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O lançamento de um passe nacional ferroviário a metade do preço do atual e alargado às ligações de longo curso foi um dos soundbites que ficou do discurso do primeiro-ministro na reentrée política do PSD, no Pontal.

Mas além do preço (20 euros mensais) e da cobertura (todos os serviços da CP com a exceção dos alfa pendulares), quase tudo ficou por explicar sobre como vai ser operacionalizada a medida, e há dúvidas sobre a sua eficácia para além de uma mensagem “eficaz na comunicação, mas que não resolve o problema”, avisa José Manuel Viegas, especialista no setor dos transportes que deixa ainda outros avisos: pode servir apenas para gastar mais dinheiro e criar uma degradação do serviço “provavelmente muito forte”. O ex-secretário-geral do fórum internacional de transportes da OCDE descreve o novo passe “como uma medida de impulso — como a compra de um gelado” –, que não terá resultados se não se investir na melhoria do serviço com mais frequências de comboios e, sobretudo, maior fiabilidade.

Até o “pai” do passe ferroviário nacional, o coordenador do Livre aponta riscos. A “ideia é boa para o país, para a coesão e para a ecologia”, afirmou Rui Tavares à rádio Observador. Mas se o anúncio feito por Luís Montenegro mostra que a ideia “veio para ficar”, é fundamental assegurar que a CP será compensada — tem de ser o Estado a subsidiar o passe — e que os comboios não fiquem vazios porque as pessoas aproveitam o preço baixo para reservar lugares em serviços de longo curso que depois não usam.

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O que foi anunciado?

Um passe ferroviário de 20 euros mensais que dará acesso a todos os comboios urbanos, regionais, inter-regionais e intercidades. A medida revoga o passe ferroviário de 49 euros que passa a ser de 20 euros em todos os comboios ao serviço da CP, nomeadamente no intercidades. De fora fica o serviço no Alfa Pendular. Por outro lado, alarga-se ainda a zonas não abrangidas pelos passes intermodais, refere um curto esclarecimento remetido pelo Ministério das Infraestruturas ao Observador.

Quando entra em vigor?

O passe estará incluído num “plano de mobilidade” a apresentar em setembro. O Ministério das Infraestruturas não esclarece o calendário da sua operacionalização, mas há a ideia de que poderá ser ainda este ano.

O novo passe só serve para a CP? E os passes combinados? E a Fertagus?

Só são abrangidos os serviços da CP, daí que se mantenham os passes intermodais, de 30 e 40 euros que combinam os comboios suburbanos com outros meios de transporte como o metro e autocarros. Da mesma forma, a Fertagus, operador ferroviário privado do serviço entre as duas margens do Tejo (Lisboa), fica de fora, ao contrário do que acontece com os serviços suburbanos da CP. A maioria dos clientes da ferrovia precisa de um outro meio de transporte para completar o trajeto, pelo que, embora abrangidos, o novo passe não deverá ter grande efeito nas ligações suburbanas.

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O que distingue este passe ferroviário do que já existe?

O preço e os serviços abrangidos. Os 20 euros mensais correspondem a menos de metade do atual preço de 49 euros. O novo passe poderá ser utilizado, de acordo com o que disse Luís Montenegro, em todos os serviços da CP com a exceção do Alfa Pendular. Ou seja, poderá ser utilizado nos comboios regionais, inter-regionais, suburbanos e intercidades. O passe que operou desde agosto do ano passado era apenas para os serviços regionais.

Mas o passe ferroviário não foi já reforçado este ano?

O Orçamento do Estado para 2024 previa uma extensão do passe a outros serviços, por proposta do Livre que foi aprovada pelos socialistas então no poder. Esta proposta mantinha o preço de 49 euros mensais, mas alargava a sua abrangência aos comboios inter-regionais e a alguns trajetos do intercidades:

  • Viana do Castelo/Barcelos/Famalicão/Braga;
  • Famalicão/Trofa/Santo Tirso/Guimarães
  • Coimbra/Figueira da Foz
  • Castelo Branco/Fundão/Covilhã/Guarda
  • Beja/Casa Branca/Évora
  • Tunes/Loulé/Faro

Segundo explicou à rádio Observador Rui Tavares, esta ampliação correspondia a 250 comboios por dia, face aos 100 comboios diários contemplados no passe criado em 2023.

