Vivi 4 anos e meio em Londres e voltei a Portugal em julho de 2016. Se eu ainda estivesse em Inglaterra e fosse uma pessoa previdente, estaria neste momento numa espiral burocrática, em contra-relógio, para conseguir reunir todos os documentos que o Departamento da Administração Interna britânica exige a quem quer pedir cartão de residente permanente. Logo eu…
No domingo à noite, os cidadãos europeus residentes no Reino Unido viram deposta a última arma legislativa que ainda tinham nas mãos: a Câmara dos Lordes tinha proposto uma emenda à lei do Brexit para que os seus direitos fossem protegidos depois de iniciado o processo de saída, mas a Câmara dos Comuns não a deixou a passar. Simplificando: a maioria dos deputados do Parlamento britânico preferiu não incluir na lei final do Brexit uma cláusula que evite, em último caso, a deportação dos europeus que já vivem no país. Na quinta-feira, a Rainha Isabel II colocou o selo real no documento, o último passo que faltava para que se tornasse lei — e, esta segunda-feira, o governo britânico anunciou que vai accionar o artigo 50.º do Tratado de Lisboa a 29 de março, dando assim início formal ao Brexit.
Brexit já tem data: Reino Unido inicia processo a 29 de março
Sendo assim, o mais seguro será os cidadãos estrangeiros pedirem o cartão de residente permanente. Para isso, precisam de preencher um formulário disponibilizado pelo Governo. É um documento com 85 páginas.
… logo eu, que decidi ir viver em Londres numa viagem que fiz com bilhete de ida e volta — só que essa “volta” só aconteceu seis meses depois, em vez de ocorrer no dia marcado no primeiro bilhete. Durante esse tempo tive dois empregos a tempo parcial, um a pendurar casacos num restaurante de luxo, onde, diziam os empregados, o Mourinho ia muito quando vivia em Belgravia e começou a treinar o Chelsea; e outro numa loja de sumos e tartes salgadas para vegans antes de o veganismo dar dinheiro.
Expedientes, enfim. Pagos em dinheiro, sem qualquer recibo. Não fazia descontos. Durante esse tempo dormi num sofá-cama na sala de um antigo professor da pós-graduação. Para pedir residência no Reino Unido, eu — ou qualquer outro cidadãos europeu — tenho que provar que vivo no país há pelo menos cinco anos. Estes primeiros seis meses, para a Administração Interna, contariam para pouco.
Viajei muito quando estive no Reino Unido. Como trabalhei quase sempre como jornalista em regime freelancer, e os recibos eram passados com o meu número fiscal português, a uma empresa portuguesa, durante boa parte da minha vida no Reino Unido a única coisa que tinha para apresentar eram os contratos de trabalho a tempo parcial que assinei com alguns restaurantes e lojas onde trabalhei. O setor da restauração é um monstro insaciável por trabalhadores e essa facilidade em encontrar emprego permite que, sem temer o regresso, eu muitas vezes me ausentasse um mês de cada vez, para viajar.
Ora, nada disso é aceite pelo governo como justificação para que nos tenhamos ausentado tanto tempo. A cada ano dos cinco, o máximo que podemos estar fora do país são 60 dias no total. Na página 16 do longo formulário, é preciso detalhar todos os sítios onde fomos e por quanto tempo fomos, isto numa altura em que os passaportes já não servem para ver isso, quando viajamos dentro do bloco dos 28. Solução? Pesquisar “Ryanair” na pasta dos “Recebidos”. Como “Lutfhansa”, “British Airways” e “Qatar Airways”, no meu caso, lá para o meio.
“Quando foi que me tornei uma cidadã de segunda categoria?”
Monika Komar tem 28 anos e está no Reino Unido desde 2009, quando deixou a Polónia rumo à ilha britânica. Há anos que Monika pensava pedir residência e, depois, nacionalidade britânica, porque foi “mais feliz aqui do pensava algum dia ser” e está “mais em casa do que na Polónia”. Mas, recentemente, todo este processo “complexo, demorado e oneroso” tem provocado alguma frustração, que não é nem habitual nem bem-vinda.
Perante tudo o que lhe era pedido nas tais 85 páginas do documento disponibilizado pelo Home Office — o departamento que trata dos pedidos de residência e nacionalidade — Monika iniciou o calvário de reconstituir o passado em papéis.
