Era um dos cinco jovens que estavam com Rúben Cavaco quando tudo se precipitou na madrugada de 17 de agosto, pouco passava da 1h30 da manhã. Olha nos olhos e conta a sua história, enquanto vai fumando nervosamente um cigarro. Esteve diretamente envolvido na “pequena briga” e conta, com gestos firmes, como tudo terá acontecido. Queixa-se de ter sido provocado no interior do Koppus Bar, bem no centro de Ponte de Sor, admite a troca de agressões, mostra uma marca na zona da boca, invisível a olho nu, e lança pormenores que contradizem em grande parte a versão apresentada pelos gémeos iraquianos Haider e Ridha Ali. À medida que vai contando como tudo terá acontecido queda-se num detalhe que repete com insistência: o Rúben não teve qualquer envolvimento na rixa.
“Ele estava lá fora [durante a troca de agressões], mas nem agiu. Ele não é assim. Sempre foi um puto calmo. Nunca deu uma chapada na vida, nem nunca brigou na vida. O Rúben não fez nada”, garante o amigo, que prefere não ser identificado. São poucos os que querem.
Não é o único a garanti-lo. Em Ponte de Sor, por esta altura uma cidade agitada pelo rodopio de jornalistas e carros de reportagem, onde todas televisões e conversas parecem estar sintonizadas no mesmo canal, as pessoas que conhecem o jovem de 15 anos vão traçando o retrato de um miúdo popular, que gosta de “beber uns copos e falar com as gaiatas“, mas que nunca se meteu em confusões. Um miúdo muito próximo da mãe, com quem deixou Prior Velho para se fixar em Ponte de Sor. Do pai de Rúben pouco se sabe e são poucos os que querem adiantar grandes detalhes. O padrasto do jovem, Marco Silva, quem melhor podia ajudar a falar da família de Rúben, foi aconselhado pelo advogado a não conversar mais com jornalistas depois de na véspera ter admitido que podia existir um terceiro envolvido no caso. Aparentemente, não passará de um rumor, criado a partir de um relato de uma das testemunhas que terá confundido um dos homens que tentava ajudar Rúben com um terceiro agressor. Mas é impossível saber com certeza.
De Rúben sabe-se, mesmo assim, que é um benfiquista convicto, apaixonado por futebol e motocross. Craque quanto baste no snooker, frequenta um curso especial para alunos com fraco rendimento na escola. “Imaturo”, mostra pouco interesse em prosseguir os estudos. Mas está muito longe de ser problemático: quem com ele trabalha de perto garante que nunca deu mostras de ter um perfil agressivo. Bem pelo contrário.
É o que diz Pedro Lopes, diretor de turma de Rúben, a frequentar atualmente o 6.º ano de escolaridade num curso PIEF (programa integrado de educação e formação), integrado na área de exploração vocacional, que pretende dar “a alunos com mais de 15 anos que manifestam algumas dificuldades a possibilidade de concluírem o ensino básico”. Rúben está há um ano neste programa, ainda que com claros sinais de “falta de empenho”. É um aluno com “capacidades”, mas que não “está a explorar o seu potencial”, nem “demonstra vontade de concluir a escolaridade”, lamenta o professor.
Começaram a trabalhar praticamente do zero, com a ajuda da família. E houve melhorias ao longo do ano letivo, sobretudo na questão da assiduidade. Já perto do final do ano, Rúben acabou por envolver-se num projeto que surpreendeu o professor: uma horta pedagógica em que os alunos mais velhos eram convidados a trabalhar com crianças do pré-escolar e do ensino primário. “Foi o Rúben que pediu para integrar esse projeto. É curioso porque não parecia o estilo dele. Mas participou e teve uma participação muito positiva. Acabou por mostrar alguma apetência para lidar com crianças. Quem sabe não estará aí uma possível vocação”, comenta Pedro Lopes.
