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General audience of the Pope - August 11th, 2021
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Mondadori Portfolio via Getty Im

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Pode o país mais pequeno do mundo negociar a paz entre a Rússia e a Ucrânia? "As bases para a intervenção do Vaticano foram lançadas"

Em 2014, a intervenção do Papa permitiu acordo histórico EUA-Cuba. Agora, o Vaticano está de novo a trabalhar nos bastidores. Entrevista ao analista Victor Gaetan, especialista na diplomacia vaticana.

Um dia depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia e dado origem a uma sangrenta guerra armada que se prolonga há duas semanas, o Papa Francisco, quebrando todos os protocolos e tradições diplomáticas do Vaticano, dirigiu-se pessoalmente à embaixada da Rússia na Santa Sé, em Roma, para se encontrar com o embaixador russo e “expressar a sua preocupação sobre a guerra“, de acordo com o relato oficial da reunião. Um dia depois, Francisco pegou no telefone e ligou ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para lhe transmitir o “apoio espiritual” ao povo ucraniano. Esta segunda-feira, o líder da Igreja Católica foi mais longe e enviou para a Ucrânia dois dos seus principais diplomatas — o cardeal Michael Czerny, líder do serviço de refugiados do Vaticano, e o cardeal Konrad Krajewski, esmoleiro apostólico.

Gradualmente, o Papa Francisco está a colocar no terreno todo o seu poderio diplomático, o que permite antecipar que estão lançadas as bases para que o Vaticano venha a mediar as negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia, diz em entrevista ao Observador o jornalista romeno Victor Gaetan, autor do livro God’s Diplomats (Rowman & Littlefield, 2021) e reputado analista da diplomacia vaticana na revista Foreign Affairs e no jornal National Catholic Register. A partir de Washington DC, onde vive e trabalha, Gaetan revela ao Observador que tudo indica que o Papa Francisco aproveitou a visita pessoal à embaixada russa na Santa Sé para falar diretamente com o Presidente russo, Vladimir Putin, através de uma linha telefónica segura. “Já existe, neste momento, uma mediação direta muito avançada entre o Papa e os presidentes da Rússia e da Ucrânia”, diz o especialista, um dos maiores conhecedores dos intrincados processos diplomáticos conduzidos pelo Vaticano.

A intervenção diplomática do Vaticano neste conflito poderá ser a melhor hipótese de alcançar a paz, sublinha Gaetan, lembrando que o Papa Francisco tem importantes pergaminhos diplomáticos no currículo. Basta lembrar o que aconteceu em 2014, quando os Estados Unidos e Cuba reataram relações diplomáticas ao fim de cinco décadas de costas voltadas, desde que Fidel Castro estabelecera no país um regime socialista, próximo da União Soviética, em 1959. Com as negociações num impasse, os dois países voltaram-se para o Vaticano e foi a intervenção pessoal do próprio Papa Francisco que permitiu alcançar um acordo histórico, considerado atualmente o maior sucesso diplomático da história contemporânea do Vaticano — que também já teve intervenção nas negociações dos acordos de paz na Ucrânia e em múltiplas ocasiões e conflitos no século XX.

Apesar de ser o país mais pequeno do mundo (com apenas meio quilómetro quadrado, até as embaixadas estrangeiras ficam fora das suas fronteiras, na cidade de Roma), o Vaticano tem um dos serviços diplomáticos mais fortes do planeta. Com embaixadores — ou núncios apostólicos — por todo o mundo, a Santa Sé conta ainda com milhares de sacerdotes, missionários e membros de congregações religiosas, espalhadas pelo mundo inteiro, para obter uma caracterização detalhada dos pormenores em causa na maioria dos conflitos mundiais. Sem interesses territoriais em jogo e livre das preocupações mundanas clássicas dos ciclos políticos tradicionais, o Vaticano atua como potência diplomática independente, nos bastidores, discretamente.

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E, no conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o Papa Francisco tem aquilo que provavelmente mais nenhum intermediário global tem: acesso direto ao Patriarca Cirilo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, um dos mais poderosos aliados de Vladimir Putin e um dos protagonistas da grande divisão social e religiosa que reflete a divisão geopolítica que se vive na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Além disso, a história recente, marcada por encontros frequentes entre Putin e Francisco, mostra que o Papa é um dos líderes mundiais em quem o Presidente russo mais confia para a mediação de conflitos. E, como lembra Victor Gaetan, o Vaticano rege-se pelo princípio de negociar até com o Diabo caso esteja em causa a necessidade de salvar vidas.

