Dee é na verdade Denise. A estatura ajuda-a a impor-se em qualquer sala mas é a voz, sonora, bem colocada e acompanhada por um cerrado sotaque britânico, que a torna o centro das atenções no meio de uma multidão. Dee Caffari tem 46 anos e o triplo das histórias para contar. Histórias essas que são meras ilustrações dos recordes: a primeira mulher a navegar sozinha à volta do mundo da “maneira errada”, contra os ventos e as marés, e a primeira mulher a navegar sozinha à volta do mundo nas duas direções.
Filha de um capitão maltês, começou por ser professora até o pai a avisar de que um dia seria “demasiado velha” para cumprir tudo aquilo que ainda tinha para fazer com o desporto que era até então um hobbie. Dee Caffari não tinha sonhos, não tinha objetivos, não tinha planos – “o resto tem sido história”, como a própria diz. Esteve na Volvo Ocean Race 2014/15 com uma tripulação totalmente feminina e voltou à competição em 2017/18, onde foi a capitã da equipa Turn The Tide On Plastic, composta por homens e mulheres, todos com menos de 30 anos (numa tripulação onde estavam os portugueses Bernardo Freitas e Frederico Melo).
Em Lisboa no âmbito do projeto GREAT Speaker Series, uma iniciativa promovida pela Embaixada do Reino Unido em Portugal e pela incubadora britânica Second Home Lisboa, Dee Caffari falou com o Observador sobre o “poder da plataforma desportiva” para divulgar mensagens importantes, o ambiente e a “cronologia” que a maioria dos países europeus está a seguir para eliminar o plástico e o momento mais difícil da carreira, na última Volvo Ocean Race, quando um elemento de outra tripulação caiu ao mar e nunca foi encontrado. E aponta ao futuro, onde quer ganhar uma competição e navegar à volta do Pólo Norte sem recorrer a combustíveis fósseis.
Aos 27 anos, o que é que faz um professora desistir de uma carreira no ensino e dedicar-se à vela a tempo inteiro?
Não tinha qualquer intenção de fazer disto a minha vida. Foi algo que eu nem sequer conhecia. Quando estava na universidade, fiz vela e essa foi a minha primeira experiência no desporto. E pensei logo que era muito divertido, que gostava bastante. Depois acabei o curso, comecei a exercer enquanto professora e a vela ficou um hobbie. Mas muitas vezes, quanto ia praticar, pensava na minha cabeça “oh, aquilo seria fixe”. Na minha cabeça, a minha vida perfeita seria esquiar no inverno e fazer vela no verão – enquanto trabalhava. Mas depois, numa das últimas conversas que tive com o meu pai antes de ele morrer, ele perguntou-me: “Vais continuar a falar sobre isso ou vais fazê-lo?”. Porque eu continuava a dizer tudo aquilo que gostava de fazer e ele disse “bem, um dia vais ser demasiado velha”. E aquilo bateu-me mesmo. Pensei logo que tinha de fazer alguma coisa em relação ao assunto.
Foi aí que sentiu o clique?
A dada altura, fui de férias. Eram umas férias de mergulho e vela: vivíamos num barco, navegávamos de um sítio para outro e depois fazíamos mergulho. E as pessoas que trabalhavam no barco contaram-me como entraram na indústria, o que fizeram e foi a partir daí que comecei a investigar. Esse foi provavelmente o momento em que eu pensei “bem, agora é o momento para o fazer”. Não tinha grandes compromissos, nada que me estivesse a impedir de mudar completamente a minha vida. Investiguei e quando dei por isso estava a despedir-me e a voltar aos treinos. O resto tem sido história.
Tinha algum sonho quando começou? Algum objetivo específico?
Quando comecei a praticar, fiz muitos desportos aquáticos. Windsurf, kayak, dinghy sailing… E quando entramos na indústria começamos a ver todos os diferentes aspetos que ela tem. Abri os meus olhos para um mundo totalmente novo. Percebi o tipo de trabalho que era e pensei que a longevidade da vela seria melhor do que o windsurf ou o surf. Então segui esse caminho. Arranjei um trabalho, o meu primeiro trabalho no meio foi para um britânico, o Mike Golding, e ele já tinha navegado à volta do mundo, já o tinha feito antes. Foi aí que aprendi sobre este estilo de vida muito especial que é navegar à volta do mundo. Nunca tive propriamente um objetivo ou essa ambição de querer navegar à volta do mundo. Trabalhei muito em tudo aquilo que fiz e esforcei-me sempre muito para fazer um bom trabalho. Aprendi sobre este ambiente e vi as oportunidades que existiam e decidi que devia fazê-lo também.