“Tive que ir ao meu email procurar as datas de todos os meus voos nos últimos seis anos, tive que escrever a todos os sítios em que trabalhei em part-time durante a universidade, tive que escrever à universidade a pedir uma confirmação de que o tempo que passei fora foi porque o meu curso incluía uma temporada lá fora e agora não tenho o meu passaporte, que eles vão reter por um máximo de seis meses e não sei sequer se vou ter o cartão porque, como toda a gente, não sabia que era preciso ter seguro de saúde”, descreve Monika.
Garante que ninguém nunca demonstrou qualquer problema com a sua nacionalidade, mas que o governo está, pela primeira vez desde que ela se mudou, há oito anos, a fazer os cidadãos europeus “sentir uma grande insegurança” porque “apesar de não haver qualquer movimento hostil contra os imigrantes europeus, por outro lado também não há qualquer palavra que nos assegure que o governo quer mesmo que fiquemos”.
“Eu andava sempre a brincar com os meus amigos sobre o Brexit e sobre como eles deviam aproveitar enquanto me tinham aqui, porque ainda ia ser posta num avião e enviada para a Polónia e agora aqui estou, com uma vida toda aqui construída, uma relação estável, um emprego estável, uma folha fiscal limpa, e ainda assim sem saber se serei removida como algo que está a mais. Não me sinto segura. Quando foi que me tornei uma ‘cidadã de segunda categoria’, útil apenas como moeda de troca para o governo pressionar a Europa?”, pergunta Monika.
O que Monika decidiu fazer está a ser tentado por milhares de cidadãos da União Europeia a viver e a trabalhar no Reino Unido. Com as mesmas dúvidas e incertezas que esta mulher polaca tem em relação à forma como daqui para a frente vão ser encarados os imigrantes dos 28, os pedidos de residência permanente estão a disparar — subiram 50% e os escritórios de advogados que tratam destes processos ficaram, em meses, atolados de trabalho.
Decidi então seguir o caminho que Monika já começou a percorrer e abri o portal da Administração Interna para entender como pedir o cartão de residente permanente. É aí que me deparo com um documento de 85 páginas para preencher. Oitenta e cinco. Não são cinco, são cinco mais oitenta. E perguntam tudo. Pior, querem provas de tudo. Há um formulário online que é possível preencher, e que é muito mais curto, mas que continua a pedir todos estes documentos. Além disso, exclui estudantes e pessoas que trabalhem por conta própria e tenham membros da família a seu cargo e também todos os que não estejam a pedir residência ao mesmo tempo que os restantes membros da família.
Até ao referendo de 23 de junho de 2016, que votou a saída do país da União Europeia, o cartão de residência não era um documento necessário — nem para ter um contrato de trabalho, nem para aceder à saúde, nem para alugar uma casa. Para um europeu, viver no Reino Unido, em todas as questões legais, era como viver no seu país de origem; da mesma forma que um britânico residente em qualquer outro país europeu também não precisava — e, até agora, não precisa — de qualquer visto. Agora, o cartão de residência é uma prancha de salvamento para os mais de três milhões de europeus residentes no Reino Unido.
Abri o formulário. Na página 38 começa aquela parte do inquérito em que eu teria que provar onde vivi através de moradas, contas de água e de luz, contratos de habitação, pagamento de IMI, cartas em meu nome enviadas por algum serviço público, como por exemplo as Finanças ou o Serviço Nacional de Saúde. OK. Cartas enviadas por um serviço público tenho. Mas não tenho mais nada.
Onde é que eu morava? Ora, primeiro com o meu professor, depois em casa do meu namorado talvez uns três meses antes de termos arranjado uma casa os dois, arrasando por completo toda e qualquer poupança. Agora entendo que uma poupança até podia ter dado jeito, para provar, na página 49, como subsisti durante os meses em que não trabalhei a tempo inteiro e para os quais não tenho, por isso, contratos de trabalho. Os problemas desta hipotética inscrição vão-se acumulando.
Começo a pensar se vale a pena seguir com isto se há tantas lacunas no meu historial. Afinal, que fiz eu de consistente enquanto estive em Londres? Já se vê isso. Pedem-me comprovativos de arrendamento que ajude a provar que vivi cinco anos aqui. Mas o contrato foi feito em nome dele, que tinha um emprego bem pago e um contrato estável na altura. Contas da luz e água? Estavam em nome do senhorio. O gás era um cartão que recarregávamos com 1o ou 15 euros por semana e metíamos numa ranhura do contador que estava fora do apartamento.