Victor Gaetan, jornalista e analista, é um dos mais profundos conhecedores do funcionamento da diplomacia do Vaticano

ERIN SCOTT PHOTO

“Quando o Papa visitou a embaixada russa, durante mais de uma hora, esteve ao telefone com Vladimir Putin”

Em 2014, o mundo testemunhou um momento extraordinário, quando os EUA e Cuba restabeleceram as relações diplomáticas após cinco décadas sem relações formais. O acordo histórico foi mediado pelo Papa Francisco e pela diplomacia do Vaticano, e é obviamente visto como um dos feitos diplomáticos mais bem-sucedidos do Vaticano na história contemporânea. Acredita que algo semelhante poderia acontecer no conflito atual?
Já que falamos sobre o acordo de 2014 entre Cuba e os EUA, que foi mediado pela Santa Sé, pelo próprio Papa e pelos seus diplomatas — em particular o cardeal Pietro Parolin —, para o Vaticano chegar ao ponto de mediar um conflito, ambas as partes terão de o solicitar ao Vaticano. Ainda não sabemos se as duas partes, a Rússia e a Ucrânia, chegaram a esse ponto de pedir ao Santo Padre a mediação. O que sabemos é que talvez isto possa acontecer, muito provavelmente, à medida que a guerra continue e dê origem a muito mais danos, destruição, mortes e refugiados. Na minha perspetiva, as bases para uma intervenção desse tipo por parte do Vaticano já foram lançadas. Estou a pensar, evidentemente, na visita sem precedentes do Papa à embaixada russa junto da Santa Sé. Penso que isto ainda não foi suficientemente explicado.

Foi sem precedentes?
Foi, de facto, sem precedentes. É a palavra que toda a gente tem usado e é verdade. Mas o que é que não tem precedentes, na verdade? O que não tem precedentes é que o Papa foi ao território russo, foi à Rússia, ao fazer uma visita ao embaixador russo na Santa Sé. Para isso ter acontecido, houve dois pré-requisitos. Em primeiro lugar, o convite da parte do Estado russo, provavelmente do ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov. Em segundo lugar, o convite da parte do Patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa. Estes dois pré-requisitos eram indispensáveis para que o Papa entrasse no território russo, a embaixada russa junto da Santa Sé.

Algo que se esperava desde João Paulo II — por exemplo, uma visita a Moscovo.
Certo. Ir à Rússia foi o sonho de João Paulo II que ficou por cumprir. Agora, o que aconteceu quando o Papa visitou a embaixada russa durante mais de uma hora, de acordo com aquilo que me dizem, foi que o Papa esteve ao telefone com o Presidente Vladimir Putin. O que sabemos é que, depois da visita à embaixada russa, o Papa telefonou ao Presidente Zelensky, da Ucrânia. Isto significa que já existe, neste momento, uma mediação direta muito avançada diretamente entre o Papa e os presidentes da Rússia e da Ucrânia.

Obama and Raul Castro Give Joint Press Conference

A retoma das relações diplomáticas entre EUA e Cuba só foi possível devido à intervenção do Papa Francisco

Getty Images

Uma mediação informal.
Claro, informal. Mas, sim, acredito que as bases estão lançadas. Aquilo que sabemos até agora é que o Presidente francês, Emmanuel Macron, também está em contactos telefónicos com um e com outro. Do mesmo modo, há dias, o primeiro-ministro de Israel foi a Moscovo, teve uma conversa de três horas com o Presidente Putin, depois de telefonou ao Presidente Zelensky e de seguida viajou para Berlim, onde se encontrou com o chanceler Scholz. Porque é que o primeiro-ministro de Israel se envolveu? Temos visto relatos diferentes. Foram os oligarcas russos que pressionaram o governo israelita, ao mais alto nível, para que fizesse algo para salvar as suas contas — muitos são também cidadãos israelitas.

