Discurso do Papa Francisco
No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a caracteriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?”
Foram várias as referências de Francisco à guerra na Ucrânia, através de críticas à Europa pela ausência de um caminho para a paz. O líder da Igreja Católica colocou no “velho continente” a responsabilidade da resolução do conflito, tal como aconteceu no passado, numa referência aos acordos de paz firmados após as guerras que assolaram o continente europeu no século XX. O líder da Igreja Católica pede aos países europeus um esforço na construção de pontes e de diálogo e que tenham um papel de “pacificadores” no Leste europeu, numa altura em que Ucrânia e Rússia continuam de costas voltadas e sem se sentar à mesa das negociações.
Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas”.
O comércio de armas tem sido uma crítica recorrente do Papa Francisco nos discursos que proferiu nos últimos meses, condenando as avultadas verbas que os Estados gastam no armamento em detrimento de as aplicarem no desenvolvimento e na melhoria de vida dos cidadãos, incluindo na educação. Num momento de improviso, Francisco chega mesmo a lamentar que se gaste mais dinheiro em armas do que no futuro dos jovens e pede que o “engenho” e os conhecimentos técnicos sejam usados para pôr fim às guerras, e não para criar mais conflitos.
No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos.”
Francisco exprime o que considera ser um “paradoxo”: que numa altura em que a ciência e a medicina se desenvolvem, a vida humana continue a ser, na sua argumentação, posta em risco. Como? Uma das vias que aponta é a interrupção voluntária da gravidez, uma prática condenada pela Igreja Católica e legal em Portugal desde 2007. O Papa reserva a esta temática algumas das palavras mais duras, ao trazer à imaginação as “crianças não-nascidas”, um argumento emotivo frequentemente usado para defender a ilegalização do aborto. Coloca, assim, a interrupção voluntária da gravidez na categoria das práticas “utilitaristas” que “usam e descartam” a vida.
Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios?
São também frequentes as referências às fronteiras que os países erguem entre si, em terra, com os literais muros de arame farpado, ou no mar, aludindo às mortes no Mediterrâneo que continuam a ser notícia. Francisco tem, por diversas vezes, focado o discurso na aceitação do outro, na solidariedade e fraternidade. Aliás, enumera “três estaleiros de construção de esperança”, onde todos os cidadãos e países podem trabalhar “unidos”: além do ambiente, o futuro (um ponto muito focado nos jovens) e a fraternidade. Usando a imagem do oceano que banha a costa portuguesa, e que liga povos e países, mas também terras e continentes, Francisco pede que as fronteiras sejam vistas não como “limites que separam”, e sim como “zonas de contacto”.
Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?
O paradoxo moral a que Francisco se referiu anteriormente não passa só pelo aborto: menciona também a eutanásia, outra prática condenada pela Igreja Católica e que é resumida pelo Papa como o “fácil acesso à morte” — um remédio “rápido” e “errado”, nas palavras do sumo pontífice, que mais à frente fala mesmo num “declínio da vontade de viver”. A referência é feita quase um mês depois de a morte medicamente assistida ter entrado em vigor em Portugal, na sequência de um autêntico vai-vem político entre Marcelo Rebelo de Sousa e o Parlamento — foram necessários quatro vetos, dois do Presidente da República e outros dois por inconstitucionalidade, até que a lei fosse aprovada, em maio, obrigando Marcelo a promulgá-la.
Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico.”
A ecologia é, também, um tema recorrente nos discursos de Francisco, que convoca os países a olhar e debruçar-se sobre um problema que é “global”: a poluição, o aquecimento global, o uso excessivo de plástico. Francisco aponta uma contradição: que os governos e outras entidades digam que acreditam nos jovens, mas ao mesmo tempo não lhes garantam um ambiente saudável e seguro para construir o futuro.
O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica”.
Os jovens foram o foco de várias passagens do discurso do líder da Igreja Católica. Aludindo à recente crise inflacionista, Francisco lamentou o aumento do custo de vida e as dificuldades em arranjar casa que afetam os jovens — dois fatores que têm sido particularmente discutidos em Portugal nos últimos tempos, com o Governo a tentar responder com o chamado “pacote Habitação”. E que, juntamente com o aumento de desemprego — que começa, também, a verificar-se no país — leva os jovens a adiar, ou mesmo a desistir, da decisão de constituir família. O Papa mostra, aliás, preocupação com as quebras da taxa da natalidade na Europa, e no Ocidente em geral, e pede aos governos uma “boa política” que gere esperança e corrija o que diz serem os “desequilíbrios económicos” de um mercado que não distribui a riqueza.
Com efeito, como observou Saramago, “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto.
A Igreja e Saramago viveram anos de relação atribulada, que culminaram com o veto pelo Governo de Cavaco Silva do nome do Nobel como candidato ao Prémio Literário Europeu após declarações do escritor que não agradaram à Igreja. Apesar de o Vaticano aparentar ter feito as pazes com Saramago num artigo, de 2020, em que o elogia como um autor que “procurou destacar o fator humano que se esconde por detrás dos acontecimentos mais díspares”, a referência feita por Francisco não deixa de causar surpresa. O escritor, falecido em 2010, é, agora citado por Francisco para exortar os cidadãos a aprofundar os valores da fraternidade e o sentido de comunidade, de ajuda ao próximo.
Soube de muitos jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa “Missão País”, que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos“.
A solidão e o abandono dos mais idosos tem sido múltiplas vezes criticada por Francisco, que usa um projeto católico de universitários que prestam serviços às comunidades, incluindo no interior do país, como um exemplo da fraternidade que pede aos cidadãos. Francisco volta a condenar a forma como muitos idosos são tratados — chega a utilizar a expressão “o descarte dos idosos” — e agradece a quem, na sociedade civil se preocupa “com os outros, nomeadamente a Igreja”, e que faz “tanto bem, mesmo longe dos holofotes”.
Não muito longe deste lugar, no Cabo da Roca, está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: “Aqui… onde a terra se acaba e o mar começa” (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20). (…) Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: “Lisboa tem cheiro de flores de mar” (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). (…) Muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como: “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro) e outro poeta rezava assim: “Deus do mar dai-nos mais ondas, Deus da terra dai-nos mais mar” (D. Faria, o país de Deus). (…) Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso (…); o que é necessário é criar” (Navegar é preciso).”
Além de Saramago, Francisco pontuou o discurso com várias outras referências à cultura portuguesa: citou Camões e a conhecida frase d’Os Lusíadas inscrita numa lápide no Cabo da Roca; um verso de um dos fados mais conhecidos, imortalizado por Amália Rodrigues (Cheira Bem, Cheira a Lisboa, escrito por César de Oliveira); um excerto de um poema de Sophia de Mello Breyner sobre o mar; as “palavras ousadas” de Pessoa; e, menos conhecido, Daniel Faria, poeta de Paredes falecido em 1999, aos 28 anos, que transpôs para a sua poesia a vocação sacerdotal.