E o que é que a levou a pensar, há mais de dez anos, em navegar à volta do mundo naquela que é considerada a “maneira errada”?
Sir Chay Blyth tinha organizado uma corrida. E ele já tinha realizado essa viagem impossível. Um tipo britânico, ex-militar, que já tinha navegado à volta do mundo naquela que é considerada a “maneira errada”. Ele partiu e ninguém sabia se ele conseguiria fazê-lo ou não. Toda a gente pensou que era louco. Quase um ano depois, regressa bem sucedido e depois decidiu que toda a gente deveria ter essa oportunidade. Então organizou essa corrida, em que as pessoas podiam pagar por um lugar num barco e completar a prova acompanhados por um capitão profissional. A primeira vez que naveguei à volta do mundo foi enquanto capitã nessa corrida. Tinha muitas dúvidas sobre a minha própria capacidade, a minha capacidade de gerir estas pessoas que tinham pago para ter esta experiência. Era a minha primeira vez à volta do mundo, questionava-me muitas vezes sobre se sabia aquilo que estava a fazer. Duvidei muito de mim. Mas foi isso que me levou a depois tentar sozinha. E quando parti sozinha – eu nunca tinha vivido sozinha, nunca tinha navegado sozinha –, despedi-me e desfiz-me a chorar. Foi tudo sobre aquela máxima: “Se alguém o vai fazer, porque é que não hei de ser eu?”.
Essa insegurança é importante? Essa dúvida constante daquilo que somos capazes de fazer?
Eu acho que é saudável. Acho que se pensasse “sim, claro que consigo, eu consigo fazer tudo”, faltava-me o respeito de que preciso quando a minha vida está nas minhas mãos e tudo é muito marginal e assustador. Ter esse elemento de insegurança é o que me obriga a verificar tudo, a trabalhar muito em tudo, a preparar tudo o melhor que consigo. Permite-me aprender com os erros e crescer e tornar-me melhor naquilo que faço. Acho que é saudável. Mas continuo a sofrer: mesmo agora, na última vez em que fui à volta do mundo, como uma capitã mulher num ambiente masculino – era a única mulher capitã –, perguntava-me muitas vezes sobre o que é que estava ali a fazer. “O que é que tenho a acrescentar?”, “vou sentar-me aqui e ouvir as opiniões dos homens”. E tenho sempre de me recordar a mim mesma que nenhum daqueles homens navegou sozinho à volta do mundo. Nenhum deles foi sozinho da maneira correta ou da maneira errada. Tenho todo o direito de estar ali. Mas tenho de ter essa conversa interior, esse diálogo interior comigo mesma, para me dar a motivação de que preciso para levantar a minha cabeça ao invés de me esconder. Desde que não a deixemos controlar-nos, essa insegurança é saudável e obriga-me a verificar tudo.
Qual é a última coisa em que pensa no momento em que parte?
É um sentimento avassalador de não querer desiludir ninguém. Quando me preparo, está muita gente envolvida, investida, muito tempo, muita energia, muito esforço e claro, muito dinheiro para fazer aquilo acontecer. E depois tenho de ir e fazê-lo. E aquilo que não quero que aconteça é que, depois de toda aquela preparação, fazer umas milhas, voltar para trás e dizer que tenho medo. É demasiado tarde para isso. Naquele momento, tenho de continuar e fazer aquilo com que me comprometi. Acredito muito que se o disser em voz alta, tenho de o fazer. Se eu pensar para mim que vou correr uma maratona, posso escondê-lo, guardar para mim e nunca tenho de o fazer. Mas se disser a algumas pessoas, então sou responsável por isso. Quando está no domínio público, eu sou responsável. Tenho de assumir e fazer aquilo com que me comprometi. De outra forma, as pessoas deixam de acreditar em mim.
A responsabilidade de não desiludir os outros é maior do que a responsabilidade de não se desiludir a si mesma?
Sim, acho que sim. Para mim, tem tudo a ver com fazer aquilo com que me comprometi. Aprendi a reavaliar o sucesso e o falhanço, porque é ok falhar, aprendo com os meus erros, não volto a cometer os mesmos erros outra vez. Mas o falhanço, para mim, é por exemplo o barco perder alguma velocidade. É a forma como definimos o falhanço. E para mim é tudo um caminho para me tornar melhor e acho que é por isso que continuo a voltar ao oceano. Para muitas pessoas, uma vez chega. Para mim, todos os dias são diferentes dentro de água e como estou sempre a desafiar-me sinto que estou sempre a aprender e sempre a crescer e a evoluir. Enquanto sentir isso, irei sempre voltar.
