Cidadão de uma Florença largamente afetada pela peste, Giovanni Boccaccio contou no “Decameron” a história de dez jovens que, durante a epidemia, abandonam a cidade e, no confinamento, narram entre todos uma série de contos. O resultado é um “retrato livre, licencioso e crítico da sociedade do tempo”, um tempo marcado por essa “inesperada, terrível, contagiante, devastadora, Peste Negra”, a mesma que havia já passado à História quando, no século XIX, chegou aquilo a que Charles Dickens classificou de Peste Branca, mais uma escala nesta cronologia proposta por “Contágios”, a mais recente obra de Jaime Nogueira Pinto, que reconstitui 2500 anos de pestes, que ora lançaram o caos e temor, ora inspiraram as artes e o pensamento a cada nova praga, convulsionando o quotidiano de milhões.
Doença do romantismo, a tuberculose contaminaria páginas e mais páginas da obra do célebre autor britânico, serviu de pano de fundo a “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas Filho, e inspirou a ópera La Traviatta, de Verdi, numa era pintada por pálidas heroínas, como as belezas idealizadas pelo pincel de Auguste‐Barthélemy. Antes, muito antes, foi “por capricho dos deuses, errâncias dos astros, erros dos homens, voltas da fortuna ou causas naturais” que a peste apareceu na guerra antiga. E foi preciso esperar por finais desse século XIX para se registarem os grandes progressos na luta contra as doenças infecto‐contagiosas, aqui com o historiador a convidar a uma passagem pelo Porto, em 1899, quando se deu “o inesperado último surto de Peste Bubónica na Europa, com Ricardo Jorge, diretor dos serviços hospitalares da cidade, a liderar o combate à doença que matou cerca de centena e meia de pessoas.
Da morte negra à última pandemia, com epicentro na China, o historiador, em colaboração com Inês Pinto Basto, recorda como persiste o mistério das sucessivas pestes que foram afetando a humanidade — “até porque a recorrência da doença, da morte, é uma cumulativa e imperativa lembrança da mortalidade e da vulnerabilidade que torna os homens diferentes dos deuses”.
Antes da chegada às livrarias a 25 de agosto, o Observador pré-publica excertos desta obra editada pela D. Quixote.
150 anos de peste
A Peste Negra foi, sem dúvida, o maior desastre demográfico natural da História europeia. Embora haja grande e justificada controvérsia à volta das estatísticas coevas, para Inglaterra, os censos existentes na época, como o Domesday Book (1086), e os registos do Poll Tax (1380) são incompletos ou limitam-se aos chefes de família, deixando de fora algumas regiões do Reino e importantes estratos da população.
Os relatos são, geralmente, exagerados até porque, “os observadores contemporâneos da Peste, vivendo uma época já de si tormentosa por causa das guerras, das fomes, tendiam, naturalmente, a ser apocalípticos”. Há um escrito que diz que sobreviveu uma pessoa em cada dez, e um outro que concluiu que só escaparam com vida catorze pessoas em toda a cidade de Londres.
Na segunda metade do século XIV, a Peste Negra funcionou por surtos ou vagas, irrompendo e recuando e atingindo de modo diferente o continente europeu. Atacou também diferentemente as diversas classes sociais: para Inglaterra, por exemplo, foi menor o número de vítimas entre os nobres vassalos do Rei (entre 5% e 23%) e maior entre os religiosos (cerca de 45%). Em Itália, a mortandade foi muito alta, por exemplo, na Toscânia (60% a 80%) e diminuta no Languedoc. Em França ficou entre os 40% e os 50%.
Naturalmente, as cidades tiveram percentagens mais altas de letalidade que os campos. A peste matou proporcionalmente mais urbanos que rurais, mais homens que mulheres, mais pobres que ricos e remediados, mais jovens que homens maduros ou velhos. Em 1361-1362, houve uma recorrência que atingiu sobretudo os mais novos e que ficou conhecida por Peste das Crianças (Pestis Puerorum).
Foi também diferente o grau de penetração geográfica da mortandade. Como já o fazia desde a Ásia pela Rota da Seda, a peste seguiu as rotas comerciais, o caminho dos mercadores e das feiras. E como chegou de barco, pelo Mediterrâneo, tocou primeiro o sul de Espanha, o sul e centro de França, toda a Itália, os Balcãs. Chegou à Grã-Bretanha e a Portugal no Inverno de 1348-1349; mais tarde, em 1350-1351, atingiu os reinos escandinavos e a Rússia. O reino da Polónia e as zonas mais altas dos Pirenéus e dos Alpes foram poupados, ou tiveram, proporcionalmente, menos mortos. O rei Casimiro, o Grande, da Polónia, um monarca esclarecido, mandou fechar as fronteiras do Reino, controlou os acessos a Cracóvia e foi um percursor em matéria de higiene urbana. Além disso, a população da Polónia não vivia em grandes centros, além da capital.
