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Dezenas de milhares de contribuintes receberam nos últimos dias uma multa surpresa, de largas dezenas de euros, por não se terem inscrito num serviço que alguns nem sabiam que existia: o ViaCTT. Vários contribuintes queixaram-se de não terem sido avisados de que era obrigatório inscrever-se nessa caixa postal eletrónica (e comunicar essa inscrição ao fisco). Como não sabiam, não fizeram — e as multas, a maioria na casa dos 80 euros (por lei, até 250 euros), começaram a chegar nos últimos dias.

Dada a indignação generalizada, sobretudo pelos contribuintes visados (os que pagam IRC e IVA), o fisco acabou, primeiro, por admitir um perdão e, depois, mandar suspender todos os processos de cobrança da coima. O mais provável é que estas multas venham mesmo a ser canceladas, restando apenas saber se o Fisco vai dar provimento, e em que medida, às reclamações das pessoas que já as pagaram.

Por detrás desta polémica súbita está, contudo, uma história com várias curvas e contracurvas sobre uma plataforma que começou por ser anunciada, em 2006, com pompa e circunstância mas cujo crescimento estagnou — e só deu um salto em 2012, pouco tempo antes de começar o processo de privatização dos CTT, quando o Governo decidiu tornar a utilização da plataforma obrigatória para as empresas e trabalhadores com atividade independente.

Dezenas de milhares de contribuintes recebem multa surpresa por falta de adesão ao ViaCTT

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Como é que nasceu o ViaCTT?

Com um sonho.

O de criar “10 milhões de caixas postais eletrónicas pessoais, uma para cada cidadão, empresa e instituição”. Mário Lino (ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações de José Sócrates) falava em “10 milhões” — assim mesmo, sem discriminar entre cidadãos e empresas (porque “10 milhões” é a contagem de alçapão a que se recorre sempre que se quer dar uma ideia de universalidade em Portugal).

Estávamos em 2006, no lançamento do ViaCTT, o nome com que foi batizado o serviço de caixa postal eletrónica que era uma das medidas previstas no Simplex (o plano para a simplificação e combate à burocracia na administração pública). Poucas semanas antes dessa cerimónia na Gare do Oriente, em Lisboa, o Governo tinha aprovado em Conselho de Ministros uma resolução e um decreto-lei para a criação da caixa postal eletrónica — o serviço, esse, estava há longos meses a ser desenvolvido internamente pela empresa CTT (na altura era Luís Nazaré o presidente).

Quanto custou lançar o serviço?

Dois milhões e meio de euros, em meados da década passada, foi o investimento inicial para lançar esta caixa postal eletrónica.

O investimento foi responsabilidade dos CTT (que só deixaram de ser uma empresa pública muito mais tarde, em 2014). Luís Nazaré garantia que seria possível obter poupanças de “até 40%” nos custos com os serviços tradicionais de correio. E porquê “até” 40%? Porque tudo dependia do ritmo de adesão que viesse a haver, entre as pessoas. O serviço é gratuito para os cidadãos, mas quem envia para lá e-mails tem de pagar — como acontece com os selos postais comuns.

Empresas como a EDP, a EPAL, o Santander Totta e a Portugal Telecom foram algumas das parceiras iniciais — e António Mexia, presidente da EDP, acreditava que quando o serviço estivesse “em velocidade de cruzeiro” entre 15% e 20% dos clientes da elétrica estariam a receber as faturas através do ViaCTT, o que permitiria à empresa poupar até um milhão de euros. O serviço ViaCTT, apurou o Observador, apenas foi contratualizado com a EDP Serviço Universal (que serve os clientes da tarifa regulada, não os clientes do mercado liberalizado), sendo que hoje – 12 anos depois – a utilização deste serviço (notificação a clientes através do ViaCTT) é residual.

Gratuito, prático e com valor legal? Foi, desde logo, um sucesso. Certo?

Em 2010, sensivelmente quatro anos após o lançamento do serviço, havia 132 mil utilizadores registados na plataforma.

E não era por falta de utilização da Internet por parte dos portugueses — veja-se que, segundo a Marktest, dois anos antes, em 2008 havia 2,3 milhões de portugueses com contas “Hotmail” (um serviço da gigante Microsoft), 1,1 milhões com conta Gmail (da Google) e pouco mais de um milhão com Sapo/Telepac.

Os portugueses tinham acesso à Internet (cerca de quatro milhões), muitos tinham contas em redes sociais e quase todos tinham contas de e-mail — só não tinham conta de e-mail no serviço criado pelos CTT.

E porque é que o ViaCTT não foi um sucesso?

Essa é uma questão sempre complexa quando se fala em serviços na Internet (porque é que o Facebook teve sucesso e as 432 redes sociais lançadas pela Google nunca tiveram?). Mas o serviço nunca foi olhado pelos utilizadores como sendo de utilização (ou registo, sequer) fácil ou especialmente inovadora.