Quando olhamos para figuras como Emmanuel Macron, Naftali Bennett ou o Papa Francisco, qual poderia ser o melhor mediador para um conflito como este? Acredita que o Papa tem a gravitas, o peso que lhe permitiria negociar um acordo de paz que pudesse ser verdadeiramente eficaz?
O que o Papa tem, e em particular o Papa Francisco, que os líderes seculares não têm é uma relação direta, muito calorosa e ecuménica, com o Patriarca da Rússia. Curiosamente, se há alguma força na Rússia que consegue fazer a diferença e que consegue influenciar o governo russo — o de Putin ou outro qualquer — é a Igreja Ortodoxa. Porquê? Porque a Igreja Ortodoxa, depois do comunismo, deixou de estar subjugada ao Estado.

À doutrina ateísta do comunismo.
Certo. Deixou de estar subordinada a esse Estado e tornou-se numa parceira, que trabalha em harmonia com o Estado, tanto em assuntos domésticos como em assuntos internacionais. A Igreja Ortodoxa Russa é a única instituição independente extremamente poderosa — devido aos milhões de fiéis, que têm uma influência na liderança da Igreja — que pode ter uma influência no governo. Este é um grande ativo que o Papa Francisco tem: pode falar diretamente com o Patriarca Cirilo e o seu ministro para os Negócios Estrangeiros, Hilarion, com quem o Papa tem relações muito boas e muito bem estabelecidas.

A crise Rússia-Ucrânia também se joga nas igrejas. Pode a intervenção do Papa ajudar?

Mas estaria a Igreja Ortodoxa Russa disponível para agir como mediadora num acordo como este? Porque, mesmo dentro da Igreja Ortodoxa, o Patriarcado de Moscovo e a Igreja independente na Ucrânia também estão em guerra interna.
Bom, os assuntos são habitualmente compartimentalizados. O Patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, divulgou dois ou três comunicados desde a invasão, tal como o metropolita Onúfrio da Ucrânia, que está canonicamente sob a jurisdição de Moscovo. O metropolita Onúfrio pronunciou-se de modo muito vigoroso contra a invasão e comparou os russos a Caim, que tem inveja do seu irmão. Isto são coisas que depende do lugar onde estão. Onúfrio está na Ucrânia e está sob pressão e ataques, mesmo ataques físicos. As igrejas que pertencem à sua jurisdição estão a ser fisicamente atacadas. Há diferenças entre eles. Mas a diplomacia do Vaticano não se vai envolver nestes aspetos contenciosos e vai compartimentalizar as coisas. A primeira prioridade é assegurar a ajuda humanitária e os corredores para que os refugiados possam sair das áreas em conflito, bem como canalizar para lá medicamentos e outras coisas. À porta fechada, o resto está a acontecer — o trabalho real. Isto é algo que a diplomacia do Vaticano tem feito desde há vários séculos, com sucesso.

A complexa presença Ortodoxa na Ucrânia

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A religião predominante na Ucrânia é o Cristianismo Ortodoxo, mas a organização eclesiástica dos fiéis é bastante controversa e reflete, no panorama religioso, as mesmas divisões geopolíticas que estão na origem do atual conflito entre a Rússia e Ucrânia.

A principal organização ortodoxa presente na Ucrânia é a Igreja Ortodoxa Russa, liderada a partir de Moscovo pelo Patriarca Cirilo I e dirigida localmente pelo Metropolita Onúfrio de Kiev. No entender do Patriarcado de Moscovo, o território ucraniano é parte historicamente integrante da Rússia e, por isso, também do ponto de vista religioso é ao Patriarca de Moscovo que cabe a liderança espiritual dos cristãos ucranianos.

Contudo, ao longo dos últimos 30 anos, acompanhando o processo de independência territorial da Ucrânia, foram-se formando dentro do país diferentes organizações eclesiásticas ortodoxas independentes, que romperam as ligações com o Patriarcado de Moscovo e procuraram ser reconhecidas como independentes pelo restante mundo ortodoxo.

Esse reconhecimento aconteceu em 2019, quando o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu (considerado um primus inter pares no mundo ortodoxo), reconheceu a Igreja Ortodoxa Ucraniana como autocéfala, liderada pelo Metropolita Epifânio de Kiev.

