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Steve McCurry

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Paul Theroux: "Li o 'Viagens na Minha Terra' e decidi viajar pelo meu país"

O célebre escritor de viagens está desiludido com os seres humanos e ao mesmo tempo fascinado com o rumo do mundo. Antes de uma visita a Lisboa em setembro, conversou com o Observador.

Será sempre reconhecido como o autor de A Costa do Mosquito, romance de 1981 adaptado ao cinema por Peter Weir (o mesmo realizador de “O Clube dos Poetas Mortos” e “Truman Show”). Foi com esse livro que conheceu a primeira tradução em Portugal, em 1987, duas décadas depois de se ter estreado na escrita. Mas é noutro registo, o da literatura de viagens, que lhe reconhecem os maiores créditos – e também aí chegou às edições portuguesas com atraso: a partir de 2008, através da editora Quetzal. O Grande Bazar Ferroviário ou O Velho Expresso da Patagónia são apenas dois dos mais célebres títulos que assinou.

É com base nessa longa experiência de viajante que vem falar a Lisboa a 15 de setembro, na conferência “O Futuro do Planeta”, organizada no Teatro Camões pela Fundação Francisco Manuel dos Santos pela Fundação Oceano Azul. A iniciativa que pretende “debater soluções urgentes” acerca da chamada crise climática e Paul Theroux, que considera os humanos uma “espécie invasora”, não terá boas notícias para dar.

Ao telefone a partir do Massachusetts, estado americano onde nasceu há 78 anos, Paul Theroux falou-nos das lições que aprendeu em África, das críticas que a mãe lhe fazia, da mudança social através de manifestações e revoluções. E do novo livro que sai em outubro. A conversa durou quase uma hora. Já com o gravador desligado, o escritor aproveitou para perguntar qual o melhor vinho verde que se faz em Portugal e ainda partilhou episódios sobre as viagens que fazia a Moçambique na década de 60. Descrevem-no muitas vezes como pessimista e pouco sociável, mas, se é, não pareceu muito.

Fala-se cada vez mais sobre alterações climáticas, todos temos uma opinião, mas parece que estamos sempre a adiar soluções. Será assim?
Sem dúvida. Toda a gente sabe qual é o caminho. Para preservar o planeta, temos de ter em conta a maneira como vivemos, aquilo que comemos, a forma como utilizamos o automóvel e como viajamos. Toda a gente sabe. Simplesmente, nada acontece enquanto não houver uma crise a sério. As crises é que levam as pessoas a agir. Sabemos que não há água suficiente no planeta, não há comida suficiente, não há combustível. Precisamos de reconhecer que os humanos são uma espécie invasora, tal como outras espécies animais que consideramos invasoras e que até provocam menos danos ao planeta do que nós.

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O facto de sermos uma espécie inteligente não anula essa crítica?
Sabe, muitas vezes a nossa natureza animal é mais forte do que a inteligência. Os seres humanos comportam-se como animais na maior parte das vezes e demonstram até uma sensibilidade mais reduzida do que outros animais. Os humanos têm inteligência, empatia, compaixão, mas também violência e ganância, características que nos tornam criaturas meramente instintivas. Ou seja, é a nossa natureza animal e não a inteligência que me leva a dizer que somos uma espécie invasora. Sabe-se muito bem o que é preciso fazer para salvar o planeta, mas nem todos se deixam convencer, muitos nem se incomodam com o assunto. Assisti a estas grandes mudanças ao longo da minha vida: às alterações climáticas, ao crescimento da população mundial, ao aumento da poluição. No fundo, tudo aquilo que temíamos no passado tornou-se realidade. Uma das vantagens de envelhecer, ou de ser velho, é que vemos a história como um todo, compreendemos a evolução das coisas, basta a observação empírica. Não sou cientista, sou escritor, viajante, romancista. Mas já vivi o suficiente para perceber o problema em que estamos metidos.

Paul Theroux nasceu em 1941 em Medford, no estado americano do Massachusetts

Está muito desiludido?
Estou, estou. Comecei por trabalhar em África em 1963, dava aulas num país chamado Niassalândia, que agora é o Malawi, ao lado de Moçambique. Na verdade, cheguei a comprar vinho verde junto à fronteira com o Malawi, numa cidade chamada Vila Cabral [atual Lichinga]. O Malawi tinha cerca de três milhões de pessoas naquela época, agora tem 19 milhões. Era autossuficiente, tinha alimentos para todos, o governo era recente, isto na altura da independência [1964]. Passaram-se 56 anos e o país é hoje um estado falhado. Não era, quando se tornou independente do Reino Unido, mas tornou-se. De certa forma, a minha experiência em África serve-me para entender o futuro do planeta, porque vejo o que aconteceu em termos culturais, sociais, políticos, a nível da agricultura, da autossuficiência. Para responder à sua pergunta: estou desiludido, esperava mais. Fui um professor idealista, não me arrependo, e ainda hoje me considero um radical. Há quem se torne conservador, com a idade, não é o meu caso. Hoje sou tão radical como sempre fui ou até mais.