Este último aspeto e o facto de “nunca ter havido uma situação de agressividade que envolvesse o Rúben” deixam poucas explicações para aquilo que aconteceu na madrugada de 17 de agosto. “Estou muito surpreendido. O Rúben gostava de provocar os colegas, mas sempre em tom de brincadeira. É ainda muito menino. Mas nunca teve um comportamento agressivo. De maneira alguma”, garante o professor.
O perfil que vai sendo desenhado parece contrariar um momento-chave da versão dos gémeos iraquianos. De acordo com Haider e Ridha, depois da troca de agressões os dois voltaram ao local. Acabaram por encontrar apenas a GNR, que os acompanhou a casa. Então, decidiram voltar uma segunda vez para recuperarem os objetos que tinham perdido durante as agressões. E foi aí que encontraram Rúben, sozinho. O jovem de 15 anos terá então provocado um dos irmãos, para logo depois o agredir na cabeça e no ombro, antes de começar a correr. Seria travado mais à frente e agredido violentamente. Mas nem o histórico de Rúben parece indiciar este tipo de comportamento, nem a descrição dos acontecimentos parece fazer sentido: o local onde Rúben foi deixado praticamente inconsciente, com um traumatismo crânio-encefálico e várias fraturas, fica a largas centenas de metros do bar onde tudo começou. E estas não são as únicas contradições nas duas versões apresentadas. Longe disso.
Muitas contradições
Na cidade alentejana, a regra parece ser uma: o caso ganhou tal atenção mediática que são poucos os que querem falar sobre os detalhes daquela noite. Os comentários são lançados à surdina, longe das câmaras de televisão. A desconfiança é muita e o receio de dizer alguma coisa que contrarie a versão oficial dos factos também.
As pessoas envolvidas no caso são outra condicionante. O grupo que acompanhava Rúben Cavaco é considerado problemático. Não é preciso procurar muito para ouvir dizer que “já armaram confusão muitas vezes”. Junto à escola secundária e nos bares que costumam frequentar são bem conhecidos. Um dos jovens envolvidos na primeira troca de agressões chegou mesmo a admitir ter fugido do local porque já tinha tido problemas com a polícia. O Observador tentou esclarecer esta questão junto da GNR de Ponte de Sor e de Portalegre, que preferiram não comentar a informação.
O amigo de Rúben que acedeu a contar o seu testemunho ao Observador admite que já têm tido os seus “conflitos” na terra. Mas corrige logo a seguir: “Toda a gente tem problemas”. Ainda assim, quando confrontado com um comentário em particular no Facebook, que os dava como ex-alunos problemáticos, reage mal. Nega que assim seja e atira: “Esse aí já está marcado“.
No bar onde tudo começou, os detalhes daquela noite são repetidos de forma mecânica. “O grupo do Rúben estava numa mesa a comer quando entraram os iraquianos. Passado um bocado, começaram a falar alto e a ameaçaram-se uns aos outros. E eu pedi para se acalmarem. Acabei por separá-los e pô-los na rua. Do que se passou lá fora não sei nada. Sei é que todos acabaram por sair sem pagar”, garante o proprietário do espaço.
Escondido numa rua estreita, transversal à avenida principal, o espaço faz lembrar um pequeno pub irlandês, com os bancos de madeira forrados com tecido verde-azulado. Cabem algumas dezenas de pessoas e as paredes estão impregnadas por um cheiro intenso a tabaco. O gerente explica não ter percebido como tudo começou: “Daqui do balcão não consegui ver“. Assegura que nenhum dos jovens envolvidos consumiu álcool naquele estabelecimento, uma versão corroborada por várias testemunhas. Sobre o grupo de Rúben, não se estende em comentários e garante que ali nunca provocaram desacatos. Ao longe, num canto do bar, uma outra pessoa diz precisamente o contrário: os rapazes são conhecidos por provocarem confusões com alguma frequência. “O Rúben é um bom miúdo, nunca se meteu em problemas. Mas as companhias… Se eles não tivessem reagido como reagiram talvez nunca tivesse acontecido o que aconteceu“, lamenta.