O alargamento do passe foi proposto pelo Livre e aprovado com o PS. E foi aplicado pela AD?

Não. O alargamento deveria ter entrado em vigor em julho. Quando foi questionado no debate parlamentar recente sobre o tema (pelo Livre), o primeiro-ministro admitiu que esse prazo não ia ser cumprido, mas sinalizou que seria concretizado a muito curto prazo. Depois de se ter abstido na votação em sede de Orçamento do Estado para 2024, na votação na especialidade desta medida, o PSD, já este ano (a 3 de julho na generalidade) e já no Governo, votou contra um projeto de resolução do Livre, que pressionava o Executivo de Montenegro a avançar com a medida, recordou Rui Tavares. “Agora parece convencido pela ideia” que considera ser “boa para o país, para a coesão e para a ecologia”. Se por acaso esta ideia for “roubada” pelo Governo, Rui Tavares diz que o partido insistirá em outras ideias, como a criação de um passe multimodal nacional, cuja avaliação também estava prevista na proposta aprovada no Orçamento que permitia cobrir a grande parte do país excluída de comboios. “Vamos insistir em 2025”, afirmou à Rádio Observador.

Que outras condições deviam acompanhar o alargamento do passe?

O passe ferroviário defendido pelo Livre estava associado a uma aplicação faseada da medida que permitisse ir avaliando os efeitos no tráfego e na CP para “não dar um passo maior do que a perna”, explicou Rui Tavares no Programa Direto ao Assunto. Para tal, estavam definidas duas condições: a de que a CP seria compensada pela perda de receita através do contrato do serviço público. E que o alargamento do passe fosse acompanhado do reforço do serviço ferroviário (mais oferta) e investimento na renovação de material circulante.

Rui Tavares: “OE deve ficar muito diferente da versão inicial”

Essas condições foram cumpridas?

Pela informação que foi até agora tornada pública, não. Em 2023, entre agosto e dezembro, a CP vendeu 13.400 passes, mas não recebeu qualquer compensação no ano passado por essa implementação, de acordo com o relatório e contas do ano passado. A CP não indica quanto perdeu com a venda desses passes, que geraram um proveito de pouco mais de 600 mil euros, nem responde ao pedido Observador para avançar dados mais atualizados sobre venda de passes em 2024 e eventuais compensações. O reforço do serviço ferroviário depende de mais capacidade de oferta e do investimento em infraestrutura e material circulante, condições que demoram tempo a executar.

Quanto custa e quem paga?

Ninguém arrisca avançar um valor num cenário de passe mais barato e alargado a mais serviços, até pelas várias interrogações sobre a medida. Mas o coordenador do Livre e José Manuel Viegas concordam que tem de ser o Estado a pagar a conta. O consultor não concebe um cenário em que o Estado não reembolse a CP. “Não pode não haver compensação porque isso seria desonesto. Se quisermos levar a sério o contrato de serviço público, o Estado não pode forçar mais preços subsidiados sem compensar a empresa”. E, se não o fizer, a CP “tem de por o Estado em Tribunal, se não o contrato é uma treta”. É no pressuposto de que essa compensação será feita que o especialista admite que a medida possa trazer mais receitas à CP.

Quais os riscos?

Rui Tavares aponta dois: a descapitalização da CP se a empresa não for compensada da perda de receita. Na proposta do Livre “ficou claro que a CP seria reembolsada pelos valores perdidos pelo uso do passe. A aplicação gradual permitiria perceber o impacto orçamental e não dar um passo maior do que a perna”. O outro risco é o “dos comboios ficarem vazios“, isto no caso de muita gente aproveitar o preço barato para comprar passagens, reservando lugares, que depois acaba por não usar, impedindo a CP de os vender a clientes sem passe e a um preço de mercado. O deputado e coordenador do Livre defende a aplicação de uma taxa de reserva, ainda que barata, para garantir que os lugares reservados por detentores do passe são efetivamente usados. O especialista e consultor de transportes, José Manuel Viegas, alerta que essa taxa não pode ser muito baixa (por exemplo 50 cêntimos, contrapondo com 5 euros) para atingir o efeito pretendido.