Dizem que sempre foi um pouco pessimista.
Muitas destas coisas que descrevi já estavam presentes no meu espírito quando era novo. Sou escritor e viajante, desejei ver o mundo, compreender o mundo, ver cada vez mais. É por isso que quero viver mais anos, para poder ver o que vai acontecer. Estou desiludido, mas também fascinado. É como quem observa formigas ou outros seres mais pequenos que nós: embora tudo o que se passa no planeta me preocupe, estou ao mesmo tempo distante de tudo. É um fascínio que tenho.

No fundo, continua a ser o mesmo observador que sempre foi.
É isso. Sou escritor e, como escritor, observo. Sinto-me implicado, mas é como se visse de longe. Não sou político, não sou ativista, não tento mudar o mundo por essa via, vejo-o apenas como ele é. Talvez seja um ponto de vista egoísta, mas foi isso que me permitiu escrever. Não estou isolado, sinto-me genuinamente preocupado com o mundo, mas estou como observador.

[Trailer de “A Costa do Mosquito”, 1986:]

Disse agora que continua a ser um radical. Em que sentido?
Um radical sabe que, muitas vezes, os outros só entendem o que queremos dizer se tomarmos uma atitude drástica. As atitudes drásticas nem sempre têm de ter origem na esfera política, podem passar pelo confronto direto com o poder. Muitas mudanças no mundo ficaram a dever-se ou a revoluções ou a confrontação. Quando era estudante, achava que haveria sempre formas pacíficas de mudar o mundo, mas agora acho que não. Veja-se o que está a acontecer em Hong Kong ou na Venezuela. São ações radicais. Há quem veja aquelas pessoas como meros agitadores, não me parece que seja o caso. É por isso que admiro tanto os zapatistas de Chiapas, no México. As terras dos camponeses de Chiapas estavam a ser-lhes retiradas pelo governo mexicano e eles resistiram. Hoje os zapatistas gerem escolas e hospitais e não matam civis.

E a parte da sociedade que não se revê nas mudanças drásticas?
Sempre foi assim. Nos anos 60, começou o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos. Confrontaram a polícia, confrontaram o governo, exigiram direitos, integração, mudança. Havia velhos, homens, mulheres e miúdos a protestar. Não mataram ninguém, eles é que estavam a ser mortos. Sem estas manifestações, tudo teria ficado na mesma. Eu também lá estive, protestei frente à Casa Branca contra o presidente Kennedy, a favor dos direitos civis para todos e contra as armas nucleares. A minha família estava contra, mas eu fui para Washington participar nas manifestações e hoje faria tudo outra vez. Claro, há sempre quem não queira a mudança, mas a vida é assim. Aliás, acho que hoje há poucas manifestações. Quando o presidente Trump foi esta semana ao Ohio e ao Texas, para dar condolências às famílias das vítimas dos tiroteios, deveria ter sido recebido com gigantescas manifestações. O discurso dele é que está por detrás de muitos atos de violência.

"A minha mãe odiava os meus livros, sempre disse que a minha escrita era péssima, sempre, até que deixou de me ler. Paciência. Ela cresceu num contexto diferente do meu. Fui um jovem rebelde e ainda hoje sinto uma certa rebeldia."

Na televisão vimos manifestações bastante fortes.
Não chega, não chega. Deveriam ter lá estado 10 mil pessoas, deveriam ter ocupado o aeroporto. Acho inacreditável que ele tenha ido oferecer condolências que não são sinceras. Mas, enfim, não gostaria de me alongar em considerações sobre Trump.

Os americanos tornaram-se conformistas?
Isso acho que não. Mas já que estamos a generalizar, deixe-me dizer: as zonas mais ricas do mundo são hoje muito mais ricas do que há 50 anos e as zonas mais pobres são mais pobres. Não acho que haja conformismo, simplesmente, quem vive na parte rica do mundo não entende a pobreza dos outros, a disfuncionalidade do resto do mundo. Talvez as pessoas não viajem o suficiente, talvez viajem para os lugares errados. Há um grande mal-entendido. É inacreditável a exploração a que sujeitámos o chamado terceiro mundo. Metade do mundo vive na pobreza, ou talvez mais. Angola é um bom exemplo, totalmente disfuncional. O país tem muito petróleo, Eduardo dos Santos esteve no poder durante quase 40 anos, com o governo era totalmente corrupto. O país tem recursos, mas o povo é pobre e agora está a ser explorado pelos chineses. É outro dos fenómenos atuais, a China como poder imperial em todo o mundo. Estão a dominar muitos países africanos. Vivemos tempos muito sinistros e, como digo, ando preocupado e ao mesmo tempo fascinado.

Que poder tem a escrita?
Pode inquietar os outros, porque o escritor está numa posição de poder. A minha mãe costumava perguntar: “Paul, porque é que não escreves coisas alegres? Porque é que não escreves alguma coisa agradável que eu possa mostrar aos vizinhos?” Ela não gostava dos meus livros, considerava-os muito negativos, mas eu escrevia o que achava que tinha de escrever.