No resto da Europa calcula-se que tenha morrido de epidemia entre um terço e metade da população. Nos 150 anos que vão da chegada da peste no Sul de Itália até aos finais do século XV, importantes cidades europeias experimentaram a recorrência da peste: Perúgia teve 19 surtos epidémicos e Hamburgo, Colónia e Nuremberga, dez. A Peste Negra persistiu no longo prazo e só já bem entrado o século XVI se restabeleceram os números da população pré-pandemia.
Lisboa deve ter passado por umas duas dezenas de pestes. E teve também a sua “Grande Peste” em 1569-1570; a média de mortos andou pelas seis centenas diárias. Terão morrido cerca de 60 mil pessoas na que foi a mais grave e humanamente mais custosa epidemia em toda a história de Portugal até ao século XX.
E, em tempos de fervor e conflitualidade religiosa, Lisboa, à semelhança das cidades afligidas pelo anjo negro da pestilência, teve o seu cortejo de procissões e devoções suplicantes – e aqui e ali perseguições a cristãos novos e a alguns hereges estrangeiros que por cá andassem e servissem para bodes expiatórios.
O jovem rei D. Sebastião convidou dois médicos espanhóis, com experiência das epidemias de Sevilha, para que viessem aconselhar os responsáveis domésticos em matéria de saúde. A seu conselho as autoridades estabeleceram um elenco de normas e recomendações para prevenir e curar a “pestilência”: cuidar do abastecimento alimentar da cidade; acender por todo o lado fogueiras de ervas aromáticas; limpar as ruas; fechar os banhos públicos; queimar as roupas dos doentes; pôr os navios de quarentena (suspeitava-se que fora uma nau vinda de Veneza que trouxera a contaminação); mobilizar o maior número de médicos disponíveis; enterrar os mortos em fossas bem profundas e pôr-lhes cal viva em cima.
Os não cumpridores destas medidas, se fossem plebeus, seriam açoitados na praça pública e degredados sete anos para S. Tomé; se fossem nobres ou burgueses, pagavam uma multa e iam dois anos degredados para a Beira Interior.
O mundo pós‑catástrofe
A peste foi também a causa de uma profunda e demorada ruptura económica. Veio num quadro de guerra – a Guerra dos Cem Anos, entre ingleses e franceses – e de carestias e fomes, como as que entre 1315 e 1322 atacaram a Europa do Norte.
Mas foi na agricultura que a peste teve as maiores consequências: desde logo, a mais importante, causada pela redução do número de camponeses, mais do que os senhores e as maiores vítimas do flagelo. Da mortandade por “pestilência” dos trabalhadores do campo, mas também dos artesãos urbanos, resultou uma significativa escassez de mão-de-obra. E, apesar do modelo hierárquico da sociedade feudal europeia e das leis publicadas para travar a subida de salários e a mobilidade dos camponeses, o mercado acabou por funcionar: os proprietários sobreviventes, como precisavam dos trabalhadores sobreviventes, melhoraram-lhes não só os salários, mas as condições laborais, franqueando-lhes o acesso à terra e concedendo-lhes alguns direitos de movimentação. Assim, os salários dos trabalhadores rurais subiram entre 20% a 40%. E, como era fatal, a inflação disparou.
Mas o processo de libertação dos servos e de flexibilização da mão-de-obra rural não foi homogéneo na Europa.
Na Catalunha, por exemplo, os senhores, por um processo de coerção-intimidação pessoal e cobrando um preço alto para a liberação do servo da gleba, conseguiram manter em grande parte o status anterior. Mas era remar contra a maré.
O mundo pós-Peste Negra era um mundo de muita terra e pouca gente, e de ainda menos gente para trabalhar a terra. Muitas terras ficaram, assim, por largo tempo abandonadas. E as novas condições levaram a uma alteração das culturas a produzir dali em diante: passou-se, por exemplo, à criação de gado, já que a melhoria dos salários permitia o acesso à carne de parte da população, até aí excluída pelo baixo poder de compra. Deu-se, também, a desertificação de centenas de vilas e lugares.
Com o desaparecimento de mão-de-obra servil no campo e a baixa de oferta laboral nas cidades, o comércio de escravos da Ásia e da África aumentou exponencialmente: mulheres para serviços domésticos nas cidades e homens para trabalhos do campo.