A principal discrepância nas duas versões apresentadas reside, precisamente, sobre o que aconteceu no interior do bar. De acordo com os amigos de Rúben, os irmãos iraquianos chegaram sozinhos e juntaram-se a outros dois jovens, colegas de Haider no aeródromo de Ponte de Sor. Poucos minutos depois, Haider despiu as calças para mostrar uma tatuagem que tem na perna. O grupo de Rúben considerou aquele comportamento impróprio, chamou-o a atenção e pediu para que parasse. Haider reagiu mal e, ainda no interior do bar, começou a provocar os portugueses — terá mesmo dado um encontrão a um dos jovens.
“Quando saíram três amigos nossos para fumar eles já estavam do lado de fora. Um dentro do carro e outro do lado de fora. E trocaram os primeiros empurrões”, garante um dos amigos de Rúben. A partir daí tudo se precipitou, com agressões de parte a parte. “Quando um dos irmãos abala de carro”, deixando o outro para trás, “aí já não fizemos nada, porque já tinham chamado a GNR”, assume, antes de acrescentar: “Demos uns murros e levamos uns murros. Não foi nada do outro mundo. Se fossemos seis a bater, como eles dizem, eles tinham morrido ali, não é?“.
Os dois jovens iraquianos contam uma versão diferente. Depois da confusão no interior do bar, decidiram sair e, quando Haider já estava no carro, Ridha foi rodeado por cinco ou seis pessoas e acabou por ser agredido. O irmão, que saiu em seu socorro, também.
Uma terceira testemunha que estava com os irmãos iraquianos no momento dos desacatos conta uma versão mais próxima da dos irmãos. Em declarações à SIC, o jovem identificou-se como colega de Haider no aeródromo. Tinha conhecido os irmãos naquela noite. Contou como estivera com os gémeos noutro bar, onde os dois jovens consumiram “várias bebidas brancas e shots“. “Estavam bem bêbados. E o barmen [do Koppus] não quis servir-lhes bebidas”. Pouco mais de dez minutos depois de entrarem no bar, “[Haider] mostrou o traseiro e os portugueses ficaram furiosos. Tentei travá-los [aos gémeos] e eles pararam. Saíram do bar e os portugueses seguiram-nos“. E foi nesse momento que começaram as agressões.
Mesmo esta testemunha não faz qualquer referência direta ao envolvimento de Rúben nessa breve troca de agressões. Os relatos que foram sendo recolhidos parecem ajudar a compor uma tese que ganha força em Ponte de Sor: o jovem de 15 anos era o tipo errado, no local errado, à hora errada. O alvo possível dos gémeos iraquianos, que o reconheceram como estando no bar e como sendo membro do grupo que horas antes os tinha agredido.
“Olha que isto agora não é a GNR, é a Judite”
A poucos metros do Indiferente, onde os dois jovens iraquianos começaram a noite, fica o local onde Rúben foi encontrado prostrado no chão. Na noite de terça-feira, uma semana depois do incidente, uma equipa de jornalistas tenta fazer a reconstituição do que aconteceu naquela noite e o grupo de amigos de Rúben junta-se para assistir ao desfile de ambulâncias, câmaras e repórteres.
Reparam na presença do Observador, mas continuam à conversa. Estão revoltados com o que aconteceu a Rúben e com o que tem sido transmitido pela comunicação social. As agressões no Koppus Bar vêm à conversa. Um dos jovens aproxima-se e começa a contar a sua versão dos factos. Começa por dizer que os gémeos iraquianos baixaram as calças e que os portugueses não se ficaram. É imediatamente interrompido por outro amigo de Rúben, que o acusa de estar a inventar. Os ânimos exaltam-se. Ninguém quer dizer nada que possa contrariar a versão oficial do grupo: foram provocados pelos irmãos iraquianos e apenas responderam às agressões. Pouco depois alguém aconselha o jovem a ter cautela com o que diz: “Olha que isto agora não é a GNR, é a Judite [Polícia Judiciária]”. A conversa termina ali.
