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Esta reportagem faz parte de uma série de três retratos sobre o Brasil nas vésperas da eleição presidencial — pode ler aqui o de Salvador da Bahia e aqui o das colónias no Rio Grande do Sul.
Quando a cobra castanha começa a serpentear acaba a cidade. Manaus fica para trás, fica para trás o rio Negro. Por ali, por aquele rasto de cobra gigante, entra-se na Amazónia, viaja-se entre aldeias, migra-se para outros lugares e volta-se à cidade. Trocas que acontecem mais vezes do que a tradição indígena precisaria para se manter viva. Eles conhecem-no como Amarú Muyo, os brancos chamam-lhe rio Amazonas.
Nazareno Iucuru está logo ali, nem a 40 minutos de distância do porto de Manaus, na entrada do rio Solimões — que se mistura com as águas do Amazonas —, com os seus “parentes” a fazer rituais para turistas verem. Está com as vestes tradicionais de indígena e a cara pintada com Urucum. Estão ali, porque nesta altura do ano os barcos maiores não chegam até à sua aldeia, uns quantos metros à frente, também na região ribeirinha de Janauri. Entre os indígenas corre a lenda de que no século XVI os colonizadores portugueses dizimaram naquele local uma aldeia e que ninguém sobrou.
Agora povos como os Iucuru e os Apurinã (que vieram de longe) ocupam um território muito diferente do deixado pelos antepassados, mais exposto à cidade — uma metrópole com mais de dois milhões de habitantes — e ao homem branco. Pior: não estão ali apesar da cidade, estão ali por causa da cidade. Foram vindo em busca de melhores condições de vida e foram ficando, alguns deles contratados para fazerem espetáculos para turistas no prestigiado Ariaú Amazon Towers — que chegou a entrar no livro do Guiness como o maior hotel de selva do mundo —, um projeto do empresário Ritta Bernardino que foi à falência em 2015. Bill Gates e Jimmy Carter foram dois dos famosos que passaram pela unidade, que foi até cenário do filme Anaconda.
“A gente só corre para comer na cidade se não houver nada aqui”
Nazareno tem 20 anos, já nasceu por aqui. Levanta-se todos os dias às 6h, toma banho e vai para o colégio. “Aí umas 11h, a gente está de volta, se arruma e vai trabalhar, cultiva mandioca, pesca. Mas agora é mais o turismo. O que a gente come mais é peixe e às vezes um negócio de carne, que caça aqui: capivara, jacaré… A gente só corre para comer na cidade se não houver no interior”. Nazareno não vai a Manaus “vai fazer um ano já”.
Mas a cidade corre todos os dias até ele. Tem telemóvel (ainda que em muitos locais não apanhe rede), sabe o que está a acontecer no país e votou — “Foi normal, fomos na escola no domingo votar”. E não foi o único, toda a sua família exerceu esse direito.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a situação na Amazónia.
Era quinta-feira, já passava das 12h, Nazareno entrou numa pequena canoa para explicar ao Observador como costuma pescar — não àquela hora, porque é quando os peixes estão escondidos no capim. Talvez noutros tempos fosse possível, porque já ouviu dizer que havia mais peixes. Agora não rende ir à hora de maior calor — “para ser bom tem de se levantar às 5h da manhã, a essa hora está tudo boiando” —, mas o isco improvisado (um peixe seco que estava no chão) pode também não ter ajudado.
Pina é caboclo (tem origens indígenas, europeias e africanas) e fez já 65 anos, a maioria deles em barcos entre todas aquelas aldeias e vai comentando a falta de sorte de Nazareno, enquanto solta um grito a imitar um jacaré, para ajudar na pescaria: “Não era assim antes. Não era muito desmatado como está hoje. Era mais fechado, mas a população vai aumentando, vai desmatando e dá menos peixe”. Por isso a rede é hoje mais eficaz, porque a pesca com arpão e arco e flecha, assim como a de caniço, precisam “de mais paciência”.