Passados tantos anos, o medo ainda está presente? É um elemento importante na preparação?
Acho que sim. E acho que o que acontece é que tudo se torna relevante para a experiência. A primeira tempestade é muito assustadora. E depois sais do outro lado e pensas que nem foi muito mau, sobreviveste, o barco está bem. Aquilo que faço, quando me assusto a sério, é chorar no fim. Porque na altura, chorar não ajuda em nada. Mas depois de sobreviver, é um alívio. E faz-me sentir melhor. Depois vem a próxima e penso que não é tão má como a última. Tudo é relevante para a experiência. Crescemos em confiança. Mas acho que temos noção de que não é fácil, se fosse fácil toda a gente o fazia. Pessoas já perderam vidas, eu já perdi amigos a fazer exatamente aquilo que estava a fazer mas noutro barco. Acho que esse conhecimento é importante: de que é um sítio muito hostil, o salvamento não é fácil e quando as coisas correm mal, correm mal muito depressa. É um medo saudável.
O que é que a levou, em 2017, a aceitar o desafio de liderar a primeira equipa jovem e mista a participar na Volvo Ocean Race, a Turn The Tide On Plastic? Foi devido à mensagem ambientalista? Foi a necessidade de fazer algo mais?
Para mim, foi a plataforma perfeita. Foi quase como se tudo aquilo que eu fiz na minha carreira se juntasse. Fui sempre uma ativista muito forte no que toca à saúde dos oceanos e ao ambiente porque eu tenho noção de que é nossa responsabilidade fazer mudanças. Não é uma coisa para passar de geração em geração. Agora é o tempo. Se não fazemos alguma coisa, vai ser demasiado tarde. Quando se junta isso a uma equipa jovem, principalmente tendo em conta que eu fui professora, foi muito bom dar força e abrir os olhos e a imaginação da geração mais nova, para verem o que está lá fora. Ter uma equipa jovem, em que todos tinham menos de 30 anos e nunca tinham navegado à volta do mundo, faz com que a comunicação dessa mensagem sobre o ambiente seja realmente genuína. Eles querem marcar a diferença e ser a diferença para os filhos deles. Criou-se uma sinergia muito boa. E depois, por fim, sempre estive neste meio dominado por homens e batalhei para conquistar o meu lugar. E se conseguir ajudar a fazer a diferença ou inspirar ou abrir portas a mais mulheres, com mais confiança, então ótimo. E quando se combina tudo isso num projeto, foi perfeito. Foi uma responsabilidade gigantesca porque quando se faz a Volvo Ocean Race, normalmente paga-se para ter a melhor tripulação e a melhor chance. Mas gosto de desafios. Por isso adaptei-me, estava muito nervosa quando começamos mas adaptei-me e agora, em reflexão, foi um dos melhores projetos em que participei. Ainda mantemos contacto e vou estar lá para os apoiar em tudo aquilo que eles queiram fazer no futuro. Quando os vemos crescer à frente dos nossos olhos ao longo de um ano, sentimo-nos muito orgulhosos. Eu era uma mãe orgulhosa.
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A experiência enquanto professora ajudou-a a gerir a tripulação da melhor forma?
Quando estamos na escola, normalmente os miúdos não querem ouvir aquilo que temos para dizer. Quando estamos num barco, inevitavelmente cada um deles vai ter as suas próprias ideias. E estou ali a tentar tirar o melhor daquela equipa que formei. Adoro uma frase, acho que foi o Steve Jobs que disse: “Para quê contratar os melhores para depois lhes dizer o que fazer?”. Tudo aquilo, para mim, tinha a ver com dar-lhes força e responsabilidade. O acordo era: “Estamos a fazer isto assim mas será que conseguimos fazê-lo de forma diferente e será que conseguimos fazê-lo melhor?”. De repente, eles perceberam que importavam, que eram valorizados e que podiam experimentar coisas. Eles estudavam os vídeos e as fotografias e os outros barcos e apareciam sempre com ideias novas. Era revigorante ver esse tipo de entusiasmo e gerar aquele tipo de energia. Era uma arena ótima para se estar. Tínhamos de trabalhar como um todo para tirar o melhor de cada um e não deixar ninguém para trás. Eu era inevitavelmente responsável por gerir toda a gente e juntar toda a gente. Todos têm mais valias e todos têm fraquezas. E a ideia não é jogar só com as mais valias, é tentar eliminar as fraquezas para não existirem vazios e assim seguirmos em frente todos juntos. É preciso criar essa rede de apoio. É como quando estamos a ensinar matemática, por exemplo: estão todos a aprender matemática mas cada um está num nível diferente. E temos de gerir essa turma entre os excecionais e brilhantes e aqueles que estão em dificuldades. Para que, todos juntos, sigam em frente. E é o mesmo num barco. E acho que é por isso que o faço.