Também depois da peste, e na memória dos horrores passados, muitos dos herdeiros das vítimas, geralmente os seus filhos, passaram a consumir grandes quantidades de artigos de luxo – o que agora se chama revenge spending, consumo de desforra ou de vingança, a euforia individualista ou a procura de prazeres, passado o grande medo, ou a sua primeira vaga.
Com a Peste Negra ou no seu rescaldo, a estrutura social, a hierarquia, as crenças e os valores sociais estabelecidos sofreriam uma forte alteração. Numa sociedade profundamente religiosa e onde o cristianismo, sobretudo depois da renovação franciscana, tinha grande influência popular, a mortandade levou mais uma vez os crentes, no desespero de não verem atendidas as suas súplicas, às interrogações de sempre: Como mandava um Deus bom, um Deus Pai, semelhantes sofrimentos aos seus filhos? Seria para os castigar, tal como Jeová aos filhos de Israel? E de que valiam os sacrifícios, as relíquias, as promessas, as peregrinações, as orações perante aquela morte negra que fazia com que corpos, mesmo os de crianças inocentes, apodrecessem e morressem numa semana?
A Igreja em tempos de peste
Quando a peste chegou, e independentemente das muitas sátiras sociais de que eram alvo, os párocos e o clero regular parecem ter estado à altura da emergência, a avaliar pela elevada taxa de mortalidade dos religiosos (50%), quando comparada com a dos nobres e até com a da população em geral. Como Chaucer bem sabia, na Igreja, entre os muitos pastores, ainda havia bons párocos; e nem todos os frades eram como os de Chaucer ou como o realíssimo anónimo carmelita de Paris, que, cúmplice da morte, rejubilava com os legados pios. Foram muitos os sacerdotes que se expuseram aos riscos da contaminação e que morreram contaminados por doentes e moribundos. E muitos santos se fizeram na peste e na assistência aos pestíferos; entre todos, Roque de Montpellier (São Roque), nascido no século XIV e canonizado no século seguinte como padroeiro dos cuidadores e advogado contra o mal da peste e contagiosas enfermidades.
A situação não era de modo algum fácil, num tempo em que a Igreja era uma espécie de suprema Organização Mundial de Saúde, braço terreno do poder divino, que alguns corrompiam, a que muitos recorriam, e a que quase todos pediam contas e cobravam insucessos.
O povo pedia uma explicação para a peste que o assolava, e embora pressentisse que pudesse ser um castigo do pecado, interrogava-se sobre as razões do castigo. A confiança no poder dos santuários ou das relíquias, que tinha trazido algum consolo durante décadas, fora quebrada e padres medrosos que negligenciavam os seus deveres eram apresentados como exemplos do falhanço do clero no seu conjunto.
O último quartel do século XIV constituiu uma tempestade perfeita para o prestígio e a unidade da Igreja no Ocidente. O cristianismo já sofrera, no século XI, em 1054, com a separação da Igreja Católica de Roma e da Igreja Ortodoxa de Constantinopla. Às questões teológicas, como a cláusula sobre a procedência do Espírito Santo (Ex Patre procedit, que procede do Pai, conforme o credo oriental; e Ex Patre Filioque procedit, que procede do Pai e do Filho, conforme o credo ocidental), juntaram-se divergências e rivalidades políticas e a ruptura foi inevitável.
Em 1054, o patriarca de Constantinopla e o papa de Roma tinham-se excomungado mutuamente. Em 1204, 150 anos depois, a Quarta Cruzada, inspirada pelos venezianos, em vez de reconquistar aos muçulmanos os lugares santos – o seu objectivo oficial e inicial – saqueou Constantinopla e fundou ali um Império Latino do Oriente, que durou algumas décadas.
Mas no século XIV é na Igreja Católica do Ocidente que se dá uma nova e grave secessão. Depois que Filipe, o Belo, trouxera o Papa Clemente V para Avinhão, seguira-se uma galicização da hierarquia da Igreja, com papas, cardeais e altos responsáveis da Cúria dominantemente franceses. Ao mesmo tempo, estava ao rubro, no âmbito europeu, a luta entre os Guelfos, partidários da supremacia do Papa, e os Gibelinos, partidários da supremacia do Imperador.
Eleito papa pelo Concílio em 1370 para suceder a Urbano V, Gregório XI, outro francês, filho dos condes de Beaufort, muito sensibilizado pelos pedidos de Petrarca e de Santa Catarina de Siena, regressou a Roma em 1376, via Marselha e Génova. Depois de uma entrada que Giorgio Vasari pintou apoteótica, a brutalidade das tropas pontifícias e os motins populares obrigaram-no a deixar a Cidade Eterna e a retirar-se para Anagni – onde o seu predecessor, Bonifácio VIII, tinha sido esbofeteado por Sciarra Colonna. Voltou a Roma, mas morreu meses depois, em Março de 1378.
