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Vítor Pereira preparava-se para ver a filha, quando dois homens, armados com Kalashnikov, se aproximaram e dispararam. O ataque, no sábado de carnaval, no Bairro dos Navegadores, em Porto Salvo, acabou por ser gravado em vídeo pelos vizinhos e as imagens começaram a circular. O crime daquela noite foi de uma violência pouco comum, tanto no bairro como no país. O cabo-verdiano de 35 anos não era presença habitual naquela rua, mas quem planeou assassiná-lo sabia bem onde tinha de estar àquela hora, acredita a Polícia Judiciária. Tudo aconteceu em segundos. No final, os autores fugiram e o corpo de Vítor ficou estendido no chão, no hall do número 8 da rua Gonçalo Afonso.
Ao fim de poucos dias de investigação, o puzzle deste assassinato com recurso a armamento de guerra começa a ficar completo. Para a Judiciária, apurou o Observador, é já praticamente certo que a vítima se dedicava ao tráfico de droga. Apesar de ter já uma posição de relevo — é descrito como um “player relevante e violento” –, terá tentado disputar território com uma associação criminosa internacional.
“Em causa está um esquema entre a Europa (em que Portugal surgia como ponto de passagem de droga, cocaína) e o Brasil, a América Latina”, explicou uma fonte conhecedora da investigação, adiantando que se tratou de “crime puro e duro” relacionado com o tráfico de grandes quantidades de droga.
Em causa, sabe o Observador, não estava a “venda ao consumidor”, nem nada que se parecesse, mas o escoamento de “centenas de quilos ou toneladas de cocaína, que chegam a território nacional e que é necessário ser encaminhada”. Além do controlo de território, a Polícia Judiciária está também a investigar a hipótese de terem existido “banhadas”, ou seja, roubos de droga entre grupos rivais. Naquele dia, Vítor terá caído num “ardil”.
O ataque com armas de guerra, num bairro habituado a tiros
Ouvir tiros no Bairro dos Navegadores já não é uma novidade. Por isso, quando o som de quatro disparos ecoou do hall do prédio, houve quem não tivesse dado importância.
“Infelizmente, tiroteios no Bairro dos Navegadores é algo constante. Acontece quase todas as semanas e as autoridades não o conseguem impedir”, começa por contar ao Observador José Oliveira, presidente da associação de moradores da zona, acrescentando que só se apercebeu da gravidade do que aconteceu “na manhã seguinte”.
Contudo, nem todos foram como José Oliveira e ignoraram o barulho descrito como habitual no bairro. Houve quem não conseguisse evitar ir à janela e que até chegasse a tempo de gravar o quinto — e último — disparo.
No vídeo amador, captado por vizinhos, veem-se dois homens vestidos de preto da cabeça aos pés a fugirem da porta do prédio onde tinham disparado. Nas mãos, levam o que aparentam ser metralhadoras do tipo Kalashnikov. As armas utilizadas, de fabrico russo e usadas por diversos exércitos ligados à antiga União Soviética, levantaram logo várias questões à investigação. Primeiro, mostravam que não se tratava de um crime comum e depois poderiam ter sido trazidas de um outro país para um ajuste de contas por problemas relacionados com os tempos em que a vítima passara em França — e onde já tinha sido alvo de uma tentativa de homicídio.
Segundo apurou o Observador, para já a Polícia Judiciária acredita que tudo o que aconteceu foi planeado em território nacional. Uma tese reforçada pelos contactos com as autoridades francesas e de outros países.
Nas imagens que circularam nas redes sociais, é possível ver os dois homens a correr junto aos carros, em direção às traseiras de um prédio — sendo que a determinado momento, um deles volta atrás.
Com o rosto destapado, volta a aproximar-se da porta onde Vítor está estendido, baixa-se e apanha o que aparenta ser um telemóvel. Faz um último disparo e corre em direção a um Mercedes preto que o espera.
Dentro do carro estariam no total três pessoas – uma delas esteve sempre ao volante para que a fuga fosse mais rápida. Seguiram, segundo a CNN, pela A36, também conhecida como CRIL, até Odivelas, onde o carro foi encontrado, dias depois, já totalmente carbonizado.
No Bairro dos Navegadores, este ataque não foi centro das conversas de café, como muitos outros costumam ser. “Geralmente, quando acontece alguma situação de violência, os moradores costumam falar sobre isso. Mas, desta vez, não ouvi ninguém a falar do assunto”, garante ao Observador uma pessoa que trabalha no bairro e que só aceitou falar sob a condição de anonimato.
Para explicar o silêncio pode estar o facto de poucos conhecerem a vítima na zona – apesar de já ter havido diversas homenagens dirigidas a “Tamboro”, como era conhecido, nas redes sociais –, destaca José Oliveira. No entanto, pode haver outra razão.