Nestas águas do rio Solimões, além do Pirarucu, um peixe que chega a pesar centenas de quilos, pesca-se Pacú, Jaraqui, Piranhas (de mais de 30 espécies), Cará, Matrinxã e Pirapitinga. “O Pacú se a gente vir boiando a gente já conhece, a sardinha do mesmo jeito. Se a gente quiser comer um peixe mais ou menos, melhor, a gente pega um desses. Agora, quando a gente quer comer toda a qualidade, tudo junto, a gente mistura tudo. A gente chama de caldeirada, fica bom”, diz Nazareno, lembrando que o Boto (cetáceos originários dos rios da Amazónia) é um animal que não se come nunca, por respeito: “Se você tratar ele bem, ele todo o dia vem na porta de casa”.
Já o café, o açúcar e álcool conseguem comprar sem ir à cidade, mas mais caro: “O quilo do açúcar aqui tá 5,50 reais. Eles compram barato lá e vendem caro aqui”.
A maturidade com que fala da vida, porém, ainda não é suficiente para assumir um compromisso com a indígena de 18 anos que a família escolheu para partilhar a sua vida. “Para casar, você tem de passar por cada coisa, para saber que é capaz de sustentar a família”. Se nunca fizer “a Tucandeira” — ritual em que os rapazes têm de pôr 20 vezes a mão numa luva com centenas de formigas gigantes que mordem — nunca poderá casar, sabe isso. Mas está a ganhar coragem. “É, tem que botar”, suspira, com a perfeita noção de que nunca será “homem” se nunca mostrar que o é junto dos seus. E, para isso, vai ter de enfrentar aquela dor muito forte.
O hru hru toca como se fosse sirene para avisar do perigo
Longe dali, próximo do rio Ariaú, onde estava o hotel Ariaú Amazon Towers — hoje já todo tomado pela natureza —, na aldeia dos Sateré-Mawé, Mirim Sateré antecipou-se. E muito. Tem 13 anos e dentro de poucos dias completa o ritual — será a 26 e 27 de novembro. O seu povo foi um dos que vieram para servir na unidade hoteleira e depois foi ficando. Ele já nasceu ali.
“Eu estou me sentindo meio bem, mas estou ansioso, porque esse ano terminam as minhas ferradas e aí eu vou passar a ser mais respeitado pela minha comunidade”. Mirim ainda se lembra do primeiro dia em que colocou a mão dentro da luva e recorda-o agora com um sorriso: “Tinha 10 anos e entretanto já fiz 18 vezes, esse ano termino as 20, vai ser a minha passagem de menino para adolescente. Depois vou passar de adolescente para homem”.
Para já, quando completar o ritual, vai ficar a conhecer a menina com quem um dia se casará e isso já é motivo de conversa: “A minha avó sempre dizia que se nós começarmos a meter a nossa [na luva] e não terminarmos, nós nunca vamos ser respeitado pelas comunidades. Nós não vamos ser um bom pescador, um bom caçador, por isso, é que eu estou achando que vou ser respeitado pela aldeia”.
Assim que acaba de falar, o som do hru hru — instrumento de sopro feito de bambu — volta a tocar alto em jeito de sirene, a avisar de que o Observador ainda não saiu e que, por isso, há uma ameaça. A pequena aldeia, de 72 pessoas, há algum tempo que deixou de poder contar com o turismo. Com “uma estrutura pequena” e uma maloca (cabana comunitária típica de aldeias indígenas) muito menos cuidada do que as dos Iucuru, esta aldeia tem atravessado grandes dificuldades, sobretudo desde que a pandemia os entregou ainda mais à sua sorte. Numa região onde nem sequer se caça como antes: “Não dá muito para caçar. Onde eles [os homens da aldeia] vão para caçar já estão entrando [intrusos], entendeu? Há pessoal já entrando. Porque essa área onde estamos era do doutor Ritta [Bernardino], o dono do hotel Ariaú”, começa por explicar Pyan Sateré, 40 anos, que desde há cinco anos, quando a mãe morreu, é chefe da aldeia: “Os filhos, que estão devendo, estão dividindo a terra e estão derrubando tudo”.
