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Podem os livros trazer os mortos de volta?

Os livros ajudam os vivos a sobreviver num presente partido. Bruno Vieira Amaral escreve sobre a literatura como "monumento funerário e como salvação", mesmo quando não consegue mudar o passado.

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“O título deste capítulo é ‘Negociar com os mortos’ e a hipótese que levanta é a de que toda a literatura narrativa, e não apenas uma parte, e talvez até toda a literatura, seja motivada, no fundo, pelo medo e o fascínio pela mortalidade, por um desejo de empreender uma viagem arriscada ao Submundo e de trazer algo ou alguém de volta do mundo dos mortos”, escreve Margaret Atwood nas primeiras páginas de um ensaio incluído no livro precisamente intitulado Negotiating With the Dead.

A tese, como todas as teses gerais, é discutível, mas Atwood fornece múltiplos exemplos literários de autores e personagens que realizaram essa descida a um mundo desconhecido para trazer de lá um ente querido, das fronteiras a um tempo rígidas e fluidas entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, dos rituais e superstições culturais através dos quais, ao honrar os mortos, os vivos reconhecem as suas obrigações e são confrontados com a sua própria mortalidade.

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“On writers and writing”, de Margaret Atwood

O caso mitológico e literário mais célebre de uma personagem que passa para o lado de lá a fim de resgatar a amada é o de Orfeu, que arrisca uma descida ao inferno para trazer de volta Eurídice. Os deuses oferecem-lhe a possibilidade de resgatar a amada desde que Orfeu não ceda à tentação de olhar para ela até regressar ao mundo dos vivos. O desfecho trágico mostra o quão espinhoso é este empreendimento – exige um controlo total das emoções – daí que estas viagens e tentativas de contacto tenham sido ritualizadas e transformadas em momentos simbólicos, em metáforas vivas.

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A memória: do Panteão aos livros

Os rituais ligados ao Dia dos Fiéis Defuntos (ou Dia de Finados), não sendo os únicos, servem de exemplo do vai-vem constante entre as duas dimensões. Atwood nota que é comum esses rituais envolverem comida, uma forma de os vivos sinalizarem que não se esqueceram dos seus mortos e de os apaziguarem. Na minha adolescência, lembro-me por exemplo que os ciganos do meu bairro, quando abriam uma garrafa de cerveja, deitavam sempre um pouco da bebida para o chão. Diziam que se destinava aos seus mortos.

No livro The Work of the Dead: a Cultural History of Mortal Remains, Thomas W. Laqueur procura explicar o papel dos restos mortais enquanto alicerces da civilização, papel que atravessa todos os tempos e todas as culturas e que tem que ver com o facto tão óbvio que nem precisaria de ser enunciado de que “os vivos precisam muito mais dos mortos do que os mortos precisam dos vivos”. É por precisarmos tanto dos mortos e por ser quase insuportável viver com a consciência da nossa mortalidade que o autor considera que “a obra dos mortos talvez seja o maior e mais misterioso triunfo cultural” do homem.

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“The Work of the Dead”, de Thomas W. Laqueur

Numa época de descrença, sobretudo na sociedade ocidental, é curioso notar como os rituais relacionados com a morte não deixaram de inspirar respeito e que uma parte fundamental da nossa ideia de civilização continue a revelar-se na forma como tratamos os nossos mortos, seja nas discussões sobre quem é digno de ir para o Panteão ou no debate recente sobre a cremação dos entes queridos. Laqueur afirma que a obra dos mortos é uma espécie de “magia multifacetada em que acreditamos contra a nossa vontade. […] a morte não é nem nunca foi um mistério. O mistério é a nossa capacidade enquanto espécie, coletiva e individualmente, de retirar tanto significado da ausência e, mais especificamente, de um pobre corpo, despido e inerte”.

Nesse sentido, e é também essa a opinião de Atwood, a literatura é outro meio de atribuirmos significado à ausência e valor aos restos mortais, ou seja, é também uma operação ritualizada de resgate dos mortos. Não é o aspirar à eternidade através dos livros, antes o esforço de se recuperar para o mundo dos vivos, através de um trabalho de memória, arqueologia e investigação, as pessoas e as realidades sobre as quais a morte lançou um manto de incerteza e de esquecimento.

Sobreviver na memória dos vivos é uma forma de eternidade, ainda que, do ponto de vista do morto, claramente insatisfatória (há a célebre frase de Woody Allen: “não quero ser eterno através da minha obra, quero ser eterno não morrendo”).

