Sublinhados, pintados, com colagens e até recortados. Os manuais do 3.º e 4.º anos foram usados em pleno pelos alunos durante o último ano de aprendizagem. A informação recebida no arranque do ano letivo 2022/2023 era de que os estudantes não teriam de os devolver e, como tal, podiam escrever neles, sem que se antecipasse que isso fosse interferir com o acesso aos vouchers para levantar os livros gratuitos do ano letivo seguinte (e que agora está prestes a começar). Mas as regras mudaram. O Ministério da Educação veio explicar que teriam mesmo de ser devolvidos, sendo que desde que os manuais escolares se tornaram gratuitos se previa que, na altura da entrega, não pudessem ter grandes vestígios de uso. Multiplicaram-se, então, histórias de pais a tentarem apagar as marcas que conseguiam em contrarrelógio para os entregar no prazo estabelecido e também relatos de escolas que, considerando que alguns manuais não estavam em condições de ser entregues, não atribuíam vouchers.
Paula Caniço, mãe de uma criança do 3.º ano, nem tentou devolvê-los. “Estavam sublinhados, estavam escritos, estavam inclusivamente recortados. Não estavam em condições de serem reutilizados e, portanto, eu disse logo que não os ia devolver“, diz ao Observador. Joana Bento, por outro lado, ainda tentou entregar os manuais do filho, que transitou agora para o 4.º ano, mas, devido à profissão que a obriga a fazer deslocações frequentes para fora de Lisboa, não teve como apagá-los e entregá-los no horário exigido pela escola — de segunda a sexta-feira, entre as 9h30 e as 16h. Recorda, no entanto, como na turma do filho, de cerca de 20 alunos, as regras não foram aplicadas de igual modo em todos os casos. “Na mesma secretaria, do mesmo agrupamento, alguns pais conseguiram entregar livros sem estarem apagados e mesmo assim tiveram acesso aos vouchers e a outros, na mesma situação, foi-lhes negado. Não faz sentido nenhum”, sublinha.
Este cenário repetiu-se em várias escolas, a quem compete a avaliação sobre o estado dos livros e a decisão sobre se os encarregados de educação têm ou não acesso a novos manuais gratuitos. Se algumas aceitaram os manuais anteriores tal como estavam, atribuindo os vouchers para que as famílias pudessem ter acesso aos livros gratuitos deste ano letivo, outras escolas consideraram que os manuais não estavam em condições de ser reutilizados e recusaram-se a atribuir vouchers — a alternativa nestes casos é pagar os livros anteriores para assim obter os vouchers e foram várias as famílias que, sem outra opção, o fizeram.
Em resposta a estas situações, e apesar de desde o início da iniciativa ser regra que os manuais sejam entregues em “adequado estado de conservação” para em troca se receber o voucher, o Ministério da Educação veio garantir este ano que as famílias teriam direito a eles mesmo quando não fosse possível a reutilização dos livros antigos, desde que essa impossibilidade decorresse do seu “uso normal”. Para regularizar estes casos, na semana passada reabriu durante três dias a plataforma que atribui os vouchers — a Mega — para que as escolas fizessem as correções necessárias. Mas, por esta altura, eram já muitos os pais que tinham pago os livros do ano anterior, algo que afinal não tinham de fazer, e procuram agora reaver o seu dinheiro. Outros, cansados de informações contraditórias, desistiram de todo de recorrer ao sistema de vouchers.
Pais querem saber como reaver dinheiro gasto em manuais escolares
Na semana passada, entre os dias 30 de agosto e 1 de setembro, o Ministério da Educação reabriu a plataforma Mega para as escolas corrigirem a atribuição dos vouchers face à garantia de que ninguém ficaria sem acesso a eles pelo facto de os livros do ano anterior não poderem ser reutilizados. Se isso podia resolver o problema dos pais que ainda não tinham entregado nem pago os manuais do ano letivo passado, não dava resposta aos casos de famílias que, ao ver negado o acesso aos vouchers porque os manuais não estavam nas condições exigidas, já tinham feito o pagamento dos manuais.