Acabou por conseguir ter o melhor dos dois mundos.
Sim! Adorei este projeto. E acho que a maioria dos marinheiros que conheço, os meus amigos, não teriam aceitado. Tinha um orçamento muito pequeno, foi criado muito em cima da hora, não havia experiência…era uma responsabilidade gigantesca. E éramos as Nações Unidas, tínhamos 10 nacionalidades envolvidas. E adorei. E perguntavam-me como é que tinha conseguido e explicava que foi como se todas as minhas mais valias se tivessem juntado naquele pacote. Trabalhei a vida toda para este projeto e nem sabia disso até que ele apareceu.
A responsabilidade dos marinheiros, dos capitães, dos membros das tripulações, é acrescida no que toca à poluição dos oceanos?
Enquanto marinheiros, enquanto pessoas que têm o oceano enquanto escritório, é nossa responsabilidade agir e mudar e fazer anúncios. O que me maravilhou foi o poder de uma plataforma desportiva. Percebi que o desporto – seja qual for a modalidade –, tem um alcance muito maior do que as outras áreas. Os cientistas, normalmente, falam sobre ciência com as pessoas da ciência. Os ambientalistas falam com um grupo muito específico de pessoas que está interessado. Mas o desporto, por outro lado, atravessa gerações, atravessa géneros, atravessa religiões, atravessa tudo. E tem um alcance muito maior pelas razões certas. Isto, acrescentando uma tripulação jovem, com homens e mulheres, a passar a mesma mensagem, foi mesmo uma forma muito boa de o fazer. O que nós subestimámos foi o impulso e a força dessa mensagem ao longo do ano em que navegámos à volta do mundo. E acho que, genuinamente, todos nós continuamos a espalhar essa mensagem. Não foi só o projeto de um ano e depois fomos todos embora. Lembro-me de que o anúncio foi feito em Alicante enquanto ainda estava a voar para lá e pensei automaticamente: “Meu Deus, nunca mais vou poder comprar uma garrafa de água”. 12 meses depois, a verdade é que nem sequer consigo fazê-lo. Prefiro passar um bocadinho de sede do que sucumbir e comprar uma garrafa de água e ir contra tudo aquilo por que andei a batalhar durante um ano. Eu sei que é difícil mas para ser autêntico tenho de praticar aquilo que digo.
Portugal aprovou recentemente um projeto de lei que indica que em 2020 todos os sacos de plástico utilizados para comprar pão, fruta e vegetais serão banidos. Acha que estamos à frente da maioria dos países da Europa? Ou ainda estamos atrás?
Acho que quase todos os países estão na mesma espécie de cronologia mas em sítios diferentes. O que me surpreende são alguns sítios aleatórios, como um país em África, já terem banido os sacos de plástico. Como é que eles já o fizeram quando o mundo ocidental, supostamente mais moderno, não o faz? Nós ficamos aterrorizados com a mudança, temos medo de assustar as pessoas. Lembro-me sempre das campanhas mundiais para diminuir o número de fumadores. Acabaram por ser usadas medidas de choque, como as imagens terríveis nos maços de tabaco. Mas teve de ser feito para chegar ao outro lado. E acho que estamos a chegar a esse ponto. Vivemos em países em que não temos de comprar água engarrafada para beber, não é preciso. Mas todos os fazemos, porque tornou-se moda beber mais água e andar com a garrafinha na mão. Enquanto público geral, nós temos o poder mas acho que não nos apercebemos disso. Se queremos mudança, podemos exigi-la. Se nos recusarmos a comprar essas garrafas, essas empresas terão de pensar de forma diferente e talvez patrocinar fontes de água onde as pessoas podem encher as garrafas. Vão ter de pensar de forma criativa e é isso que precisamos de fazer. Mas leva tempo e toda a gente tem essa agenda mas está num sítio diferente na cronologia. As pessoas estão a começar a perceber que as coisas pequenas podem ser gigantescas. A mudança é muito difícil. Os hábitos estão demasiado enraizados.
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O que é que ainda lhe falta fazer?