“Ixi, agora tem muito menos animais, quando chegámos era muito farto. De zero a dez, está 5%”, suspira enquanto fala de um dia a dia que não pode ser normal, porque ali não dá para cultivar. De manhã, quando os homens acordam vão para perto do rio “roçar e ver se pega alguma coisa”, enquanto as mulheres se dedicam ao artesanato. Já as crianças, depois das aulas dadas por Pyan numa escola improvisada — a que tinham caiu e aguardam resposta da Prefeitura — jogam à bola e fazem as suas brincadeiras, incluindo Mirim, que está na transição para a adolescência. Só sairão dali para estudar numa escola a sério se quiserem continuar a partir do 9.º ano, algo que nunca aconteceu, diz Pyan, soltando um sorriso: “Eles renunciam”.
Pyan sabe bem como a aldeia dali é bem diferente dos Sateré no baixo Amazonas, onde tudo tem mais “fortuna, mais área”. Mas há uma curiosidade: “Eles falam que nós somos mais tradicionais. Dançamos Tucandeira, por exemplo. E eles não, já está tudo sapatado [já usam sapatos na terra originária dos Sateré]”.
Os que ficaram enfrentam agora o “desmatamento e o garimpo” [extração de ouro], os que há 38 anos partiram para perto da cidade em busca de uma melhor qualidade de vida, que tarda em chegar, encontram outros flagelos: “Aqui nós sofremos de discriminação. E a droga, que está aqui na cidade, bem aqui no nosso portão, é o meu maior medo, tenho medo que entre aqui”. Um portão que cruzam ao final do mês “para receber o benefício” e para situações excecionais, como este ano aconteceu, para votarem.
Pyan vai fazendo tudo para isolar um grupo que ainda se está a habituar a ser liderado por si e as coisas ainda não estão 100%: “Está melhorando, não foi sempre assim, foi uma mudança e eles se estão acostumando”.
“Aos 7 anos fui violentada por um tio-avô, aos 16 fui servir brancos”
Telma Taurepang — vem de uma linhagem de lideranças indígenas em Roraima — tem por experiência própria uma melhor noção dos desafios que uma mulher indígena enfrenta, das agressões que sofre. Dentro e fora da terra indígena. Começou em 2005 a trajetória no movimento indígena e foi coordenadora do conselho indígena de Roraima, organização que conseguiu a demarcação, como terra indígena, da Raposa Serra do Sol. De 2017 em diante abraçou a coordenação da União das Mulheres Indígenas da Amazónia Brasileira (UMIAB) e é ainda co-fundadora da articulação nacional das mulheres indígenas guerreiras da ancestralidade, com representação em todos os biomas. Este ano candidatou-se ao cargo de Deputada Federal em Roraima pelo PSD, mas renunciou.
O olhar que hoje, aos 50 anos, tem sobre a violência teve de ser desbloqueado, com tratamento psicológico — que tanta falta faz nas comunidades, conta. E o medo que tem de um mundo indígena ainda mais agressivo com as mulheres incomoda-a. “Aos meus 7 anos, eu sofri violência, falamos de uma violência grave, um assédio por parte de um tio-avô. E isso levou-me a vários bloqueios, até aos meus 20 anos, perguntava-me o que é que tinha vindo fazer a este mundo e qual era o meu papel nele”, conta ao Observador, sentada numa mesa à porta de um evento organizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazónia Brasileira (COIAB), num hotel de Manaus. Para aqui chegar e participar num debate com as lideranças indígenas teve de viajar horas e horas.