José Manuel Viegas vai mais longe na materialização dos riscos sinalizados pelo coordenador do Livre. Lembrando que o intercidades é atualmente um serviço lucrativo em determinadas ligações para a CP (só algumas são subsidiadas pelo Estado), considera que a generalização do passe a toda a oferta neste segmento “vai criar degradação de serviço provavelmente muito forte em alguns horários e trajetos que andarão cheios. No eixo Lisboa-Porto, este passe vai “canibalizar a procura pelo Alfa Pendular” (o único serviço excluído do passe e que é lucrativo para a CP). “Não faz sentido”, remata. E deixa um aviso: “Todo o dinheiro que se vai gastar nestas borlas é menos que fica disponível para fazer investimentos”.

Rui Tavares aponta ainda para a falta de diálogo do Governo para calibrar a medida e que pode gerar os riscos já identificados.

Vai funcionar?

A medida é defendida pelo Governo numa lógica de promoção da coesão social e territorial, sem mais fundamentação. Rui Tavares também alinha nestes motivos e considera que é importante que o passe seja até mais barato porque permite maiores poupanças. O passe que está em vigor desde 2023 (sem o alargamento) permitiu aos utilizadores poupanças entre 70 e 80 euros mensais, refere o coordenador do Livre. Mas que seja público, não foram feitos estudos de mercado ou avaliações do impacto no mercado. Nem o Governo nem a CP responderam às perguntas do Observador.

O especialista do setor de transportes é mais cético. “Estamos a presumir que o preço é um fator decisivo na escolha dos modos de transportes. Tenho dúvidas”, diz José Manuel Viegas para quem os 49 euros por mês já eram um preço muito barato. Num cenário que incluísse serviços de maior distância já permitia a uma pessoa viajar de ida e volta todos os fins de semana. Ao reduzir para 20 euros, “perde-se receita e gasta-se mais dinheiro (a subsidiar a CP)” e não há garantia de que vá atrair mais passageiros. Isto porque, defende, o maior problema na opção ferroviária é a qualidade do serviço. “Enquanto as pessoas sentirem que não podem confiar no sistema, é a fingir“, afirma. Sem maior cobertura de rede, uma frequência acrescida de comboios e uma fiabilidade no serviço (que é ameaçada por supressões e greves), a medida não terá o efeito pretendido, avisa.

Que outras experiências existem na Europa?

O caso mais conhecido é o da Alemanha que introduziu um passe nacional ferroviário em 2022, com um preço excecionalmente barato de 9 euros mensais como resposta à escalada da inflação e da subida dos custos de transporte.

Super-passe de 9 euros por mês permite viajar por toda a Alemanha em comboio

Atualmente a Deutsche Bahn comercializa um passe de 49 euros mensais para circulação em todo o país do qual estão excluídos os comboios de alta velocidade. Foram vendidos 11 milhões destes passes no ano passado, mas, segundo um estudo citado por José Manuel Viegas, cinco milhões destes compradores transitaram de outros tipos de passes e outros cinco milhões já usavam o comboio, pagando bilhetes. Logo, apenas um milhão dos utilizadores veio do automóvel.

Em França foi estudada uma solução similar, mas não avançou porque se concluiu que seria muito caro e pouco eficaz em atrair mais passageiros. E estes dois países têm uma rede ferroviária cujo nível de cobertura e de oferta são muito superiores à nacional.

Espanha implementou temporariamente um passe gratuito no período pós-pandemia para reconquistar passageiros. A Hungria lançou mais recentemente um passe de 50 euros mensal.