“No caso daqueles que não pagaram de todo os livros do ano passado, acreditamos que a situação possa ter ficado resolvida — ainda não conhecemos o desfecho porque o portal só fechou na sexta-feira e, portanto, a partir desta segunda-feira é que as famílias vão ao portal verificar se de facto têm acesso aos manuais”, começa por explicar ao Observador Mariana Carvalho, a presidente da Confederação Nacional das Associação de Pais (Confap). “Relativamente às famílias que tiveram que pagar os manuais quando as escolas consideraram que não estavam em condições de reutilização, mas que se veio confirmar que teriam direito aos vouchers do ano seguinte e, assim sendo, aos manuais, ainda aguardamos indicações de como proceder“, revela.
Segundo Mariana Carvalho, já chegaram à Confap centenas de pedidos de ajuda de famílias que pagaram os livros do ano letivo passado para terem acesso aos vouchers a que, afinal, teriam direito. O organismo chegou inclusivamente a questionar o próprio Ministério da Educação sobre como é que estas famílias podem ser ressarcidas, tendo para isso enviado um email a 24 de julho, mas até agora não recebeu qualquer resposta. “À partida, acredito que com o esclarecimento do ministério possa ser mais fácil as famílias conseguirem tratar isto diretamente com a escola, mas por agora não sabemos do todo como é que isso irá acontecer”, refere.
O Observador questionou também o Ministério da Educação — no final da semana passada e, novamente, no início desta semana — sobre se está prevista alguma medida para que as famílias possam reaver o dinheiro que gastaram nos livros escolares, mas até à publicação deste artigo não recebeu uma resposta sobre o assunto.
Questionada sobre se a situação poderá ficar resolvida ainda antes do arranque do novo ano letivo, que para o primeiro ciclo começa até meados de setembro, Mariana Carvalho reforça que para já não é sequer claro se as famílias poderão ser ressarcidas. “Ainda não sabemos como é que as famílias poderão resolver esta situação (…). Esta segunda-feira estamos a fazer uma nova análise das situações e estamos a fazer também um novo pedido de esclarecimento ao Ministério da Educação. Estamos a encaminhar as famílias, em primeira instância, para as escolas, para ver se conseguem a resolução da situação diretamente com elas”.
A presidente da Confap defende ainda que os livros do 3.º e 4.º ano nunca deveriam ter de ser entregues, como acontece no caso do 1.º e 2.º anos de escolaridade. “Devem ser utilizados na sua plenitude. Os manuais preveem um lugar para escrever, pintar, sublinhar, fazer ligações, recortes e colagens, portanto, isso implica que não há lugar à reutilização. Não é possível a reutilização”, sublinha.
O apelo é semelhante da parte da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas. “Mesmo que soubéssemos e ficasse preto no branco, desde o arranque do ano letivo, que os manuais do 3.º ano tinham de ser reutilizados, pergunto: como é que se pode reutilizar um manual que tem espaço para os miúdos escreverem, tem desenhos para eles colorirem, tem folhas para eles recortarem com uma tesoura, e até autocolantes para eles colarem? Como é que um livro concebido desta forma pode ser reutilizado?”, sublinhou anteriormente Filinto Lima, presidente da associação. Para evitar confusão futura, pede “indicações claríssimas” logo no início do ano.
Famílias desistem de recorrer ao sistema de vouchers e compram livros pelos próprios meios
No mês de julho, Paula Caniço tomou a decisão de se dirigir à secretaria da escola, não com o intuito de entregar os manuais escolares do filho, mas para os pagar. E, apesar de ao fazê-lo poder ter acesso aos vouchers para os livros do ano seguinte, decidiu prontamente que não queria recorrer novamente a este sistema. “Eu disse logo que não ia querer mais vouchers, porque para mim não se fazem as coisas desta maneira”, sublinha em declarações ao Observador. “Esta questão de avisarem da devolução de manuais só no final do ano foi uma novidade e foi muito mal encaixada. A informação anda para trás e para a frente. Ora dizem, ora desdizem. Primeiro tinha que ser tudo entregue apagado, depois afinal já se podia entregar mais tarde e, portanto, vão mudando as regras consoante querem”, sublinha.