Telma nasceu e ainda hoje vive na terra indígena Araçá, junto à Venezuela — partilhada pelos povos Taurepang, Wapixana e Macuxi. Conhece-os a todos muito bem e já nem se preocupa com o que causou essa cultura de violência, apenas se tenta focar no combate.
“Vivemos neste momento um nível, devido à pandemia, que é alarmante. O próprio Estado não trata a violência fora e esta acaba entrando dentro dos nossos territórios. E depois há questão da sustentabilidade, que traz o alcoolismo e que traz droga para dentro dos nossos territórios”, diz ao Observador, continuando que “os impactos são maiores para a mulheres indígenas”: “Quando você fala nisso, no trazer a droga, trazer o álcool para dentro, isso significa que os maridos, os filhos se tornam muitas vezes mais violentos”.
Quando era mais nova, recorda-se, o papel do homem e da mulher era mais partilhado. “Era dividido, a minha mãe ia para a roça com a gente, plantar, colher, e meu pai ia caçar e pescar. É uma lembrança da minha de infância…”
Mas a desarmonia reina, mesmo nos territórios mais interiores, e há até dados de que as violações, cometidas pelos próprios indígenas, estão atingir números preocupantes: “Houve um índice muito alto sobre violência dentro dos nossos territórios, inclusive o estupro é com crianças”.
Quando aos 15 anos foi entregue a um indígena percebeu logo isso. A relação durou pouco mais de um ano, porque ele queria bater-lhe, algo que o pai sempre lhe dissera que não podia permitir. Mas o regresso a casa dos pais não foi bem visto, sobretudo pela mãe — que só viria a aceitar em 2014, um mês antes de morrer, após uma conversa debaixo de uma árvore, em frente à casa.
Após a rejeição, Telma foi entregue a uma mulher branca, que a levou para estudar, mas que fez dela doméstica. Sem qualquer salário, a mulher enviava apenas uma ajuda para os pais. “Se olharmos com os olhos de hoje, podemos falar de uma exploração. E eu acredito que isso ainda existe agora. Se as jovens saem da aldeia e prometem que vão fazer algo por ela, o mais certo é que vá para trabalhar, não vai para conviver com a família, está para o serviço”.
O lado bom de ter ido para a cidade foi ter conhecido o marido atual aos 18 anos, com quem hoje vive na aldeia e com quem tem três filhos, nenhum deles aceite pela avó como se fossem indígenas.
Violência doméstica. “Quando se é indígena jogam uns para os outros e não resolvem”
Marciely Tupari conhece bem a realidade de que Telma fala, a violência sobre as mulheres. Também a viveu na pele apesar de ter menos de metade da idade. Natural da terra indígena Rio Branco, em Rondônia, — onde existem perto de dois mil indígenas Tupari, vive agora em Cacoal, para onde se mudou por fazer parte da Organização estadual as Guerreiras Indígenas de Rondônia.
Garante que entre indígenas sempre houve violência sobre as mulheres e lembra o caso da sua avó: “O meu avô quase a matou, deu com uma espada na cabeça dela e ela tinha uma grande cicatriz, é bem ruim falar nessa parte, porque ela teve uma história bem triste. A minha avó aconselhava a gente a não se casar”.
Só mais tarde viria a entender melhor o conselho, quando viu a mãe a ser agredida pelo pai e, num segundo momento, o seu marido — casou com um indígena Suruí quando tinha 13 anos. “Antes acontecia violência, sim, falar que não acontecia seria uma mentira, porque minha avó passou por isso, mas hoje em dia ela é mais forte”.