Assim, existem atualmente duas grandes igrejas ortodoxas na Ucrânia: a metrópole ucraniana da Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Ortodoxa Ucraniana. A segunda é reconhecida como legítima, independente e autocéfala pelo restante mundo ortodoxo.

Também no plano religioso se verifica uma guerra aberta entre as duas igrejas (que, sublinhe-se, não têm qualquer diferença teológica entre si, apenas diferendos geopolíticos) — e o reconhecimento da autonomia da Igreja Ortodoxa Ucraniana levou a um grande cisma dentro da Ortodoxia quando o Patriarcado de Moscovo (a maior Igreja Ortodoxa do mundo) rompeu ligações com o Patriarcado de Constantinopla, ficando isolado dos restantes patriarcas ortodoxos.

“Na mediação do Vaticano, não há vencedores nem derrotados, têm de ultrapassar uma série de pressões”

O Papa Francisco e o Patriarca Cirilo encontraram-se pela primeira vez em 2016, em Cuba, e têm um segundo encontro agendado para este ano, talvez na Finlândia. Acredita, portanto, que as relações entre Roma e o Patriarcado de Moscovo serão cruciais para uma negociação de paz?
Nestas circunstâncias, tem-se falado menos de um encontro entre o Patriarca Cirilo e o Papa, tal como tinha sido agendado antes do dia 24 de fevereiro. Provavelmente, não vai acontecer um encontro entre os dois a não ser que as coisas se acalmem e seja alcançado algum tipo de cessar-fogo. Mas podemos ter a certeza de que a comunicação está a desenvolver-se.

"O que o Papa tem, e em particular o Papa Francisco, que os líderes seculares não têm é uma relação direta, muito calorosa e ecuménica, com o Patriarca da Rússia. Curiosamente, se há alguma força na Rússia que consegue fazer a diferença e que consegue influenciar o governo russo — o de Putin ou outro qualquer — é a Igreja Ortodoxa."

E acredita que o Papa Francisco conseguirá ter um poder real perante Vladimir Putin? Estará Putin disposto a ouvir o Papa Francisco?
É muito interessante. Nos últimos 20 anos, Putin encontrou-se com Bento XVI, com quem teve uma relação muito cordial. Foi durante o pontificado de Bento XVI que, pela primeira vez desde o tempo dos bolcheviques, o Vaticano e a Rússia trocaram embaixadores. Depois, Putin encontrou-se três vezes com o Papa Francisco. Em 2013, para exercer pressão com os Estados Unidos para não invadir a Síria. Depois, encontraram-se de novo em 2015. Aí, o Papa Francisco concordou em receber o Presidente Putin para poder exercer pressão sobre ele para que respeitasse os Acordos de Minsk e permitisse ajuda humanitária às pessoas na área de Donbass. E encontraram-se novamente em 2019, para discutir vários aspetos benéficos para a humanidade. Tendo em conta que o Presidente Putin se reuniu três vezes com o Papa, no Vaticano, para que em conjunto tenham sido capazes de chegar a acordos positivos, isso dá-nos margem suficiente para acreditar que a comunicação pode acontecer no estilo e nas técnicas do Papa Francisco — dar e receber, sem vencedores e sem derrotados. Sim, estou otimista.

Diria que a diferença entre a diplomacia do Vaticano e as diplomacias seculares é que o Papa Francisco evita escolher um lado e prefere ouvir os argumentos dos dois lados? Por exemplo, nas declarações que temos ouvido do Vaticano e do Papa Francisco nos últimos dias, a culpa não é colocada apenas num lado e ele prefere contextualizar o conflito. Isto pode ser benéfico para a mediação do conflito, por oposição a uma mediação feita por um país ocidental?
Isso é fundamental na diplomacia da Igreja Católica, que tem sido muito bem exercida pelo Papa Francisco e pelos seus diplomatas. Ouvir, mostrar empatia, procurar formas de entender as angústias dos outros, levá-los a entender os valores mais elevados da cedência para alcançar a paz. Isto são instrumentos que foram exercidos em 2014, nos detalhes, quando os dois lados chegaram a um impasse — as delegações de Cuba e dos EUA — e pediram ao Vaticano para intervir. Ambas as delegações foram levadas ao Vaticano e o cardeal Pietro Parolin reuniu-se com elas, separadamente, ouviu-as, falou com elas, e depois juntou-as novamente. E foi assim que o acordo foi preparado. É uma mediação em que não há vencedores nem derrotados, têm de ultrapassar uma série de pressões de todo o tipo de outras influências — e a inércia da guerra e do conflito é habitualmente difícil de quebrar.