A encarregada de educação, que também é professora, assume ser a favor de que os manuais escolares sejam reutilizáveis, lembrando as lições ambientais e de literacia financeira que ensinam aos próprios alunos, mas admite que nunca foi adepta da ideia de que a mesma regra se aplicasse aos livros do 3.º e 4.º anos, defendendo que à partida nenhum livro de uma criança tão pequena estará bom para voltar a ser usado. Sublinha, no entanto, que o principal problema deste ano é que não se sabia à partida que os livros seriam entregues. “Claro que a utilização que as pessoas fazem é diferente. Como professora digo sempre aos alunos que têm de devolver os livros para que não escrevam neles, mas nos cadernos. E penso que os miúdos já estão um bocadinho dentro desta lógica”, explica.
A encarregada de educação encomendou os quatro livros do 4.º ano (matemática, português, estudo do meio e inglês) e respetivos cadernos de exercícios na sexta-feira passada, precisamente o último dia anunciado pelo Ministério da Educação para as escolas atualizarem no portal Mega a informação sobre quem tem direito aos vouchers. “É uma palhaçada. Para mim, acabaram-se os vouchers, não quero mais”, garante.
O caso não é único e já têm chegado histórias semelhantes à Confap. “Temos famílias que decidem que vão comprar os manuais para não terem de lidar com estas questões e para os seus filhos poderem usufruir ao máximo do material escolhido”, diz ainda a presidente do organismo, Mariana Carvalho. No entanto, num ano em que o preço do material escolar aumentou 14% face ao ano passado, nem todas as famílias têm essa possibilidade.
Também Joana Bento, mãe de uma criança que em setembro vai começar o 4.º ano de escolaridade, desistiu de recorrer este ano ao sistema de vouchers, apontando falhas de comunicação no funcionamento das escolas e horários que, para os pais, são difíceis de cumprir. Sem conseguir entregar os livros no período estipulado, a encarregada de educação ainda se deslocou à escola do filho, no final de julho, para pagar os livros do ano passado e deste modo ter acesso aos vouchers para adquirir os novos manuais.
Foi a primeira a chegar à secretaria da escola, logo às 9h30, para pagar os livros — algo que lhe disseram que teria de fazer presencialmente –, perdendo durante o processo boa parte da manhã de trabalho. No mesmo dia, ainda receberia uma chamada do estabelecimento de ensino pouco antes das 16h para a informar de que a plataforma afinal não estava disponível nesse que era o último dia para pagar os livros que não tinham sido entregues. Ainda a informaram de que teria de se dirigir à novamente à secretaria para lhe ser restituído o dinheiro, sem que lhe fosse apresentada qualquer justificação para tal. “O que me faz confusão é que ninguém sabe explicar o porquê das coisas nas escolas. Ninguém. Escudam-se no Ministério da Educação e nós temos que acatar essa decisão”, critica.
Ainda chegou a dirigir-se novamente à escola para lhe ser restituído o dinheiro, sem receber nenhuma explicação para o facto de não ser possível utilizar a plataforma Mega. Foi só a meio da manhã da quinta-feira passada que foi informada de que o prazo para a atribuição de vouchers — que seria válido no seu caso — tinha sido prolongado. “Eu estive a trabalhar até às 16h e portanto não tive como resolver a situação. Deve haver muitos pais que se calhar tinham forma de serem ajudados nestes dois dias e não foram. Portanto, de qualquer forma, há muitos encarregados de educação e pais que vão sair prejudicados com isto tudo. E estamos a falar de valores superiores a 40 euros quando os livros supostamente são gratuitos.”
Sem acesso aos vouchers, Joana Bento encomendou os livros deste ano pelos próprios meios. Já tinha recorrido ao sistema dos vouchers em anos anteriores, mas este foi o primeiro ano em que teve problemas. “No 1.º e 2.º ano não tive qualquer tipo de problema. Recebi os vouchers, aquilo vai para a plataforma, chega às livrarias e recebemos um telefonema a dizer que os livros já estão. É impecável. Foi só este ano”, explica. Confrontada com as indicações contraditórias e a falta de soluções da parte das escolas para ajudar as famílias, questiona se vai voltar a fazê-lo. E sublinha: “Isto foi uma falha de informação tremenda.”