Depois da violência física vem a psicológica, conta, porque a pressão em cima da mulher é muito forte: “As pessoas julgam muito. A mulher decide separar-se vai ser sempre julgada. E muitas vezes. Acham que se você casou tem de ficar com ele, aguentar tudo”. E as dificuldades não se ficam por aí, a própria aplicação da lei do país para casos de violência doméstica quando toca a indígenas não é fácil: “A gente sempre fala que a lei Maria da Penha [que estabelece as formas de violência contra a mulher], para nós, mulheres indígenas, não serve. Eu, por exemplo, era casada com indígena e eu sou indígena, morava dentro da aldeia e quando aconteceu de separar, ele levou a minha filha para a aldeia dele e não estava deixando eu ver ela. Então, eu denunciei”. Mas de pouco serviu. Marciely ouviu primeiro que por se tratar de uma terra indígena teria de ser a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a tratar e quando foi à FUNAI “eles falaram que não podiam se intrometer porque ele estava dentro da comunidade dele”.
“Quando se trata de indígenas, eles sempre ficam jogando um para o outro, mas nunca realmente se resolve”, afirma, rematando que “é preciso, mais do que nunca, mostrar que violência não é cultura”. E é também para isso que também veio de tão longe para participar no encontro da COIAB.
A visão de um garimpeiro. “Em 12 horas consegue-se quilo e meio de ouro. Com coca nem sono dá”
Nos últimos tempos a Amazónia tem sido notícia pelos piores motivos. Recentemente ficou a saber-se que só em setembro o desmatamento foi o mais expressivo desde 2015, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Tratou-se de um total de de 1.455 km², praticamente a dimensão da cidade de São Paulo (1.521 km²). E se se tiver em conta o período entre agosto de 2021 e julho de 2022, a área desnatada ascende a sete vezes o tamanho de São Paulo.
Segundo o site da FUNAI — que até à publicação desta reportagem não respondeu ao pedido de entrevista feito pelo Observador — “no Brasil, os povos indígenas compõem 305 etnias, falam 274 línguas e totalizam aproximadamente 897 mil indivíduos (IBGE, 2010)”, além disso, “estão presentes em todas as Unidades Federativas do Brasil e cada povo possui uma cultura própria”.
São muitos os povos indígenas em risco. Antenor Vaz, indigenista brasileiro, da organização Land is Life, entregou recentemente à ONU um relatório onde elenco as várias ameaças às populações indígenas e que passam pelo tráfico de drogas, a falsificação de documentos relativos às terras, a exploração de recursos como ouro e diamantes, construção de infra-estruturas, agronegócio e ainda o turismo não programado.
O papel de Telma e Marciely no encontro da COIAB é exatamente o de dar voz a estas ameaças. A jovem de 23 anos dá mesmo alguns exemplos concretos ao Observador: “Os Munduruku estão neste momento a contas com o garimpo ilegal, que além de tudo ainda está a contaminar com mercúrio a água e os alimentos, como o peixe; os Uru-Eu-Wa-Wa e os Karipuna sofrem com a invasão de grileiros e madeireiros; os Guarani continuam sem ter uma terra demarcada, havendo assassinatos que se suspeita serem levados a cabo por fazendeiros — até uma menina de 13 anos foi recentemente morta; e os Guajajara também têm visto as suas lideranças sempre mortas.
Joel Alan Souza, 44 anos, há muito que trabalha na extração de ouro e aceita falar com o Observador. Neste momento está sem trabalho — desde que deixou a exploração em Rondônia, no Estado do Acre —, mas espera voltar rapidamente. Sabe que o que faz é ilegal, sabe que o que faz é uma ameaça para as populações indígenas. Mas só sabe fazer aquilo para ganhar a vida e nunca teve problemas com indígenas nem foi preso.
“Tudo prejudica o ribeirinho, o mercúrio, o iodo e outros. Tudo o que joga ali dentro vai tudo para o rio. E não é só um nem dois que está jogando aquilo. Aquilo pode causar câncer, para onde a água corre… quem for pegar, vai se dar mal. É um procedimento que eu sei que não é certo e que está a causar um dano”, admite, justificando: “Mas não tinha opção”. “E não é só uma draga [para extrair ouro da água], são milhares”.