Na mesma página onde é preciso explicar como estudantes ou trabalhadores por conta-própria se conseguem sustentar — através da apresentação do que seriam aqui em Portugal recibos de prestação de serviços, contas abertas em nome da eventual empresa ou prova de doações e/ou empréstimos de dinheiro por parte de familiares ou amigos — há uma alínea que pede que cada proponente detalhe que tipo de seguro de saúde “privado e abrangente” contraiu nesse período em que não esteve a descontar. É a secção-pesadelo de todo este documento. O Serviço Nacional de Saúde britânico é completamente livre, incluindo para quem nunca descontou para o Estado. Seguro de saúde para quê?
Tem médico de família? Mas isso não chega…
Adriana Brioso tem 27 anos e saiu de Portugal para Londres em 2012. Passaram exatamente cinco anos e por isso avançou para o pedido de residência. Foi negado, por agora. “Ligaram-me a dizer que, embora fosse elegível, não me podiam emitir o cartão porque estive um período de 8 meses a estagiar e à procura de emprego. Foi esta a explicação que me deram”, conta ao Observador a designer gráfica, que chegou ao Reino Unido para estudar e lá ficou a trabalhar.
A experiência “não foi má nem dramática” até porque o Departamento de Administração Interna lhe disse que poderia voltar a enviar a candidatura outra vez em Setembro, mas foi confuso. “Fiquei meio confusa e só percebi mais ou menos o porquê daquele período não contar porque li num num site de apoio a pessoas que se querem candidatar que era necessário ter seguro de saúde privado que cobrisse todas as eventualidades se não estivesse a trabalhar. Eu tinha quando era estudante (European Health Card), mas não nesses tais 8 meses”.
Na opinião da designer “teria ajudado se a informação referente a este seguro de saúde fosse mais clara nos documentos da candidatura e no site deles, e se tivessem mandado por email ou por carta esta informação quando me contactaram”.
Sobre este assunto, Sophie Barrett-Brown, diretora do escritório de advogados Laura Devine, disse à publicação Relocate, que acompanha os desenvolvimentos jurídicos na área da imigração, que “os cidadãos europeus são mães e pais de crianças já nascidas no Reino Unido — muitos são maridos e mulheres de cidadãos britânicos — e em muitos casos simplesmente não se aperceberam que tinham que comprar seguros privados para serem elegíveis para a residência, porque toda a gente está registada com um médico de família, que é o que as autoridades aconselham todos os recém-chegados a fazer”.
Adriana Barroso decidiu fazer uma pausa no processo. “Disseram-me que em setembro podia voltar a candidatar-me. Tenho algumas dúvidas sobre isto, mas por enquanto não vou voltar a averiguar.” Enquanto nada é decidido sobre o futuro dos cidadãos da UE a residir no Reino Unido, Adriana pode de facto relaxar um pouco. Mas não muito. Até porque foi a incerteza do futuro que a levou a fazer o primeiro pedido: “Tecnicamente não é necessário ter o cartão [de residente permanente], mas dada a incerteza do Brexit achei melhor pedir”.
O Governo português já pediu ao Executivo britânico que “facilite” o processo de atribuição de residência permanente aos portugueses que estão no Reino Unido há mais de cinco anos, mas isso não é nada que também já não tenham exigido os franceses, os holandeses, os polacos e todos os outros países, quer através dos seus representantes no Reino Unido, quer através da informalidade viral das redes sociais. Portugueses residentes serão, segundo as estatísticas do governo britânico, 219 mil, apesar de este número só incluir as pessoas que pediram números fiscais, o que exclui, por exemplo, a maioria dos adolescentes e dos estudantes. Muitos ainda não pediram a residência permanente à espera do que possa acontecer, e uma grande maioria daqueles que o Observador contactou ainda não o podem fazer, por estarem no país há menos de cinco anos.
Pedidos de residência disparam…
…mas muita gente deve desistir a meio. Começo a pensar nas pessoas que conheço, nos amigos que fiz por todo o país, nas vidas profundamente ricas mas também inconvencionais — quase todas sem a pegada documental que o governo exige. Quem já tem contrato quando sai do seu país pode até conseguir mais facilmente provar o percurso laboral, mas muitos emigrantes vão à procura de um emprego, qualquer emprego, enquanto o sonho não se materializa.