Que resposta lhe dava?
Dizia-lhe que aquela era a minha visão do mundo. A minha mãe odiava os meus livros, sempre disse que a minha escrita era péssima, sempre, até que deixou de me ler. Paciência. Ela cresceu num contexto diferente do meu. Fui um jovem rebelde e ainda hoje sinto uma certa rebeldia. Do ponto de vista material, sou um privilegiado, o meu trabalho é valorizado, por isso, não tenho nenhuma raiva em particular que precise de alimentar, não tenho ressentimentos.

"O turismo está a destruir o planeta, porque há demasiadas pessoas a viajar", diz Paul Theroux

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Quantos países conhece?
Já perdi a conta. Estive em muitos, mas não posso dizer que os conheça só porque lá estive uma vez. Conheço muito bem os EUA e alguns países africanos, viajei muito pela Índia, conheço bem o sudeste asiático, conheço bem o México. Não sou um especialista, considero-me apenas um observador. Acho que a minha grande missão foi ver as coisas como elas são e não como eu queria que fossem, como o político ou padre dizem que é. Quis ver o mundo com clareza, foi isso que sempre quis e ainda quero.

A literatura de viagens é literatura de ficção?
Deve tentar não ser. Percebo a pergunta, mas penso que precisamos de nos agarrar aos factos, o mais possível. É preciso resistir à ficcionalização dos lugares, sob pena de não estarmos a fazer um bom trabalho. É muito difícil definir o que seja literatura de viagens. Pode ser autobiografia, pode ser geografia, pode ser ficção, pode ser romance, pode ser aventura ou desespero. Há muitas áreas, muita variedade, muito mais do que se pode imaginar. Escrevi um livro, A Arte de Viajar [The Tao of Travel], onde falei sobre este tema. Em geral, penso que os meus livros de viagens são uma descrição de um dado lugar num dado momento e a minha reação a esse contexto. Toda a viagem é uma viagem no tempo, temos de ter noção de que aquilo que estamos a ver só está a acontecer naquele momento.

Qual foi a última viagem que fez?
Ao México e deu um livro que vai sair em outubro. O presidente Trump começou a falar dos mexicanos como assassinos, violadores, invasores. Eles são nossos vizinhos, decidi lá ir. Estava a escrever um romance, mas interrompi. Durante dois anos, andei pelo México e depois escrevi o livro, durante cerca de um ano.

"Adoro viajar e acho que é necessário, mas é bom viajar sozinho e hoje é cada vez mais difícil estar sozinho. Às vezes, parece que só em casa é que conseguimos estar sozinhos."

Escreve sempre alguma coisa a partir das viagens que faz?
Nem sempre. Também viajo com a minha mulher apenas por lazer. Quando viajo sozinho, normalmente escrevo. Mesmo que não publique, escrevo, tenho um diário de cada viagem.

Que livros anda a ler?
Muitas coisas ao mesmo tempo. Neste momento, ao lado da cama, tenho três livros: uma biografia de Winston Churchill, Walking With Destiny, de Andrew Roberts, um livro de E. M. Forster e um romance de Georges Simenon. Raramente leio romances recentes, não me quero distrair com aquilo que os outros andam a escrever. Já agora, devo dizer-lhe que li alguns livros de autores portugueses. Saramago, claro. De Eça de Queirós li O Primo Basílio e A Relíquia. E houve um outro português que, na verdade, me inspirou. Chama-se Almeida Garrett, li o Viagens na Minha Terra e sabe o que é que aconteceu? Decidi viajar pelo meu próprio país e foi assim que escrevi “Sul Profundo”. Quis ver o Mississipi, o Alabama, o Arkansas, a Geórgia, a Carolina do Sul. Foi realmente o Garrett que me inspirou.

O que acha do turismo de massas que temos hoje?
Acho que não é grande coisa. O turismo está a destruir o planeta, porque há demasiadas pessoas a viajar. Adoro viajar e acho que é necessário, mas é bom viajar sozinho e hoje é cada vez mais difícil estar sozinho. Às vezes, parece que só em casa é que conseguimos estar sozinhos. É preciso viajar para se saber como é o mundo, mas hoje vamos a Veneza, Roma, Madrid, Lisboa, Nairóbi ou Nova Déli e todas estas cidades têm demasiados turistas.

A ideia de aldeia global não o convence?
É uma bela ideia, mas não funciona, porque ao mesmo que tempo que o turismo floresce temos este paradoxo: no mundo não privilegiado há cada vez mais pessoas que tentam escapar, querem viajar, mas não como turistas. Quando fui professor no Malawi, os meus alunos queriam ser médicos, professores, políticos, queriam ajudar o país a ser um país melhor. Hoje, quando perguntamos aos miúdos de países pobres o que querem ser na vida, eles só pedem que os tiremos de lá, querem sair, querem vir para o mundo privilegiado, perderam a esperança de salvar os próprios países.

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