“Ficámos com medo porque a emboscada, da maneira como foi feita, podia ter matado mais pessoas”, destaca ao Observador. “Àquela hora, é normal as pessoas entrarem e saírem dos prédios ou estarem simplesmente na rua. Felizmente, naquele dia, como estava a chover e mau tempo, as pessoas ficaram em casa. Mas se alguém tivesse saído podia ter sido morto.”
“Esperamos que não volte a acontecer e que as autoridades façam o que têm de fazer para garantir a segurança no bairro”, acrescenta, fazendo algumas críticas à forma como os autores do crime escaparam sem serem intercetados. “Ninguém pode entrar aqui, com uma arma daquele calibre, disparar, entrar num carro, ir embora e a polícia não dar conta disso”, garante.
Já em relação à forma como o crime foi orquestrado, surgiram logo algumas suspeitas de ligações da vítima a “máfias”. No Bairro dos Navegadores, fala-se também num “ajuste de contas”, sendo o tráfico de droga a causa mais apontada pelos moradores.
A segunda vida de Vítor Pereira
A vida de Vítor Pereira há muito que era feita entre Portugal e França, mais concretamente entre a grande Lisboa e Marselha. E não só por aqui viu a vida em risco por conta de disputas ligadas ao tráfico. Há cinco anos chegou a estar internado num hospital em Nice, depois de uma tentativa de assassinato.
Os inspetores já recolheram dados sobre esse outro crime. Até porque as motivações e a atividade da vítima em França acabaram por ser relevantes para a investigação que agora corre em Portugal. A tentativa de homicídio em França aconteceu, aliás, por razões idênticas, “mas em quadros diferentes”. Ou seja, também estava em causa uma divergência com uma fação rival.
Ao que o Observador apurou, o autor da primeira tentativa de assassinato já foi condenado e encontra-se atualmente a cumprir pena de prisão naquele país. Foi depois dessa tentativa de homicídio que Vítor regressou de forma mais definitiva a Portugal. Durante a última semana foram pedidos pelo Observador mais esclarecimentos às autoridades judiciais francesas, assim como às unidades de Saúde em Nice, mas não houve qualquer resposta até à publicação deste artigo.
Após contactos com a polícia francesa e autoridades de outros países, a Judiciária já terá descartado que o ataque de Oeiras tenha sido planeado fora das fronteiras portuguesas, que tenha sido por divergências em França ou mesmo que as armas tenham vindo de outro país. O que estava em causa, acreditam, era mesmo uma disputa em território nacional.
Modus operandi comum em outros países europeus
Crimes como o de Oeiras não são tão incomuns em alguns outros Estados europeus, onde as autoridades se deparam com guerras mais frequentes entre associações criminosas internacionais que se dedicam ao tráfico de cocaína, em geral oriunda do continente americano.
O alerta deixado há um mês pela comissária europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson, está mais atual do que nunca. “Há mais cocaína no mercado europeu do que no passado” e essa droga é o combustível para muita violência.
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“A ameaça do crime organizado é tão grande como a do terrorismo. As drogas que entram nos nossos portos, sobretudo através dos nossos portos, são o combustível para a violência mortal nas ruas”, disse Johansson em janeiro, apresentando alguns dados de 2023: “Foram mais de 600 explosões nos Países Baixos” só no ano passado, “três vezes mais do que em 2022”. Já na Suécia, em 2023, houve “350 tiroteios, que mataram 53 pessoas”, lembrou.
Ao Observador, fontes que costumam acompanhar e colaborar com o trabalho de diversas autoridades europeias, incluindo a Europol, explicam que, sem conhecer os contornos do crime de Oeiras, existem semelhanças com o “modus operandi” verificado neste tipo de ajustes de contas em diversos países, nomeadamente no centro europeu e em França.
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“Trata-se de crimes típicos, relativos a desconfiança entre grupos, a vinganças. Em vários países, como Bélgica, Países Baixos e França, as coisas estão quentes com o tráfico de droga e luta de gangues”, reforça uma dessas fontes, acrescentando que nem sempre os crimes têm contornos iguais, mudando consoante os países.
“Na Bélgica e França há mais tiroteios, nos Países Baixos há vários ataques com explosivos entre grupos, o que é fácil de explicar. O regime legal de venda de explosivos comerciais nos Países Baixos é mais liberal, é diferente do português, por exemplo, que é mais restritivo. E, por conta disso, naquele país os explosivos são desviados do mercado legal, dos fogos de artifício”, diz, explicando que houve já casos em que os engenhos explosivos improvisados acabaram por vitimar quem pretendia fazer o ataque.
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Quanto ao que aconteceu no Bairro dos Navegadores, para quem está habituado a estes crimes, logo à partida só poderia haver duas explicações: o envolvimento de um grupo com ligações internacionais ou de um grupo nacional e estar a haver efeitos miméticos.
Outro alerta deixado pela mesma fonte é que com o apertar do cerco das autoridades a portos até hoje conhecidos como portas de entrada privilegiadas na Europa (como Roterdão, Hamburgo e Antuérpia), poderá assistir-se a uma transferência para outros mais periféricos e isso afetar Portugal.