Isso pode ajudar a perceber por que é que em 2010 só havia 132 mil utilizadores — mais ou menos ativos — apesar de haver várias tentativas de estimular a adoção. Em finais de 2007, por exemplo, passou a ser possível fazer queixas-crime e participações às autoridades policiais usando o serviço ViaCTT para se autenticar perante o Estado (neste caso, em rigor, o Ministério da Administração Interna).

Em 2010 veio outro impulso, de peso: a Direção-Geral das Contribuições e Impostos (DGCI) fez um acordo com os CTT para criar um sistema de notificação eletrónica dos contribuintes. Nesse ano — 2010 — o número de contas registadas disparou 72%, para 222 mil utilizadores, segundo as contas dos CTT. O outro “grande salto” só viria mais tarde.

Dar uma caixa de e-mail permanente. “Era esse o espírito”, diz Mário Lino ao Observador

O ex-ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações Mário Lino já não se lembra de “pormenores” sobre a criação do ViaCTT — “Já foi há 13 anos”, diz, ao telefone com o Observador.

Mas lembra-se de dois aspetos importantes. Por um lado, o “espírito” que esteve por detrás da criação do serviço: “a intenção foi criar uma caixa de correio que qualquer cidadão podia ter acesso e que servia, por exemplo, para que vários serviços públicos e empresas públicas como a EDP, a EPAL etc., utilizassem essa caixa de correio para enviar as suas faturas, as cartas, etc. Era, também, uma forma de estimular a generalização do acesso à Internet, que estava a crescer na altura, em Portugal. Era esse o espírito”.

E, tanto quanto Mário Lino se recorda — “porque isso estava mais com o secretário de Estado [Paulo Campos] –, “foi um sucesso imediato”.

Houve uma reunião ao fim de um ano de existência do serviço e os números eram “muito bons”. “Foi-se tornando conhecido, as novas empresas que iam sendo abertas adotavam o serviço e é um bom serviço, que guarda a informação importante, e não há aquele problema de as pessoas mudarem de e-mail — a vantagem é que aquilo é uma espécie de e-mail permanente, em qualquer parte do mundo tinha acesso à informação, sem custos”.

Mas Mário Lino reconhece que pode ter havido, a certa altura, alguma falta de apoio por parte das empresas — “mas já não sei, saí do governo em 2009”. Uma coisa é certa: Mário Lino é cliente do serviço e adora-o, revela.

Mário Lino era ministro das Obras Públicas de José Sócrates em 2006, quando se lançou o “ViaCTT”.

Foi a primeira vez que o Governo tentou lançar um serviço de e-mail gratuito?

Não. Já em 2000, a poucas semanas de rebentar a chamada “bolha” das dotcom nos EUA, o Governo de António Guterres anunciou a disponibilização de até um milhão de caixas de correio eletrónico no serviço Megamail, que nascera de uma parceria estabelecida alguns meses antes com a Fundação para a Computação Científica Nacional, com “disponibilização de infraestruturas” pela Telecel e pela Sun Microsystems (uma tecnológica norte-americana que, após a ascensão e a queda, acabou por ser comprada pela Oracle em 2010).

Este “serviço ímpar”, curiosamente também anunciado na zona da Expo, tinha sido “desenhado de raiz por forma a fornecer um serviço de elevada performance e alta disponibilidade”, em nome da “democraticidade da Sociedade da Informação”. Foi um fracasso (lembra-se de alguém a dizer que o seu endereço de e-mail acabava em megamail.pt?)

O caso do Megamail também é sintomático: Menos de um ano depois do lançamento, em fevereiro de 2000, a Telecel (inicialmente a responsável pelos servidores de armazenamento) tinha 75 mil endereços registados.

Megamail e ViaCTT: Serviços diferentes, mesma performance

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Os números do ViaCTT revelam algumas semelhanças iniciais no que diz respeito à adesão dos portugueses ao projeto, mas muitas diferenças depois. Senão vejamos:

Após o primeiro impacto e passado o fator novidade, em 2008, cerca de um ano e meio depois de ter sido lançada, a plataforma ViaCTT tinha 119 mil utilizadores registados. Muito longe dos 10 milhões previstos por Mário Lino, mas nada que a “velocidade de cruzeiro” do projeto não pudesse resolver.

Só que o projeto não descolou: no final do ano seguinte, 2009, apenas tinham aderido mais 10 mil utilizadores, para um total de 129 mil clientes.

Em março de 2010, o ritmo continuava ainda mais lento: um total de 132 mil utilizadores. Mas este ano seria um (primeiro) ponto de viragem no ViaCTT, com o acordo com a DGCI.