No seu pequeno grande livro As Pequenas Memórias, José Saramago escreve uma passagem sobre um amigo de infância que morreu. Sem ser num registo ensaístico, o excerto é uma exclamação teórica, um resumo em tom evocativo da responsabilidade pessoal e da missão do escritor: “Quero crer que hoje ninguém se lembraria do José Dinis se estas páginas não tivessem sido escritas. Sou eu o único que pode recordar quando subíamos para a grade da ceifeira e, mal equilibrados, percorríamos a seara de ponta a ponta, vendo como as espigas eram cortadas, e cobrindo-nos de pó. Sou eu o único que pode recordar aquela soberba melancia de casca verde-escura que comemos na borda do Tejo, o meloal dentro do próprio rio, numa daquelas línguas de terra arenosa, às vezes extensas, que o Verão deixava a descoberto com a diminuição do caudal. […] E também sou eu o único que pode recordar aquela vez em que fui desleal com o José Dinis.”

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“As Pequenas Memórias”, de José Saramago

Ao escrever, o escritor repara injustiças e desafia a morte, cujo principal trunfo é o esquecimento absoluto (“é lógico resistirmos ao esquecimento porque essa é a derrota final perante a nossa grande inimiga”, escreveu a escritora espanhola Rosa Montero). Mesmo para quem não acredita na vida após a morte ou na eternidade da alma, uma das formas de lidar com a mortalidade passa por acreditar que à inevitável morte física não tem de corresponder o esquecimento, que esse, sim, seria a morte definitiva (seria a diferença entre o Hades e a Geena). Sobreviver na memória dos vivos é uma forma de eternidade, ainda que, do ponto de vista do morto, claramente insatisfatória (há a célebre frase de Woody Allen: “não quero ser eterno através da minha obra, quero ser eterno não morrendo”).

Por essa razão, e pelo desejo que o filho consume a vingança, o fantasma do pai de Hamlet pede-lhe que não se esqueça dele. É também à memória que o ladrão crucificado ao lado de Jesus apela. É uma questão importante. O homem não pede a Jesus que o salve daquela situação, que o poupe ao sofrimento. Pede-lhe que não se esqueça dele: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino.” Os escritores, como se sabe, não têm reinos, têm livros e é nos livros que respondem aos apelos reais ou imaginados dos seus mortos.

Perdas concretas

“Como não tive filhos, o que de mais importante me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isto refiro-me à morte dos meus entes queridos.” É assim que Rosa Montero abre o seu livro A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te, escrito após a morte do marido. A decisão de escrever um livro sobre o processo de luto (embora o livro não seja apenas isso) não foi imediata (“a verdadeira dor é indizível. Se conseguimos falar do que nos angustia estamos com sorte: significa que não é assim tão importante”), até por uma questão de pudor.

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“A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te”, de Rosa Montero

Durante muito tempo, Rosa Montero considerou que “fazer uso artístico da própria dor” era uma “indecência”. Com o tempo, mudou de ideias e chegou à conclusão que “é uma coisa que todos nós fazemos: embora nos meus romances evite com particular afinco a autobiografia, simbolicamente estou sempre a lamber as minhas feridas mais profundas.” E não haverá ferida mais profunda do que a morte daqueles que amamos. O que incentivou a escritora espanhola a escrever o livro foi, em parte, o desafio da sua editora para escrever um pequeno livro sobre Marie Curie.

Na história da primeira mulher a receber um Prémio Nobel, Rosa Montero encontrou um espelho do seu próprio sofrimento porque aos 38 anos, Marie Curie perdeu o marido, Pierre Curie, num acidente. Essa ligação com um processo de luto alheio, permitiu a Rosa Montero escrever um livro que, abordando a sua própria experiência de perda, respira fora desse emaranhado de dor, organiza o sofrimento, tenta conferir-lhe um sentido: “sei que escrevo para tentar atribuir ao Mal e à Dor um sentido que, na realidade, sei que não têm.” Esse sentido precário que procuramos é como a “magia multifacetada”, de que falava Laqueur, em que acreditamos apesar de nós.

Em Os Níveis da Vida, Julian Barnes realizou um idêntico exercício literário sobre o luto. O livro foi escrito após a morte da mulher, a agente literária Pat Kavanagh, e da mesma forma que Rosa Montero usou a biografia de Marie Curie como espelho e filtro da sua própria dor, Barnes trabalhou sobre uma metáfora, a do balonismo. Mas em vez de ascender aos céus, na terceira parte do romance, intitulada “Perda de Profundidade”, Barnes desce aos abismos da dor e do luto. A literatura ergue-se como monumento funerário e como salvação, na medida em que, através dela, o escritor procura conferir sentido à ausência, relevar a importância e o significado do lugar que ficou vazio: “os escritores acreditam nos padrões que as suas palavras formam, e esperam e confiam que eles produzam ideias, verdades, histórias. É sempre essa a sua salvação, com ou sem dor.”