Por mês, chegava a tirar 30 mil reais (quase 6 mil euros à taxa de câmbio atual), outras vezes andava nos 10 mil reais (cerca de 2 mil euros). Podia nem ganhar nada, caso não encontrasse ouro. Ali tudo é à lei da bala, não só com os índios, mesmo entre garimpeiros: “Se descobrem que você achou, e há sempre fofoca, todo mundo encosta do lado aqui, vai te expulsando, aí vai dar até bala”. Alan nunca respondeu com armas, nem as tem.
Para que se tenha uma ideia da dimensão, só na terra indígena Yanomami, em Roraima, acredita-se que haja 20 mil garimpeiros a operar, segundo noticiou a BBC Brasil. E a área anual destruída está a crescer. Um garimpeiro publicou muitos dos momentos do dia a dia — desde o cruzamento com índios (que apelida de “imundos”), aos acidentes, passando pelas fugas à polícia, dado que, além de ilegal, o garimpo pode ser punido com pena de prisão.
Marcos Apurinã, candidato não eleito a deputado estadual no Amazonas, ex-coordenador da COIAB e líder do seu povo, destaca “o avanço do rolo compressor diante da floresta Amazónica — sobretudo nos municípios de Lábrea, Tapauá e Boca do Acre”.
“Dentro dos territórios indígenas, nas áreas de conservação, quando eles chegam tudo é bruscamente destruído, ataca-se toda a biodiversidade”, afirma, reforçando: “O povo apurinã está cercado. Ultimamente tem sido atacado nas suas terras, na madeira, no pescado, na caça e também na biodiversidade, assim como nos recursos naturais e mineração.”
“Isso está avançando no dia a dia no sul do Amazonas e é preocupante”, termina, lamentando que “o atual governo, infelizmente, pouco fez para o travar”.
Alan está no polo oposto em tudo, mas também não esconde a sua desilusão com o atual Executivo — que “não ajuda os pequenos, mas os grandes, os que têm dinheiro” —, defendendo até uma mudança de rumo para o país. Mas numa coisa Alan parece estar de acordo com o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro: queria a legalização da mineração em terras indígenas e dizer que garimpeiros não são bandidos. Até pela desregulação atual, defende. “Se tiver alguém de moral mesmo para legalizar garimpo aí, eu gostaria. Porque aí acabava essa bagunça que todo mundo se vê, o garimpo que abriu agora no Japurá. Ouviu falar? Estão fazendo direto…”
A experiência de mais de oito anos de Alan, permite-lhe calcular que é possível em 12 horas conseguir um quilo e meio de ouro — mas são 12 horas sem almoçar nem jantar: “Os garimpeiros quando operam assim pegam num negócio, a coca, acho que deve saber, não é? A folha da Bolívia. Não dá sono, não dá fome”. É para essa vida que Alan quer voltar.
A fuga para alcançar uma vida de novas ameaças
A aldeia onde os Iucuru se estabeleceram quando chegaram da sua terra não era aquela onde estão atualmente — e onde vivem 9 famílias, num total de 70 pessoas. Há uns anos, fizeram um acordo com o povo Apurinã e conseguiu fixar-se numa das terras deste povo em Janauri. A aldeia que ali fizeram, de madeira e palha, não podia ser mais típica e é lá que quando o nível das águas sobe recebem os turistas, na maloca grande. Ali não há saneamento, nem casas de banho.
O contraste entre os Iucuru e os Apurinã é impactante. Estão a poucos metros de distância, mas há um mundo a separá-los. Uns vivem exclusivamente para o turismo, a quem vendem a imagem de uma tradição que se mantém, outros vivem a realidade dura de quem veio para próximo da cidade tentar melhorar a vida. Quase sempre sem conseguir: têm casas em tijolo, mas sem reboco, e as pequenas igrejas evangélicas, construídas estrategicamente, também os afastam, dia após dia, da sua cultura, das suas crenças, dizem.