O problema é que continuo a ir à volta do mundo porque o faço cada vez melhor. Ou porque continuo a aprender novas formas de o fazer melhor. E penso sempre no que faria com um orçamento maior ou mais tempo. Mas ainda não ganhei. Ainda não ganhei uma prova. Isso ainda está na minha lista. Mas agora também estou muito dedicada ao poder que a plataforma desportiva me deu enquanto mensageira de algo muito importante. A questão do plástico está mesmo a ser discutida e ainda é um grande problema mas está a ser impulsionado. E outra situação que está a ganhar força e que eu acho que as pessoas ainda não perceberam são as alterações climáticas. Há muita conversa mas é como era com o plástico no início: “Sim, mas como é que isso me afeta?”. Investiguei e acho que no próximo ano posso fazer um projeto ambientalista e navegar à volta do Pólo Norte para provar que o degelo está a acontecer. E usá-lo também enquanto plataforma para investigações científicas. E vou tentar fazê-lo sem combustíveis fósseis. E isso ainda não foi feito. Por isso ainda nem tenho bem a certeza se pode ser feito. Mas o poder de usar o desporto para agregar tantas mensagens é muito forte e muito valioso e seria ótimo se pudesse fazer isso na minha próxima ida à volta do mundo.
A pergunta é cliché mas tem sempre de ser feita: qual foi o momento mais difícil desde que começou a navegar à volta do mundo?
Esse momento mudou desde a última vez que fui à volta do mundo. Na Volvo Ocean Race, estávamos a navegar desde Auckland, na Nova Zelândia, até Itajaí, no Brasil. Estávamos no Pacífico, perto de Cabo Horn. E quatro dias antes de chegarmos ao Cabo surgiu a mensagem de que um membro de uma tripulação de um outro barco tinha caído ao mar. Naquela altura, estávamos a dois terços da viagem, conhecemo-nos todos muito bem, é uma comunidade muito pequena. Não tivemos notícias durante muito tempo. O Pacífico é gelado, as temperaturas são de congelar e eu só pensava que se perdesse alguém da minha tripulação naquele momento não existiria qualquer possibilidade de salvamento. A chance de salvamento é ínfima. E quando não há notícias, sabemos que não é bom. Eu sabia que tinha responsabilidade sobre aquela tripulação mas também sabia que eles estavam a fazer exatamente a mesma coisa no mesmo sítio em que o colega caiu. É muito difícil. Essa pessoa nunca foi encontrada e perdeu a vida. Tive de lhes dizer que um dos amigos deles tinha perdido a vida. E não sei se foi consciente ou inconscientemente mas o barco, durante 24 horas, não navegou tão rápido. Acho que toda a gente estava a lidar com as suas próprias emoções. Foi um dia emotivo mas a equipa acabou por ficar ainda mais próxima, todos cuidavam uns dos outros, todos apoiavam os outros um bocadinho mais. Quatro dias depois, passámos o Cabo Horn e eu nunca tinha estado tão emocional naquele sítio. Os rapazes estavam a tirar fotografias, a fumar charutos, mas acho que só senti alívio. Alívio por ter conseguido chegar ali e por já estarmos do outro lado. Porque assim que passamos Cabo Horn, mesmo psicologicamente, o clima fica mais quente, o salvamento fica mais próximo e tudo se torna mais fácil. Para mim, esse foi um grande momento e fiquei surpreendida com o quão emocional fiquei. Mas até àquele momento, para mim, perder a vida no mar era algo que acontecia às outras pessoas, não acontecia nas coisas que eu fazia. E de repente estava muito perto. E isso fez muita diferença em todos nós.
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Começou a olhar para aquilo que faz de outra forma?
Acho que tive noção de que quanto mais me exponho, maior se torna o risco. Eventualmente, vai tocar-me a mim. E já estive lá fora muitas vezes por isso tenho de começar a ter mais cuidado. Mas também me recordo de que todas as regras que sigo resultam e todas as atitudes de segurança que tenho funcionam, o que significa que estou num bom sítio no que toca à forma como giro o barco.
E como é que explica à família e aos amigos que vai navegar completamente sozinha à volta do mundo durante cerca de um ano?
Pois… É sempre interessante, não é? Acho que os meus cães são mesmo os que sofrem mais, um deles tem nove anos e tenho-o desde as 12 semanas e já passou por três voltas ao mundo. É difícil e é muito complicado para as pessoas que deixamos para trás. Porque eu sei o que estou a fazer e sei como me sinto, eles não. Mas acho que se habituaram entretanto e que já estão à espera de que eu vá e faça algo louco. Quanto a mim, por exemplo, estou assustada com este desafio do Pólo Norte porque é o desconhecido. Dar a volta ao mundo, para mim, já se tornou normal, já sei o que esperar e já sei como vai ser. Tenho de me desafiar. Gosto de chegar a um ponto em que não estou confortável e é aí que me entusiasmo mas tenho noção de que é mais difícil para quem fica em terra.