez”, segundo o historiador João Pedro Marques, especialista em estudos africanos e asiáticos e em história dos Descobrimentos. “Digamos que essa é mesmo a única virtude da acusação que se faz a Vieira, ou seja, a de nos fazer tomar consciência de que estamos perante um mundo muito diferente do nosso e de que a tradução de um para o outro não é instantânea nem simples nem linear.”
Num artigo de 2018 no Observador, João Pedro Marques defendeu que “é preciso perceber é que no século XVII, com raríssimas exceções, as pessoas em toda a parte do mundo, até mesmo em África e entre os africanos, aceitavam a escravatura” e concluiu, sem ambiguidades: “O padre António Vieira, que viveu no século XVII, aceitava a escravidão, o que não quer dizer que a aplaudisse ou promovesse. Para perceber a sua posição e o seu pensamento é útil recuar até à Antiguidade Clássica, até às filosofias de Aristóteles e dos estóicos, porque, no Ocidente, foi sobre elas que se moldou boa parte do que os séculos posteriores pensaram sobre a questão dos escravos.”
A imagem que fica, e a que mais tem sido destacada no espaço público, incluindo no dia da inauguração da estátua que o artista plástico Marco Telmo Areias Fidalgo criou para o Largo Trindade Coelho, em Lisboa, é a de um humanista, diplomata, grande orador e cultor da língua portuguesa. Sobre isso o conhecido jornalista Alberto Dines, do jornal Folha de S. Paulo, registou em 1997: “Não fosse o quilate literário e uma certa dose de marginalidade, Fernando Pessoa não o designaria ‘imperador da língua portuguesa’ e, no Brasil, não teríamos cunhado a expressão ‘estalo do Vieira’, preito popular à inventiva do tributo poliglota, formado na Bahia, depois exilado no Maranhão amazónico e que em Roma encantou de tal forma a rainha Cristina da Suécia que esta o convidou para sentar-se ao lado de Descartes em sua corte.”
Disse mais, Alberto Dines, numa súmula que terá alguma verdade e um tanto de lenda: “Legítimo campeão dos direitos humanos, defendeu os índios, condenou os maus-tratos aos escravos, denunciou o racismo, lutou encarniçadamente contra os procedimentos inquisitoriais, trabalhou para trazer os cristãos-novos de volta a Portugal.”