A saúde é um bom exemplo do que corre mal. Herery Apurinã é turismóloga, vive atualmente nos EUA e está naquela aldeia a visitar familiares. Planeia voltar em breve para a terra indígena de vez e assume-se como uma lutadora pelo direito aos cuidados de saúde. São vários os vídeos que tem no telemóvel de indígenas (a maioria ainda novos) com problemas graves e que terão tido dificuldade no acesso ao serviço de saúde — da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “Não existe, não tem. Está muito largado, está muito ao Deus dará. Está muito largado ao vento. E falta apoio psicológico também. Os índios estão adoecendo não só no corpo, mas na mente”. “Ao longo dos anos vem piorando, mas nessa atual gestão, nós nem sequer somos olhados”, diz, revelando ao Observador estar a batalhar para implementar um programa de telemedicina para responder a casos urgentes e que não possam ser resolvidos pelo pajé, o curandeiro tradicional.
Estes apurinã vieram há décadas para fugir das ameaças e só daqui a uns dias, em novembro, verão reconhecido pela FUNAI o direito a ter a terra nas margens do rio Solimões demarcada — pelo menos foi a garantia dada ao cacique.
Foi um processo demorado mas pacífico. Perto da cidade as ameaças ao direito à terra também existem e nos últimos tempos até receberam dois ofícios de um privado a dar-lhes uns dias para abandonarem a terra a que se habituaram a chamar casa.
Anacuri Apurinã, cacique-geral da aldeia Apurinã de Nova Vila — e também da aldeia dos Iucuru —, ainda hoje não contém as lágrimas quando fala da viagem num barco a remos que durou três meses e meio, entre as margens do Purus e as do Solimões. Era uma criança “na faixa dos 10 anos” e recorda que durante grande parte do caminho a mãe e os irmãos comeram traçará [uma espécie de cágado] com farinha. Os sustos que deu à família — foi mordido por 7 cobras — foram importantes para a decisão, mas pesou muito a falta de condições económicas: “Aqui nós já conseguimos viver até melhorzinho. Lá, até para comprar coisas no regatão [barco comercial que vendia nas aldeias objetos e suplementos vindos das cidades] a gente tinha de trocar pela nossa mercadoria: farinha, leite de seringa. Tudo o que tínhamos era trocado, não aparecia lá dinheiro”, diz enquanto enxuga as lágrimas com os dedos.
É também para evitar vidas e viagens forçadas como esta, que ao lado da Nova Vila — na Vila Nova, que tem um nome quase igual e o mesmo cacique — Liliane Leão, de 37 anos, trabalha todos os dias. Não é indígena nem sabe os povos a que pertencem os seus alunos, mas como professora de educação infantil (alunos de 4 a 6 anos) e dos 3.º, 4.º e 5.º anos de escolaridade tenta — juntamente com outros 3 professores — dar aos cerca de 120 alunos ferramentas para que tenham um futuro diferente.
A escola é de madeira, elevada por causa da subida do nível das águas, e não é exclusiva para indígenas, mas o barco escolar que se afasta ao final da tarde da última quinta-feira reflete o que será a composição da escola: maioria indígena.
“O mais difícil, às vezes, é a fala, porque eles nem sempre conseguem expressar-se igual à gente”, conta ao Observador, lembrando que já teve um aluno que chegou sem conseguir entender o que era dito nas aulas, o que criou alguns problemas. Por outro lado, lamenta a falta de oferta na escola para que as crianças pudessem, além do português, desenvolver as línguas nativas.
Dentro daquelas paredes trilha-se o início de um caminho, mas que já está cheio dos vícios de fora: há bipolarização política — “já tive de separar meninos, porque um era do Lula outro do Bolsonaro” — e, sobretudo, há vergonha por se ser indígena — “É muito lindo eles falarem assim e eu peço ‘meu filho fala um pouquinho para mim’, mas eles têm um pouco de vergonha. Talvez por acharem que alguém vai mangar [fazer pouco] deles”.