Mas, se bem me lembro, quando em 2016 o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo se encontraram em Havana, o seu comunicado final menciona a crise na Ucrânia — dois anos antes tinha ocorrido a anexação da Crimeia —, mas fala apenas de hostilidades na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. Falam de confrontos, mas não colocam a culpa de um lado ou de outro. O Papa Francisco assinou esta declaração. Tendo em conta o estado atual desta guerra, em que vimos uma invasão total da Ucrânia por parte da Rússia, acha que o Ocidente compreenderia se o Papa Francisco não colocasse a culpa em Moscovo desta vez?
A Santa Sé não vai pressionar nenhuma das partes num sentido ou noutro. O que a Santa Sé faz é começar um processo de conversas, de negociações, e não pode ter a certeza dos resultados desse processo. Os homens não podem garantir o resultado. Começar o processo, tal como na história da diplomacia do Vaticano e do Papa, permite que o Espírito Santo entre em cena e guie. Todo o tipo de coisas, coisas inesperadas, podem começar a acontecer, desde que um diálogo honesto e sincero, cheio de empatia, se desenrole. O início do processo de negociações é o mais importante, o fator primordial que se espera para que seja possível ultrapassar os obstáculos.

Rencontre du pape François et du patriarche orthodoxe Kirill - Cuba

Em 2016, o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo assinaram uma declaração conjunta inédita

Gamma-Rapho via Getty Images

Mas a minha pergunta é se acredita que o Ocidente perceberia se o Papa Francisco, perante este cenário de invasão do território ucraniano, dissesse que isto não é necessariamente culpa da Rússia, que é preciso ouvir os dois lados. Isto não mancharia a opinião pública sobre o Papa Francisco?
O Papa Francisco é um monarca. Não tem constituintes, não tem comércio internacional, não tem interesses territoriais. É livre, o que é uma vantagem. Está livre de quaisquer preocupações terrenas, de quaisquer posições. É assim que ele se dirige a todos os líderes. Numa altura em que o conflito se está a intensificar, a sua sabedoria e o seu discernimento serão ainda mais poderosos. Estes líderes belicosos vão começar a ouvir a voz racional. Na tradição da Igreja Católica, um fator importante é saber o que está a acontecer no terreno, a realidade do conflito, os anseios dos diferentes povos, os grupos étnicos, as diferentes religiões que foram trazidas para este conflito. Estes elementos não são discutidos num conflito, mas vão-se tornando mais óbvios à medida que o conflito se intensifica. Voltamos às bases, às raízes: quem são aquelas pessoas? São cristãos, na sua maioria, divididos entre ortodoxos e greco-católicos. A Igreja Ortodoxa tem estado gravemente dividida — e as duas partes tornaram-se marionetas no conflito. Estes elementos vão, provavelmente, ter lugar no debate. A partir daí, as tréguas vão poder ser lançadas.

“Papa Pio XI disse que ‘quando se coloca a questão de salvar almas, sentimos a coragem de negociar com o diabo em pessoa'”

Diria que, ao mesmo tempo que medeia o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o Vaticano tentará também manter contacto com outros líderes mundiais, como os EUA e a União Europeia, para evitar uma escalada que conduza a um conflito nuclear mundial?
Sim. Sabemos que foi isso que sucedeu em 2014, no conflito com a Rússia. Na altura, a chanceler Merkel teve uma comunicação muito longa e direta com os diplomatas do Vaticano. Em conjunto, exerceram pressão sobre os dois lados em Donbass — Kiev e Moscovo — para implementarem o acordo de Minsk II. Esse acordo resultou desta comunicação ao mais alto nível entre Merkel, o Vaticano, e o Presidente francês da altura, Hollande, mas obviamente não foi implementado.