Os últimos números do Departamento de Administração Interna britânico, publicados depois de Hilary Benn, deputado trabalhista e membro do Comité Parlamentar para Análise do Processo Brexit, ter pedido a informação, mostram um aumento de 50% no número de pedidos de residência desde que o resultado do referendo foi conhecido. Durante o outono de 2016, o departamento processou mais de 38 mil pedidos, comparando com 9.500 no mesmo período do ano passado.
Segundo um estudo conduzido pelo partido Liberal Democrata, e publicado no diário Guardian, a taxa de rejeição de vistos a cidadãos europeus está nos 28%, o que significa que, se esta taxa se mantiver, um terço, o mesmo que dizer um milhão de cidadãos europeus, pode não conseguir garantir os seus direitos de permanência antes de o Brexit se concretizar.
O processo de adaptação a um novo país raramente é feito sem percalços, mas no caso de Zita Letenyei, que hoje toma conta de crianças, foi particularmente sinuoso. Sem falar a língua, chegou da Hungria a Londres há seis anos, mas não tem os documentos que as autoridades exigem. “É muito difícil conseguir logo emprego, com papéis, contratos, salário sólido, então comecei a trabalhar em bares e hostels que me iam pagando ao dia, em dinheiro. É impossível teres uma casa tua, ou mesmo um quarto, vivendo de expedientes tão instáveis. Dormia nos hostels, mas quando não havia hóspedes eles deixavam de precisar dos meus serviços, então dormia na rua”, diz Zita ao Observador.
Hoje Zita vive em Brighton, na costa sul de Inglaterra, e desistiu de pedir residência porque “não quer pensar nos patrões” quanto mais “ir pedir cartas de referência”. Quanto à necessidade de provar a sua morada com documentos originais, “isso é impossível” porque Zita nunca viveu numa casa alugada em seu nome, isto falando das alturas em que teve uma casa. “Estou super desiludida. Sentia-me mesmo em casa aqui, construí a minha existência do nada, mesmo do nada, e agora parece que este referendo me roubou a identidade, esse sentimento de estar em casa”, diz.
Nascer na Grã-Bretanha e não ser britânico
Três anos depois de ter ido viver para Londres, mais ou menos um ano e meio depois de ter conhecido o meu namorado, começamos a falar que era giro termos miúdos enquanto éramos novos. Só que éramos mesmo novos e fomos adiando isso, ainda que a mãe dele, numa brincadeira do “amigo secreto” no Natal de 2013, me tivesse oferecido o livro da Penguin de nomes para bebés. Comecei aí a pensar que seria boa ideia pedir residência, mas, como faltavam dois anos para o poder fazer, nunca mais pensei nisso. O meu filho seria sempre britânico, por causa do pai, mas se eu me tivesse apaixonado por um francês, teríamos ambos que provar que já vivíamos no país cinco anos antes do nascimento dos filhos, ou eles não teriam acesso a um passaporte britânico.
Desde que Theresa May, primeira-ministra britânica, levou ao Parlamento um projeto de lei de 134 palavras que lhe daria plenos poderes para iniciar as negociações para a saída sem qualquer ressalva, nem quanto ao mercado único nem quanto aos direitos dos europeus residentes, já muitas palavras foram escritas — algumas elogiosas da resiliência da primeira-ministra, outras de descrença e muitas de desorientação. Mais do que tudo o resto, é desorientação que sente Sara-Jane Freni, uma belga casada com um holandês, mãe de duas raparigas nascidas no Reino Unido que, pelo facto de os pais serem os dois europeus e não terem estatuto de residentes permanentes, não têm direito a nacionalidade britânica direta.
“Temos que provar que, antes de elas nascerem, já cá estávamos há cinco anos para que elas tenham passaporte. É a mesma coisa que residência permanente, por isso já estamos a reunir papéis, mas o meu caso é um pesadelo”, conta Sara-Jane, logo no início do que viria a ser uma longa conversa através do serviço de chat do Facebook.
Sara-Jane vive há 12 anos no Reino Unido, mas nem sempre esteve a trabalhar a tempo inteiro. Entre o trabalho de assistência social, a universidade e os dois filhos que nasceram nos últimos dez anos, a sua história fiscal é uma manta de retalhos. Durante os períodos em que esteve grávida e depois, durante a licença, Jane optou por tirar longos períodos sem vencimento, apesar de ter permanecido no país. “Não tenho provas de que tenha estado aqui nesse tempo, apesar de ter feito algum trabalho freelance como consultora, mas os recibos são muito espaçados. Agora tenho que tentar enviar os papéis todos que puder para o período 2007-2012, antes de nascer a primeira bebé, e mesmo assim nesse período ainda estava a estudar e não pedi o tal seguro de saúde que, aparentemente, agora é preciso”, diz Sara-Jane.
