Texto e fotografias dos enviados do Observador a Zaporíjia, Ucrânia, Carlos Diogo Santos e João Porfírio
Tudo o que Tatiana possa dizer para explicar o que foram os seus dois últimos meses na fábrica Azovstal não será suficiente: “Parecia que estávamos num grande berço de bebés, sempre a abanar, uma sensação horrível. Com aviões e navios por todo o lado”. Com o tempo, começou a saber identificar, através dos sons e do impacto, o tipo de mísseis, que armas estavam a ser usadas, se era de um avião, ou mesmo a que distância é que estavam. Mas nem isso fez com que começasse a relativizar o risco. Foram dois meses de pânico, sem poder sair da fábrica. Esta terça-feira chegou a Zaporíjia. Ela e mais 126 pessoas, depois de terem saído da fábrica de aço no domingo com uma paragem forçada pelo caminho.
“O momento mais difícil é sempre os bombardeamentos, quando há alguns sons totalmente estranhos do lado de fora, ruídos desconhecidos perto da porta, como se alguém estivesse a tentar forçá-la. Honestamente, nós vamos oscilando. Mas uma vez, eu não consegui manter-me calma, comecei com um momento de histeria, só tinha vontade de dar uma volta, de sair, de deixar aquilo …”, conta. É apenas um dos muitos relatos de quem viveu lá dentro.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o resgate de civis de Azovstal
Iryna Tsybulchenko, 54 anos, estava num outro bunker, com 56 pessoas (só 14 delas conseguiram sair agora), e lembra-se que houve um momento que a marcou ainda mais do que o medo constante dos bombardeamentos: “Foi quando nos disseram que o nosso bunker não aguentaria um ataque direto”.
“Encontrámos Validol (comprimidos para o coração) fora de prazo, tinha acabado em 2013 ou 2014. Achámo-los e tomámos para ficar um pouco mais calmos. Só pensávamos que se transformaria numa vala comum, sabíamos claramente que ninguém viria resgatar-nos, seria impossível”. Não foi.
Os bombardeamentos, de que falava Tatiana, também são descritos por Iryna como um inferno: “Houve um caso em que algumas explosões aconteceram simultaneamente, surgiam uma após a outra… os cães latiam, os gatos parecia que gritavam e as crianças gritavam”.
“É difícil comparar o som com alguma coisa quando nós estamos debaixo de uma espécie de turbina. Nós sentimos que o abrigo onde estamos é como se fosse de gelatina”, insiste Tatiana Protsenko, 25 anos, explicando ao Observador que para ir para o abrigo onde estava tinha de “fazer dois lanços de escadas, fazia um primeiro, depois curvava e havia o segundo”, conta esta engenheira de energia, que trabalhava há três anos e meio na Azovstal.
A comida e as condições dentro da Azovstal
A antiga funcionária da Azovstal explica que num “dia normal” acordavam e havia umas “pessoas que acendiam uma fogueira para ferver água. Depois corriam para o quarto e gritavam ‘a água está pronta’, ‘chá’”. “No início tínhamos um lugar para a fogueira dentro de um dos prédios da Azovstal, mas quando os bombardeamentos aumentaram, decidimos mudar para um lugar perto de escadas no abrigo à prova de bombas”.
Quanto à comida, explica, era sobretudo a que haviam trazido de casa, sendo que a determinada altura “os soldados ucranianos começaram a ajudar”: “Davam-nos coisas como massas, nós costumávamos fazer sopas e quase sempre cozinhávamos apenas uma sopa — havia uma certa mulher que fazia muitas vezes e um dos meninos já a chamava ‘Senhora Sopa’”. A partilha lá dentro, diz, foi fundamental, porque fez com que houvesse sempre comida para todos (pelas suas contas havia 42 pessoas no seu abrigo). A partilha e a neve: tudo melhorou quando começou a nevar, porque puderam começar a usar também a neve como água, “para cozinhar, para lavar as mãos…”
Só houve uma altura em que ficaram mais aflitos. “Quase não tínhamos o que comer e nossos homens cooperaram entre si e fizeram um acordo, foram até um armazém e trouxeram uma determinada quantidade de produtos. E o meu marido — eletricista na fábrica de Illyich — é que lá foi. Durante esse momento explodiu um projétil e, quando um dos homens ouviu o apito, puxou o ombro do meu marido e, no último momento, conseguiram não ficar feridos com a explosão”.