Com base na sua experiência e no seu conhecimento, o que pode contar sobre como funciona a diplomacia do Vaticano nos bastidores? Quem são as pessoas-chave, como é que o Vaticano organiza as reuniões?
Em primeiro lugar, o Vaticano tem os seus enviados, os núncios, tanto na Rússia como na Ucrânia. Aliás, o núncio na Ucrânia não saiu do país. Foi o único diplomata que não saiu de Kiev. O Vaticano coloca-se na melhor posição para conhecer a realidade, para conhecer a verdade, devido à presença dos diplomatas, mas ainda mais devido à presença de todo o tipo de missionários por todo o país, que estão espalhados por todo o lado, desde os lugares de maioria ortodoxa afiliada a Moscovo até aos lugares de maioria ortodoxa afiliada à Igreja independente de Kiev, mas também até ao Ocidente, aos greco-católicos. E o Vaticano trabalha com mapas étnicos, mapas linguísticos. Eles sabem qual é a realidade, o que depois lhes permite fazer uma apresentação correta aos líderes, confrontá-los com a realidade, quando os líderes estão numa bolha, são subjetivos. O Papa apresenta calmamente a realidade. Isto vem da lei natural, de São Tomás de Aquino e por aí fora. Isso representa uma mudança no pensamento e na perceção dos líderes e das suas comitivas. Quando alguém de fora tem esta informação toda sobre o que se está a passar e diz “vamos chegar a acordo”. Isto, naturalmente, acontece nos bastidores. Primeiro, ao nível dos núncios, depois ao nível do secretário de Estado, Parolin, e do seu ministro para as relações com os Estados, Paul Gallagher. E, claro, o Papa está totalmente envolvido.

O livro "God's Diplomats", de Victor Gaetan, conta como a diplomacia do Vaticano tem atuado ao longo dos anos

E há encontros que podem ocorrer no território do Vaticano? Por exemplo, entre os embaixadores da Rússia e da Ucrânia — ou até com membros do governo?
Bom, sabemos que o Papa já foi pessoalmente à embaixada russa. O embaixador russo é também um homem muito cultural. Foi ministro da Cultura na Rússia, nomeado por Putin, o que demonstra o quão importante é para a Rússia a sua posição no Vaticano. Nomeou um homem muito respeitado, que também é muito próximo da Igreja Ortodoxa, do próprio Cirilo. E os seus antecessores eram do mesmo calibre. Tanto o governo russo como a Igreja Ortodoxa Russa prestam uma atenção muito séria à relação com o Vaticano. Como é que isso acontece especificamente? Provavelmente, nunca saberemos os detalhes, a menos que alguém como o Presidente Obama, que falou publicamente sobre o assunto, revele que o Vaticano e o Papa estiveram envolvidos — e depois o Vaticano teve de dar mais informações. Mas não faz parte da tradição do Vaticano revelar, gabar-se, assumir os louros e tentar ganhar pontos.

O que podemos aprender com as intervenções diplomáticas do Vaticano no passado? Sei que tem escrito sobre o assunto, por exemplo, no que toca à revolução bolchevique, em 1917, a história da Nossa Senhora de Kazan, entre outros, que são momentos que mostram como a diplomacia do Vaticano é forte e intervém habitualmente nos conflitos.
Em primeiro lugar, acredito que há persistência para alcançar a paz. Posso dar-lhe o exemplo do Papa Pio XI, que foi muito criticado por ter entrado em negociações com Mussolini para reconquistar a soberania da cidade do Vaticano e o reconhecimento, na arena internacional, para que a Santa Sé pudesse intervir em assuntos diplomáticos. O Papa Pio XI disse, numa das suas citações mais célebres, que “quando se coloca a questão de salvar almas, ou de evitar danos às almas, sentimos a coragem de negociar com o diabo em pessoa”. Isto domina o pensamento e o comportamento de cada pontífice. De modo a salvar almas, de modo a salvar vidas, de modo a ganhar espaço para a Igreja, de modo a preservar os sacramentos, de modo a garantir a continuidade dos bispos, e por aí fora, entraríamos em diálogo até com o diabo. Porquê? Porque qualquer tirano poderá ter um instante de conversão. Os diplomatas do Vaticano seguem este preceito até aos dias de hoje, não porque sejam indiferentes aos potenciais crimes cometidos por tiranos, mas porque acreditam que todos os pecadores podem ser redimidos, podem converter-se de coração e podem mudar.