Seguiu-se a eleição do novo papa, com os populares romanos na rua a exigir um papa italiano. Foi escolhido o arcebispo de Bari, que tomou o nome de Urbano VI; isto logo desencadeou um movimento de recusa dos cardeais de Avinhão, que contestavam a eleição e conseguiram apoios políticos de França e de Nápoles. Acabaram os dissidentes por eleger, num conclave em Fondi, outro papa, um francês, Robert de Genève, Papa Clemente VII. Passa deste modo a haver dois papas na Igreja do Ocidente, um em Roma, outro em Avinhão.
O Grande Cisma do Ocidente, que ia durar quase quarenta anos, foi o coroar de uma crise da Igreja e sobretudo do prestígio do Papado e do alto clero que levou a uma grande confusão entre os cristãos e abalou profundamente a cristandade. A crítica aos papas e à Cúria vinha já de Dante, que condenara papas e bispos ao seu Inferno, prosseguira com os clérigos libidinosos e simoníacos de Boccaccio e ia receber o apoio do terceiro pilar da literatura italiana do tempo – Francesco Petrarca. Petrarca que, como Chaucer, não era nem herético nem céptico, mas um cristão que procurava o regresso à pureza evangélica dos primeiros tempos, não hesita em falar desse seu tempo como “Idade das Trevas”.
O próprio Papa Urbano VI mostra consciência da necessidade de reforma nos hábitos sumptuários da Cúria, que se tinham agravado com a estadia em Avinhão, prescrevendo para os cardeais apenas um prato principal ao almoço e ao jantar (recomendações dietéticas mais severas que as de João XXII, por exemplo, que, além da sopa, dos acompanhamentos, da sobremesa, da fruta e dos doces, admitia não só um mas dois pratos principais). Urbano VI parecia querer começar a reforma por cima. Estaria louco?, perguntavam-se muitos cardeais.
Estas disposições contra os abusos da chamada camera collegii cardinalis já vinham de trás. A câmara, conhecida vulgarmente por Colégio dos Cardeais, partilhava com o papa as receitas da Igreja. Cada novo papa, por costume, distribuía entre os seus eleitores uma soma considerável – entre 75 mil e 100 mil florins –, o que representava entre um quarto e um terço de todo o “dinheiro de S. Pedro”, isto é, das receitas gerais da Igreja.
Toda esta gala, ostentação e abuso provocava reacções, não só no povo mas entre os espíritos mais sensíveis e críticos da época. Petrarca deixou um epistolário, publicado postumamente por sua vontade expressa no Liber sine nomine, em que exprime a sua profunda indignação perante a “delapidação da herança evangélica” que “o luxo, a mentira e a fornicação” dos altos representantes da Igreja, papas e prelados tinha causado.
Avinhão, enquanto sede abusiva do Papado, era apresentada ora como uma cloaca fétida, ora como um labirinto sem saída, ora como um inferno de vivos habitado por espectros destinados à danação eterna.
A perda do prestígio, influência e poder da Igreja tinha uma razão antiga e de fundo: a contradição da cúpula da instituição e seus abusos com os preceitos e os exemplos evangélicos. Mas se homens de cultura e pensamento, como Chaucer e Petrarca, sabiam fazer a distinção entre os princípios e os pecados e fraquezas dos homens, havia movimentos mais radicais que entravam em dissidência e até rebelião. Não era de admirar que assim fosse, entre ovelhas que viam, depois do Cisma, os seus pastores – os papas de Roma e de Avinhão – confrontarem-se e excomungarem-se mutuamente, acusando o opositor de Anticristo.
John Wycliffe, uma espécie de proto-precursor da Reforma, foi uma dessas ovelhas indignadas. Vindo uma família rural abastada, estudou em Oxford, traduziu o Novo Testamento para inglês e foi teólogo. O Concílio de Constança declarou-o herético. Além de criticar os costumes do alto clero e de denunciar a corrupção na Igreja, Wycliffe, juntamente com os seus seguidores – os Lolardos –, opôs-se também a uma série de dogmas e princípios. Além do poder do papa e do cesaropapismo de Roma, os Lolardos negavam o livre arbítrio defendendo a Predestinação, isto é, a existência de uma definição prévia e imutável, na mente e na vontade de Deus, do destino de cada alma. Opunham-se também ao culto dos santos, negavam a transubstanciação e eram contra os sacramentos em geral.