Mas essa comida não vai durar para sempre, explica. Quando de lá saiu eram já poucos os alimentos que restavam: “Acho que não chega nem para uma semana e, desde que eu, o meu marido e os meus pais saímos de lá, já passaram 3 dias”.
Nadezhda, de 18 anos, também acabada de chegar da fábrica, ainda de pé ao lado do autocarro que a trouxe até a Zaporíjia, acrescenta outra preocupação: o maior problema da Azovstal agora são medicamentos, além da comida e da água. “Há mais soldados do que civis agora, mas eles também precisam ser resgatados de lá, há muitos feridos e mortos entre eles. Eles deram-nos comida e água, para que nós pudéssemos cozinhar em fogueiras, construímos camas para nós. Também tivemos sorte porque o nosso bunker tinha água técnica, que deu para, por exemplo, lavarmo-nos — éramos 30 e nossos soldados estavam connosco, tivemos sorte.”
Quem tinha crianças tinha a tarefa ainda mais dificultada. Anna está sentada a tentar comer com os dois filhos na tenda montada no parque de estacionamento montado pela ONU e pela Cruz Vermelha em Zaporíjia quando aceita explicar ao Observador como elas viveram o pânico dos últimos dois meses. No seu bunker havia um total de 9 menores — “uma das minhas filhas era a mais nova, tem um ano e meio, ainda precisa de cuidados e vitaminas que ali não tínhamos”.
“O bunker tinha de estar às escuras a maior parte do tempo, então ela chorava, irritava-se e gritava por causa dos bombardeamentos”, diz, continuando a explicar que ainda não consegue pensar sobre o terror que foi a sua vida até dia 1 de maio: “É difícil lembrar o momento mais difícil, porque cada dia era um desafio, cada dia era uma tortura e tínhamos medo de adormecer, de já não acordar e ficar naquele abrigo para sempre”, diz Anna, 25 anos.
Os critérios de escolha para as pessoas a sair já nesta primeira evacuação foram sobretudo a necessidade de medicamentos, para, por exemplo, a asma, a diabetes, mas também os deficientes físicos.
A difícil estrada até Zaporíjia
“No dia a seguir a deixarmos a Azovstal, senti-me como se estivesse a viajar à volta de toda a Ucrânia”. A descrição é de Vova, uma criança de 13 anos, que mal saiu do autocarro começou a falar com os jornalistas sobre como a viagem até Zaporíjia parecia não ter fim. “Quando fomos parados pelos russos, eles tiraram as roupas às mulheres para verificar se teriam tatuagens e também tiraram os telemóveis das pessoas e registaram as impressões digitais”, diz, detalhando que num dos checkpoints havia duas tendas: “Uma para verificação de tatuagens e outra para verem os telemóveis”.
Enquanto o mundo esperava que os primeiros civis saídos da Azovstal chegassem ao parque de estacionamento de Zaporíjia definido como paragem final do corredor aberto, com a intermediação da Organização das Nações Unidas (ONU), nas estradas estes ucranianos viviam uma saga em checkpoints russos. “No dia 1 de maio saímos da fábrica durante a manhã e fizemos muitas paragens. Finalmente, no fim desse dia parámos em Bezimenne, onde dormimos num acampamento onde fomos revistados pelos russos. No dia a seguir, fomos para Mangush, uma cidade próxima de Berdiansk — lá passámos mais uma noite numa escola”, explica Nadezhda, salientando que “as delegações da ONU e da Cruz Vermelha estiveram com o grupo de civis”: “Não estaríamos aqui se não fossem eles”.
A jovem de 18 anos diz ainda que os russos ainda tentaram demover o grupo de sair para a Ucrânia, dizendo frases como ‘vamos construir tudo’, ‘construir muito melhor do que era antes’, etc”. Ainda em Bezimenne, segundo descreve, as pessoas tiveram de ir à casa de banho com armas apontadas: “Os russos não permitiram que déssemos um passo sem controlo”, diz, garantindo que é “difícil lembrar um único momento mais difícil, porque todas as emoções estão misturadas num único pesadelo”, até as que viveu quando foram retirados da Azovstal, com soldados ucranianos a tirarem o grupo do abrigo e depois os russos escoltarem-nos até ao autocarro: “Os ucranianos e os russos estiveram perto e depois soube que um dos nossos soldados foi ferido durante esse encontro”.