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“Os Níveis da Vida”, de Julian Barnes

Barnes sabe que, após a morte de Deus, as descidas arriscadas a que se referia Atwood deixaram de ser possíveis, daí o título “Perda de Profundidade”: “Outrora, há muito tempo, podíamos descer ao Submundo, onde os mortos continuavam a viver. Hoje, para nós, essa metáfora perdeu-se […]” Ao contrário de Orfeu (Barnes relata a experiência de assistir à ópera de Gluck, Orfeu e Eurídice), não podemos negociar com os deuses uma viagem ao inferno: “Perdemos as velhas metáforas e temos de encontrar novas. Não podemos ir lá abaixo como ele [Orfeu] foi. Por isso temos de ir lá abaixo de outra maneira, ir buscá-la de outra maneira.”

Os mortos nas páginas dos romances

Perdida a metáfora, onde é que os mortos continuam a viver, onde é que os podemos encontrar? Onde sempre viveram. Na memória e nos sonhos dos vivos: “Ainda podemos ir lá abaixo em sonhos. E podemos ir lá abaixo na memória.” Barnes conta que foi essa perceção que lhe limpou do espírito a ideia do suicídio: “Percebi que, se ela ainda vivia algures, era na minha memória. […] Se estava em algum sítio, era dentro de mim, interiorizada. Era normal. E era igualmente normal – e irrefutável – que eu não podia matar-me, porque assim estaria a matá-la também.” Na verdade, a descida na memória é sempre uma viagem ao fundo de nós mesmos: “Carregamos os nossos mortos às costas […] Ou então somos relicários dos nossos entes queridos. Trazemo-los cá dentro, somos a sua memória”, escreve Rosa Montero.

Sendo impossíveis de controlar, os sonhos oferecem no entanto um consolo real. Há alguns meses, em entrevista ao Jornal de Negócios, o médico Francisco George falou sobre a morte da mulher e de uma filha num acidente. O jornalista perguntou-lhe como lidava com o luto: “Não esquecer. Deixar o subconsciente tratar de nós sem ajudas, sem interferências sem psicólogos, sem psiquiatras, sem comprimidos. Deixar funcionar as nossas defesas. Por exemplo, o sonho é muito compensador. Quando sonho com a minha filha e a minha mulher fico compensado. São sonhos bons. É como interromper as saudades.” Barnes diz que os sonhos são como “são porque já há suficiente arrependimento e autocensura no tempo vivido, real. […] são sempre fonte de consolação.” Curiosamente, em Os Níveis da Vida afirma que a memória, ao contrário do que imaginava, é mais falível do que os sonhos, um bilhete que nem sempre dá acesso ao Submundo.

A escrita, as palavras, são a única forma de colmatar a ausência, de tornar tolerável o presente, de recriar, na medida do possível, a presença do ser amado. Os livros sobre a perda são monumentos funerários, jazigos públicos de dores privadas.

“Afundamo-nos em sonhos e afundamo-nos na memória.” Barnes lembra os conselhos bem-intencionados de quem quer ajudar os outros a ultrapassar a perda sugerindo que deixem de viver no passado e agarrem o presente. Só que o presente não é apenas esquivo, como está saturado de uma ausência. Noutro livro de homenagem à amada que morreu (Fernanda, memorial de Ernesto Sampaio à sua mulher, a atriz Fernanda Alves), o autor escreveu que “através da morte, do «morrer», o que nos aparece com mais força é o carácter inapreensível do presente, essa ilusão que oscila entre dois sorvedouros, o passado e o futuro”. Como é que é possível viver num tempo onde se abriu a cratera profundíssima da ausência?

A escrita, as palavras, são a única forma de colmatar a ausência, de tornar tolerável o presente, de recriar, na medida do possível, a presença do ser amado. Os livros sobre a perda são monumentos funerários, jazigos públicos de dores privadas. São também viagens pessoais a lugares inóspitos de onde se regressa, sim, mas com o quê? Com os mortos? Com uma ilusão consoladora mas fugaz?

Numa entrevista ao jornal The Guardian, o crítico literário James Wood disse que “os romances trazem os mortos de volta às páginas apenas para os matarem uma segunda vez, para os condenarem ao pretérito perfeito. A magia da ficção é uma ressurreição aparente”. Isso acontece não só na “mecânica da ficção” mas também na dinâmica da memória. Julian Barnes diz que quando a memória lhe falha “parece que ela me escapa pela segunda vez: primeiro perco-a no presente, depois perco-a no passado”. Contudo, isso não significa que os rituais de celebração dos mortos – em que a literatura também se inclui – sejam inúteis. Tal como os restantes rituais, a literatura não traz ninguém de volta, mas ajuda os vivos a sobreviver num presente partido, mais que imperfeito.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015.

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