Wycliffe suscitou escândalo e rejeição dentro da Igreja estabelecida e foi objecto de várias críticas e condenações. Mas estava bem protegido, pelo próprio John de Gaunt, duque de Lancaster, que, tal como parte da nobreza de Inglaterra, queria combater o poder da Igreja e apoderar-se das suas riquezas.
No entanto, ao encarniçar-se contra a doutrina da transubstanciação, Wycliffe entrou num terreno em que se tornava muito difícil, mesmo para os grandes, segui-lo ou sequer protegê-lo. Wycliffe acabaria por ser também visto como um dos inspiradores da grande revolta dos camponeses de 1381; mas apesar disso e das conclusões do Papa e do sínodo dos bispos ingleses, escaparia sempre ao braço secular, vindo a morrer, de trombose, nos últimos dias do ano de 1384. Deixou discípulos que continuaram a sua obra e acção e o consagraram como um dos primeiros reformadores.
Com toda esta agitação e crítica e com o paroxismo no Grande Cisma do Ocidente, o poder temporal da Igreja entrava em crise, perante o poder real. E é o poder real que vai sobrepor-se às outras ordens ou estamentos medievais, à nobreza e ao clero; e, com base nas doutrinas então restauradas dos juristas de Justiniano, vai também sobrepor-se ao poder dos príncipes.
No meio de toda esta contestação, e entre movimentos de heresia declarada, como os dos Lolardos seguidores de Wycliffe, a Peste permanecia central, pela razia que fazia ao clero, sobretudo ao clero diocesano e às ordens religiosas. O desaparecimento físico de párocos levava à desertificação religiosa do território, ao fim da quadrícula assistencial que a Igreja exercia. E se em muitas regiões da Grã-Bretanha, a taxa de mortalidade entre os religiosos andou próxima dos 50%, em Barcelona chegaria aos 60%. Dos 17.500 frades e freiras do clero regular existentes em Inglaterra antes da peste, metade morreria com a epidemia. Com a morte dos sacerdotes, a Igreja debatia-se com a incapacidade de enquadrar os fiéis. Falava disso o próprio Papa Clemente VI, ao escrever para uma diocese que se queixava da falta de padres: “Por causa da mortalidade da peste que assolou a vossa diocese neste tempo, não há padres suficientes para orientar, dirigir as almas e para administrar os sacramentos.”
Mas numa época de extrema religiosidade, o povo esperava dos seus párocos e sacerdotes qualidades sobre-humanas e a falta de respostas milagrosas por parte do clero atingia a fé simples dos pobres no milagre.
A ars moriendi tinha uma ritualidade – confissão, extrema-unção, missa de corpo presente, encomendação da alma. E todo o viático que acompanhava o passamento do cristão fora abalado pela agressividade e rapidez com que a praga operava.
No estado de calamidade criado pelas novas circunstâncias e no seguimento das disposições papais sobre a confissão dos moribundos, o temerário bispo de Bath and Wells, Ralph of Shrewsbury, vai mais longe, porventura longe de mais: se não fosse possível achar um sacerdote disponível para ouvir a confissão de um doente ou moribundo – dispunha o bispo – este deveria “fazer a confissão dos seus pecados a um leigo, até mesmo a uma mulher, se não houvesse homens disponíveis”.
As falhas de hierarquia multiplicaram-se e abriam campo ao aparecimento de seitas e movimentos como os Flagelantes. Os Flagelantes apareceram na Europa Central, na Áustria, na Hungria e na Alemanha. Com os seus bandos de centenas de criaturas a desfilar pelos campos e cidades, estes Flagelantes juntavam mais um factor de irracionalidade e paranóia às ruas e vielas da Europa empestada. Os Flagelantes não tomavam banho (o que não seria uma grande originalidade na época), não mudavam de roupa e açoitavam-se duas vezes ao dia. Tinham a sua organização e rígida disciplina e não tinham dificuldade em recrutar militantes.
O Papa Clemente VI declarou-os hereges em Outubro de 1349, mas nem por isso o movimento parou. Descalços e em farrapos, entoando cânticos fúnebres, marchando pelas ruas carregando cruzes encarnadas e parando para se açoitarem até sangrar, os Flagelantes ficariam como um símbolo dos horrores da Peste Negra. Constituíam uma espécie de ordem paralela, pregando ao povo, arvorando-se em santos e fazedores de milagres, anunciando os dias do fim e a Segunda Vinda do Messias, que os horrores da peste prenunciavam.