A mais nova é “muito pequena para saber de onde é”, mas a filha mais velha, de quatro anos, “identifica-se com a cultura britânica, na sua cabeça ela é britânica”. Apesar de reconhecer que os pais são de países diferentes, “para ela o dela é este”. “Eu, neste momento, não sei se vou conseguir garantir-lhe para sempre a sua identidade”, completa. O medo de Sara-Jane é que o pedido da família seja rejeitado e isso fique registado contra eles, quando daqui a dois anos o processo do Brexit ficar completo e as pessoas sem autorização de permanência sejam mesmo obrigadas a sair.
Escritórios de advogados assoberbados com pedidos de ajuda
“A 24 de junho os telefones começaram a tocar, a tocar”, diz Oshin Shahiean, advogado sócio da empresa OST Solicitors, especialista em emigração. Um dia depois do referendo os pedidos de ajuda de europeus confusos com o processo de residência começaram logo a aumentar. E no fim do ano passado, e já em 2017, as pessoas começaram a ficar mais apreensivas à medida que se foi solidificando a ideia de que a saída do Reino Unido da UE ia mesmo acontecer. “Antes do referendo tínhamos três, quatro, cinco pedidos por mês, depois passaram a ser à volta de 15 e agora 50% de todo o negócio da firma é tratar de pedidos de residência permanente, o que equivale a 25 pedidos por mês”, diz o advogado, ao telefone com o Observador a partir da sede da empresa, em Londres.
Oshin Shahien considera que “o Departamento de Administração Interna não está a tentar simplificar este processo para as pessoas” e está a exigir coisas que muitos cidadãos nem sabiam que algum dia precisariam. “Pessoas que são empregadas por conta própria, que são maridos e mulheres de um cidadão britânico mas que não trabalham, ou estudantes, têm que apresentar prova de que compraram um seguro de saúde, coisa que muita gente não tem porque o acesso ao Serviço Nacional de Saúde é universal”, diz.
No início as pessoas estavam mais calmas, mas agora “a ansiedade é óbvia” nas vozes das pessoas que lhe ligam. Às vezes passa meia hora ao telefone a ajudar pessoas, gratuitamente, mas o escritório cobra entre 1.200 e 2.000 libras (entre 1.380 e 2.300 euros) para conduzir um processo até ao fim. “As pessoas estão frustradas, têm as suas vidas de pernas para o ar, isso causa ansiedade, claro, foi tudo decidido pelo governo sem negociação”, diz o advogado.
“Estão a usar as pessoas como moeda de troca”, acusa Oshin Shahiean. “Estamos a falar de pessoas adultas, não de crianças que possam recomeçar em qualquer lado. É claro que nem toda a gente tem a possibilidade de voltar aos seus países. Se vieram para cá é porque tinham uma razão para isso, por exemplo falta de emprego nos seus países, e agora não têm qualquer certeza quanto ao futuro”, completa o advogado.
Os europeus não vão atirar já a toalha ao tapete. Têm do seu lado algumas associações cívicas como a 3million, presidida por Nicolas Hatton, um franco-britânico residente no Reino Unido há 21 anos, ou a ECREU — Direitos dos Cidadãos Expatriados da UE — às quais se juntam alguns nomes da política europeia como o de Sophie in ‘t Veld, uma holandesa que está a tentar criar um grupo intrapartidário no Parlamento Europeu para apoiar os direitos dos cidadãos europeus. Há também um grupo no Facebook, o New Europeans, ligado à 3million, onde as 27 nacionalidades se juntam para partilharem notícias e esclarecerem as dúvidas sobre o processo de pedido de residência permanente. É raro o dia em que não apareça alguém a dizer que decidiu voltar ao seu país ou a pedir contactos para encontrar emprego fora do Reino Unido.
Com cortes no orçamento e no pessoal e uma pilha de pedidos para processar, o Departamento de Administração Interna está agora a demorar entre quatro e seis meses a entregar os cartões de residência. Num ano normal, são avaliados 25.500 pedidos de residência de cidadãos europeus e dos seus familiares próximos. Se todos os europeus optassem por pedir residência, o processamento de todos esses papéis poderia demorar 140 anos.