“Não me lembro a que horas da manhã começámos o segundo dia, mas estávamos a ir para Berdiansk durante 14 horas, porque demos uma grande volta. E posso até tentar adivinhar por que é que foi assim: os russos não queriam que víssemos nada ou trouxéssemos qualquer informação”.
Esta terça-feira, porém, Nadezhda sabe a que horas começou a viagem que que terminou naquele parque de estacionamento de Zaporíjia. Eram 6h da manhã em Berdiansk e encontraram muitos postos de controlo: “Eu nem sei porque eles nos pararam, parecia que estavam a brincar”.
Galina Kozak sentiu-se humilhada nas verificações feitas pelos russos durante o percurso. Logo no primeiro dia a verificação “foi humilhante”: “Eram perguntas, tiravam a roupa às mulheres e crianças, procuravam tatuagens. No dia seguinte, andámos muito por Mariupol, não sabemos porquê, chegámos tarde a Berdiansk e passámos a noite na escola”. De repente a mulher, na casa dos 50 anos, interrompe-se antes de contar o que viveu em Mariupol: “Não quero descrever tudo o que vimos lá, só quero agradecer a todos que nos salvaram”, destacando o trabalho da ONU.
Mas nem todas as pessoas chegaram com críticas aos checkpoints russos. Lyuda, por exemplo, diz não ter tido más experiências, descrevendo mesmo o caminho como “tranquilo”: “Paravam e pediam para verificar os documentos, só isso. Ontem recebemos uma mensagem sobre a possibilidade de sairmos hoje. Penso que houve cerca de 5, 7 postos de controle no caminho para Zaporizhzhia”, conta a idosa de 71 anos, uma idade com que as tropas russas são por norma menos agressivas.
Aos 14 anos, Alex já não acredita em planos para o futuro
—“Mariupol ensinou-me a não ter planos para o futuro, porque todos os planos podem ser destruídos por um rocket”.
Alex tem 14 anos, já perdeu o pai, os planos e a cidade. Chegou na manhã desta terça-feira ao parque de estacionamento do Epicentr, uma loja de artigos de construção e bricolage, em Zaporíjia onde se esperava a chegada dos primeiros 127 civis que estavam na fábrica Azovstal. Estava sem grandes expectativas de encontrar alguém conhecido, mas mal o primeiro autocarro parou começou a dizer adeus entusiasticamente: era o amigo Vova, com quem já teve aulas de kickboxing e participou em várias competições, em Mariupol.
“Antes da guerra, Mariupol era muito bonita, a cidade desenvolveu-se muito rápido. Eu estou mesmo triste pelo que os russos fizeram à minha amada cidade”, começa por dizer Alex, pedindo aos jornalistas cuidado quando fossem falar com o amigo: “O Vova deve estar muito stressado agora, não sei se será boa ideia falarem com ele agora”.
Aos 14 anos, Alex tem um passado, de que sente saudades, e um futuro em que não acredita: “Em Mariupol a minha coisa favorita era o tempo que passava com a minha família, com amigos. É difícil entender agora que não há mais Mariupol, que não há mais o meu pai… Que muitos dos meus amigos morreram”. E insiste: “Tudo o que os russos trouxeram foi a morte do meu pai, a destruição do meu apartamento, a destruição das vidas de tantas e tantas pessoas. Trouxeram muita dor e muita tristeza”.
O adolescente saiu de Mariupol ainda antes de a fábrica Azovstal ter começado a ser bombardeada com muita intensidade. Vivia num prédio com 9 andares que foi atingido por dois mísseis. “O primeiro míssil entrou no apartamento e nós estávamos lá (eu, a minha mãe e a minha avó), na altura e o meu pai veio a correr da divisão onde estava para nos proteger e foi atingido por um fragmento do segundo míssil”. Foi no início de março. Nessa altura, Alexa, a mãe, a avó e o gato deixaram o apartamento e foram abrigar-se.
Agora, muitos seguem para casas de familiares ou amigos. Alex vai continuar a sonhar com a sua Mariupol, Nadezhda quer encontrar a tia e alistar-se no exército ucraniano e Tatiana planeia ir para algum lugar mais distante, na Ucrânia — ainda não sabe onde — e agradecer “por estar sob um céu pacífico dentro da Ucrânia”: “Tenho certeza de que um dia o céu se tornará pacífico em todo o território ucraniano”.