No bar onde os dois jovens iraquianos começaram aquela noite, lugar de passagem habitual para os alunos do aeródromo, poucos se recordam deles. Eram discretos e tinham chegado há pouco tempo à cidade. Haider, o único dos gémeos que estuda na escola de pilotos, instalara-se há sensivelmente três semanas em Ponte de Sor, depois de ter concluído a componente teórica em Cascais. Ridha estava apenas de visita. Sobre aquela noite em particular, o gerente garante não se recordar de ter vendido bebidas alcoólicas aos dois irmãos, mas assegura que “nunca tinham provocado distúrbios“, nem nunca tinham tido comportamentos que pudessem ser considerados provocatórios para os restantes.
O apartamento onde estavam os dois irmãos fica precisamente nas traseiras do bar Indiferente. Nos cafés e restaurantes circundantes vão repetindo que os jovens eram “bem-educados” e que nunca deram problemas. Uma vizinha de Haider conta que, certa vez, “muito antes” deste incidente, o jovem iraquiano partiu o vidro de entrada. Não adianta detalhes, mas explica que, depois de a GNR ter sido chamada ao local, Haider assumiu a culpa e prontificou-se a pagar. E o caso ficou encerrado, embora a porta do edifício continue forrada a cartão.
Foi a única vez em que a presença dos jovens iraquianos foi notada por algo extraordinário. A barreira linguística era, em muitos casos, praticamente intransponível. Até à noite em que agrediram violentamente o jovem de 15 anos, os dois tinham passado perfeitamente despercebidos em Ponte de Sor.
“Estas coisas sucedem-se sistematicamente”
Santana-Maia Leonardo, advogado de Rúben Cavaco, ajuda a explicar o que terá acontecido naquela noite. “Ponte de Sor só tem um bar aberto até às 4h da manhã, onde se juntam novos, velhos, camadas mais favorecidas, com outras menos favorecidas. Muitos desses jovens não têm emprego, outros trabalham no campo e bebem uns copos a mais ao fim de semana. Um manda uma boca, o outro responde… Há uma altura da noite em que há sempre confusão“, lembra o advogado. “Estas coisas sucedem-se sistematicamente, mas o que aconteceu depois ao Rúben foi uma anormalidade“.
Ainda assim, o advogado diz acreditar “que tudo se irá resolver a contento de todas as partes”, não excluindo a hipótese de chegar a um acordo com a embaixada iraquiana. É um cenário que não está ainda em cima da mesa, insiste, mas que não está afastado à partida.
“Temos a certeza que os pais dos jovens iraquianos estão a passar um martírio. Mas a família do Rúben não se alimenta de qualquer ódio, rancor ou sentimento de vingança. Só querem é que o Rúben fique bem”.
Esta quinta-feira, o ministério dos Negócios Estrangeiros português anunciou o pedido formal de levantamento da imunidade diplomática dos gémeos iraquianos, filhos do embaixador do Iraque. As autoridades iraquianas terão agora de se pronunciar sobre o pedido. Se for aprovado, a justiça portuguesa pode então dar sequência ao processo penal contra os dois jovens, que já assumiram a autoria das agressões.
Rúben Cavaco foi encontrado inconsciente por funcionários que recolhiam o lixo durante a noite. Um deles, conseguiu apurar o Observador, está “chocado” com tudo o que viu. Mas recusa-se a falar com jornalistas. Quanto a Rúben, numa primeira fase, o jovem foi assistido no centro de saúde, mas teve de ser transportado de helicóptero para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tinha um traumatismo crânio-encefálico e várias fraturas. As pessoas que o viram no chão dizem que estava desfigurado e irreconhecível. No hospital, foi submetido a uma intervenção cirúrgica à cabeça e ao rosto. Saiu do coma induzido na terça-feira, mas os primeiros sinais inspiravam cautelas — o jovem não terá reconhecido a mãe. Agora, mais de uma semana depois do incidente, Rúben já fala, está consciente e reconhece a família. Os próximos tempos permitirão saber a extensão dos ferimentos e se o jovem de 15 anos ficou ou não com danos neurológicos permanentes.