O aviso foi feito pelo Observatório da Emigração, sediado na Universidade de Oxford. “Dependendo de quanto tempo as negociações durarem, o Governo pode ter que desenvolver uma forma de registar as pessoas quase automaticamente. Dado o enorme número de cidadãos que podem querer registar-se, e tendo em conta a complexidade do processo, que muitas vezes requer ajuda externa de advogados, o governo tem mais uma tarefa hercúlea”, disse ao Financial Times Madeleine Sumption, diretora do Observatório.
Em linha com o que vários ministros de Theresa May têm feito questão de sublinhar em entrevistas, o Departamento de Administração Interna emitiu recentemente um comunicado onde não só dizia que “os cidadãos europeus dão um contributo vital para a economia e para a sociedade” como seria “prioridade do governo assegurar o mais rapidamente o seu estatuto, tal como o de todos os britânicos que vivem em países europeus”. Mas há quem se sinta como uma moeda de troca, até porque o governo não faz segredo de que os direitos dos britânicos têm de ser assegurados primeiro e os europeus ali residentes podem ser a peça que vai equilibrar (ou não) a balança durante as negociações.
“Se cedêssemos a uma tomada de posição unilateral, perderíamos capital para negociar o estatuto dos cidadãos britânicos que vivem em outros Estados-membros, o que colocaria o Reino Unido imediatamente em desvantagem”, escreveu numa carta dirigida aos funcionários da Administração Interna Peter Grant, diretor da equipa que está a estudar futuras políticas de movimentos na UE e emigração. O diário Guardian teve acesso a esta carta e a sua publicação foi o que bastou para que muitos europeus modificassem as suas fotos de perfil nas redes sociais para incluírem um pequeno crachá virtual com a frase: “Eu não sou uma moeda de troca”.
I'm not a #BarganingChip EU citizens in the UK should have a #RightToStay #notabargainingc… https://t.co/N6pz1Kf82g pic.twitter.com/c1dnNYfhEh
— Marta Perez (@mperezsainero) February 20, 2017
A ansiedade vai crescendo. Tal como disse Madeleine Sumption, “qualquer problema no sistema pode atrasar ou anular a emissão de um cartão e, se não existirem diretrizes claras do governo, os europeus podem deparar-se com situações em que, por exemplo, não conseguem provar que não precisam de visto para se empregarem”. Definição precisa-se.
Monika Komar recusa-se a ser “avaliada” apenas pelos documentos que tem de apresentar como prova. “Eu entendo que o Reino Unido seja um país muito popular para se viver e, de alguma forma, temos que navegar por estes papéis, é um frete que temos que fazer, mas não sei se esta é a melhor abordagem que o governo pode ter. Isto são papéis. Não considero que a entrega destes documentos me valide como uma cidadã decente e que contribui para a sociedade. O que eu de facto sinto pelo país e o que me motiva a querer permanecer não fica estabelecido aqui. Fica apenas a parte legal, que muitas vezes não reflete a dedicação de um cidadão ao país que o acolheu.”
As minhas últimas semanas no Reino Unido coincidiram com as primeiras do Brexit. Nessa altura, a polícia registou uma onda de ataques verbais — e alguns físicos — contra imigrantes, que acalmaram mas continuam a acontecer com alguma frequência, e, sobretudo, com menos vergonha do que antes. A decisão de vir viver para Portugal, desembestada como foi, não foi motivada pelo resultado do referendo nem pela impossibilidade de conseguir garantir um qualquer documento que provasse que sou uma cidadã decente e válida à sociedade.
Monika falava-me do seu trabalho como voluntária como um exemplo das coisas boas que podemos fazer sem que haja um lastro burocrático que o comprove. Além de voluntariado, também escrevi sobre um país que tem uma fama que não merece, ou eu acho que não merece, no resto da Europa. Os britânicos não são frios, não são violentos, não são racistas, e não se come mal. Como é possível dizer que se come mal num país onde os indianos são donos de todas as esquinas e cozinham maravilhosos pratos de caril? Onde os turcos grelham carne nas ruas no verão e cheira a churrasco como nas feiras das nossas aldeias?
Vi muitos imigrantes defenderem aquele país perante o olhar estupefacto dos próprios nativos e sempre esperei, aliás, planeei, voltar um dia, por largas temporadas, para escrever. Agora, quando voltar à cidade onde comecei a ser jornalista, e onde fui mais feliz do que em qualquer outro lugar, serei apenas só mais uma turista?