Ou seja, o Vaticano espera também que haja uma intervenção do elemento espiritual, de fé, neste processo de diálogo humano.
Sim. O Vaticano opera numa realidade diferente. Olha para os acontecimentos a partir de cima para poder ver com maior clareza — e não cede às emoções. É uma abordagem muito diferente, que não é praticada pelos líderes seculares, devido às circunstâncias, que são muito diferentes. É por isto que os diplomatas do Vaticano são respeitados: eles trazem a razão a uma mesa negocial. Trazem outro modo de olhar para as coisas e apresentam os valores do diálogo, do encontro, com o objetivo de alcançar a paz. E há cedências de ambos os lados. Não há vencedores nem perdedores — é um princípio fundamental.

Pope Francis Receives Russia's President Putin

Vladimir Putin tem visitado o Vaticano com frequência

Getty Images

“A chave está do lado do Presidente russo, do Presidente ucraniano e da margem de negociação que a diplomacia do Vaticano tiver”

O século XX está cheio de exemplos de como o Vaticano interveio em conflitos. Por exemplo, no caso russo, em 1917, quando a revolução bolchevique tomou conta do país e impôs um regime ateísta sobre a Rússia, qual foi a posição do Vaticano na altura?
É uma pergunta muito interessante. Na altura, o Papa Bento XV trocou telegramas com Lenine e falou com o seu núncio em Munique — porque o Vaticano não tinha relações diplomáticas com a Rússia czarista —, Eugenio Pacelli, o futuro Papa Pio XII. Pacelli, a pedido de Bento XV, encontrou-se com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Georgy Chicherin, com o objetivo de estabelecerem corredores para a ajuda humanitária e também para ganhar espaço para a Igreja Católica, que era muita importante em regiões como a Lituânia, e por aí fora. O Papa Bento XV forneceu ajuda humanitária à Rússia bolchevique, bem como o seu sucessor, até 1927. Foi Pio XI que parou a comunicação em 1927, porque não estava a chegar a lugar nenhum. Portanto, a comunicação com o diabo aconteceu, para salvar vidas, para salvar almas, para ganhar espaço para a Igreja Católica, a começar na revolução bolchevique. E continuou depois. E quem esteve envolvido nessas comunicações? O próprio Papa Bento XV e o futuro Papa Pio XII, o Papa mais anti-comunista da história.

Nos anos 60, com a crise dos mísseis de Cuba, o Vaticano também teve um posicionamento, certo?
Esse foi outro momento muito interessante, em que João XXIII, devido à sua tentativa de mediar a crise cubana, foi abordado por Norman Cousins, que era amigo do Presidente Kennedy e era o editor da Saturday Review, nos EUA. Cousins tornou-se um elo entre o Papa João XXIII, Kennedy e Nikita Khrushchov, o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. O então diretor da CIA foi visitar o Papa João XXIII, que na altura já estava a morrer de cancro, e o Papa teve uma intervenção diplomática com Kennedy e Khrushchov que salvou o mundo de uma catástrofe nuclear. João XXIII empenhou as suas competências diplomáticas através de uma intervenção radiofónica para comunicar com Kennedy e Khrushchov e lhes implorar que escolhessem a paz em vez da guerra. Ele deu aos dois chefes de Estado, especialmente a Khrushchov, uma oportunidade de recuarem na escalada sem parecerem fracos. Essa experiência inspirou o Papa, moribundo, a escrever a encíclica Pacem in Terris — um documento que foi partilhado com Khrushchov antes de ser publicado —, dirigida a todos os povos e publicada em jornais por todo o mundo, incluindo nos jornais Pravda e Izvestia na União Soviética.

No fim de contas, está confiante de que o Vaticano já está, nos bastidores, a dar passos importantes que podem conduzir a uma mediação por parte do Papa Francisco deste conflito?
Como muitos de nós, rezo e o Espírito Santo vai guiar todos os envolvidos, incluindo o lado russo, o lado ucraniano e todos os líderes de diferentes países que já se envolveram. O que noto é que os países da NATO já estão em guerra com a Rússia, ao enviarem armas, voluntários e por aí fora. Mas a chave continua a estar do lado do Presidente russo, do Presidente ucraniano e da margem de negociação que a diplomacia do Vaticano tiver para os trazer para algum tipo de reconciliação.

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