Em quatro anos esse número duplicou, para 150 mil utilizadores do Megamail em abril de 2004. Foi nessa altura que surgiu o Gmail, que oferecia 1 Gigabyte de armazenamento gratuito, cerca de 300 vezes mais do que os 3 megabytes que dava o Megamail.

O resto é história: um ano depois a Vodafone (ex-Telecel) anuncia que vai descontinuar o Megamail, pelo facto de existirem no mercado soluções muito mais atraentes para os utilizadores. Mas o Megamail resiste. A Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN), parceiro inicial que nunca concordou com a eutanásia do serviço, decidida pela Vodafone, chama a si a gestão da plataforma.

Para isso recorre, em 2005, a Mariano Gago, regressado ao cargo de ministro da Ciência e da Tecnologia, agora no primeiro governo socialista de José Sócrates.

Em 2011, a própria FCCN fez um ponto de situação do serviço no seu relatório e contas: “O Megamail é um serviço de webmail público que não tem tido evolução pelo menos desde 2006, apesar de não ter sido ainda descontinuado”. Só viria a acabar em 2013, já depois de ter sido mantido à tona com recurso a verbas comunitárias.

Quando é que se tornou obrigatório para alguns contribuintes estarem registados no ViaCTT?

Em 2012, a Lei do Orçamento do Estado fazia um aditamento à Lei Geral Tributária que falava sobre a “utilização das tecnologias da informação e da comunicação”. E aí chegou o outro grande “salto” nos números: o serviço “ultrapassou no final de 2012, mais de um milhão de utilizadores registados e 50 entidades expedidoras”, lia-se no relatório e contas dos CTT em 2012.

E reconhecia-se, nesse mesmo documento, que “o registo significativo de utilizadores na ViaCTT foi impulsionado pela imposição do Orçamento de Estado de 2012 que tornou obrigatória a criação de um caixa postal eletrónica e a comunicação da mesma à Autoridade Tributária, para universos de contribuintes específicos, como os sujeitos passivos de IRC e sujeitos passivos enquadrados no regime normal do IVA”.

Mas o que é que mudou na lei, em 2012, que deu esta “injeção de adrenalina” no ViaCTT? Na Lei do Orçamento do Estado lia-se que “a administração tributária pode utilizar tecnologias da informação e da comunicação do procedimento tributário”. E não só “pode” como já “dispõe de um serviço na Internet que proporciona (…) funcionalidades idênticas às dos serviços em instalações físicas” (dizia a lei, sem nunca mencionar o nome do serviço (ViaCTT). Ora, a lei definia, então, que alguns contribuintes (os que pagam IRC e IVA) “devem completar os procedimentos de criação da caixa postal eletrónica e comunicá-la à administração tributária”.

É esta parte da lei que “está a ser cumprida” pela Autoridade Tributária quando enviou as coimas, explicou o Ministério das Finanças.

E quem estava à frente das respetivas tutelas – CTT e administração fiscal – quando foi introduzida no Orçamento do Estado a obrigatoriedade de inscrição na caixa postal eletrónica? Sérgio Monteiro, que viria a liderar o processo da privatização dos CTT, estava na secretaria de Estado das Obras Públicas e Paulo Núncio era o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Foi deste último a decisão de avançar com a medida.

Nenhum dos dois quis prestar declarações ao Observador sobre este processo.

A obrigatoriedade da inscrição de alguns contribuintes no ViaCTT foi inscrita no Orçamento por Paulo Núncio.

Hoje. Quantas pessoas ou empresas usam, afinal, o serviço?

Depois dessa referência à ultrapassagem de um milhão de utilizadores nas contas de 2012, não mais surgiram nas contas dos CTT (entre 2013 e 2017, os anos que apanham a privatização de 2014) referências ao número de utilizadores da plataforma. Esse foi, portanto, o período que se seguiu à inscrição “obrigatória” nesta plataforma, deixando de ser apenas um serviço disponibilizado pelos CTT (primeiro enquanto empresa pública e, depois, enquanto empresa concessionária).

Mas segundo informação transmitida por fonte oficial dos CTT ao Observador, o número de aderentes da ViaCTT, atualmente, é de cerca de 1,5 milhões. Existem, segundo a mesma fonte, “diversas entidades aderentes como expedidoras para além da Autoridade Tributária, de vários setores de mercado, nomeadamente da banca e telecomunicações”.

Tal como se espera que alguém consulte a caixa de correio (física) com regularidade, na ideia da criação do serviço ViaCTT também estava a expectativa de que os utilizadores iriam consultar esta caixa de e-mail com regularidade — mas a maior parte dos utilizadores prefere usar o sistema de alertas e só visita a caixa postal eletrónica quando recebe um alerta por SMS ou… na sua caixa de e-mail favorita.

Apesar da suspensão das multas, já anunciada pelas Finanças, a polémica pode resultar numa nova injeção de adrenalina no número de registados no serviço.