Por esta altura já podíamos ter uma vacina contra o SARS-CoV-2 muito mais adiantada, garante Maria Elena Bottazzi, do Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Pediátrico do Texas, em Houston. Mas o desenvolvimento das vacinas avança aos solavancos: investe-se tudo quando é detetado o problema, mas depois deixa-se cair o investimento quando a ameaça desaparece. Foi o que aconteceu com as vacinas para o SARS e MERS: quando estes coronavírus deixaram de ser vistos como uma ameaça global, o financiamento caiu e os projetos entraram em hibernação.
A equipa que dirige começou a estudar os coronavírus em 2010 e, seis anos depois, tinham uma vacina pronta para entrar em ensaios clínicos. Mas com o surto de ébola (que começou em 2014) e o surto de zika (em 2016), as prioridades mudaram e os fundos também. Se tivessem conseguido, pelo menos, passar pelos ensaios clínicos de segurança, agora estariam uns passos mais à frente. Porque quem começa do zero não pode saltar certas etapas.
É por isso que a co-diretora do centro norte-americano e diretora associada da Escola Nacional de Medicina Tropical não poupa críticas às abordagens inovadoras que estão na corrida por uma vacina contra o novo coronavírus. Não se sabe exatamente o que estão a fazer, diz, porque a indústria farmacêutica não revela os dados protegidos por direitos de propriedade. Mesmo assim, e sem que a investigadora consiga explicar como, estas empresas conseguiram estar na lista das cinco estratégias às quais o governo norte-americano vai dar milhares de milhões de dólares.
Falta é saber se alguma destas vacinas inovadoras chegará a ver a luz do dia, até porque “muitas das tecnologias são novas e não há historial da capacidade do processo industrial e de produção em larga escala”, alerta Maria Elena Bottazzi. A equipa onde trabalha prefere usar métodos conhecidos, que já tenham sido amplamente testados e que sejam fáceis de implementar. Neste caso, a estratégia de desenvolvimento da vacina é semelhante à que se usa para fazer a vacina contra a hepatite B. E como a vacina contra o SARS já está bastante adiantada, a vacina contra o SARS-CoV-2 pode ser baseada neste conhecimento.
Ao contrário das empresas farmacêuticas, o Centro de Desenvolvimento de Vacinas onde a investigadora trabalha não tem fins lucrativos, divulga os resultados da investigação, partilha a receita das vacinas com os fabricantes e tem como objetivo o acesso global às vacinas. Maria Elena Bottazzi quer uma vacina para todos — e não apenas para aqueles que a podem pagar — e que possa ser feita em qualquer lado, do Brasil à Índia, sem exigir que os fabricantes tenham de investir muito dinheiro para se adaptarem às novas tecnologias. “A nossa tecnologia é tão conhecida que estamos surpreendidos que ninguém lhe esteja a prestar atenção”, diz. “Às vezes tentam complicar, em vez de fazerem as coisas da forma mais simples. O mais fácil e o mais rápido é pegar numa coisa que toda gente já sabe fazer e fazê-lo.”
Está a trabalhar numa vacina contra o SARS-CoV-2 que se espera que esteja pronta dentro de um ano ou um ano e meio, correto? Isso significa que têm de trabalhar dia e noite, sete dias por semana?
Sim, estamos. De facto, desde o início do ano que temos estado bastante ocupados. Não apenas nós, que estamos a organizar todas as atividades, mas também os nossos cientistas nos laboratórios e todos os nossos parceiros, que estão a tentar avançar tão rápido quanto possível. Estamos a tentar descobrir como avançar rapidamente, sem comprometer a segurança e a ética.
A segurança é uma das grandes questões aqui, porque pode-se tentar ir o mais rápido possível, mas existem algumas etapas que não se podem saltar. Quais são as principais preocupações em relação à segurança?
Estamos um pouco menos preocupados porque, na verdade, temos estado a trabalhar numa vacina contra o coronavírus anterior [SARS]. Provavelmente somos dos únicos grupos que já possui dados pré-clínicos para apoiar não apenas a imunogenicidade [capacidade de desencadear a resposta imune], mas também como a vacina se estava a comportar no que diz respeito à segurança. Uma das preocupações é que vemos que muitas destas novas vacinas estão a ser criadas por grupos que são novos na investigação do coronavírus e que não tiveram tempo para desenvolver um portfólio robusto e dados pré-clínicos. Embora o nosso portfólio seja sobre o SARS, esse vírus é tão próximo do SARS-CoV-2 [que provoca a Covid-19] que a nossa estratégia para o desenvolvimento de uma vacina está a usar o mesmo conceito de proteína recombinante [clone de uma proteína produzido num organismo diferente, neste caso, a levedura]. Usamos uma plataforma bem conhecida, que recorre a tecnologias e formulações já licenciadas. O RBD [receptor binding domain, ponto de ligação da proteína viral à célula do hospedeiro], o nosso alvo, já tem muitos dados conhecidos para o SARS e até para o MERS. Por isso, chegámos aos reguladores já com muitas evidências das experiências anteriores. [Estas evidências] podem ajudar-nos a definir a estratégia de chegar aos ensaios clínicos, mas não estamos a saltar nenhum passo. Ainda vamos fazer os estudos de toxicologia e outros estudos que precisamos de fazer. A nossa preocupação é que, às vezes, não entendemos exatamente o que é que os outros estão a fazer, porque não há muita transparência. Não há dados. Pelo menos, nós publicamos tudo, pomos tudo no domínio público, e revisto por pares [analisado por cientistas independentes].
Disse que está a trabalhar com coronavírus há muito tempo. Começaram logo depois do primeiro surto de SARS?
Começámos em 2010, alguns anos depois do surto inicial de SARS [2002-2004], porque estávamos a seguir de perto a investigação que estava a ser feita com o uso deste RBD da proteína spike [a que forma a coroa à volta do vírus e que funciona como uma chave que abre a porta das células ao vírus]. Propusemos aos Institutos Nacionais de Saúde [NIH, dos Estados Unidos] uma estratégia de como transformar esta descoberta científica num produto real. Era uma proposta especial, porque implicava fazer o que fosse preciso para levar a descoberta da bancada [do laboratório] até à prática clínica. No início é difícil envolvermo-nos com as grandes empresas farmacêuticas e até com as empresas biotecnológicas, porque precisamos, antes disso, de apresentar a descoberta de uma maneira que seja atraente e livre de risco para estes investimentos mais avançados em investigação e desenvolvimento. É por isso que temos tido muito sucesso com todo o nosso portfólio de vacinas: levámo-las até ao ponto em que se realiza não apenas o processo de fabricação e o piloto da produção, mas alguns testes iniciais — e depois, idealmente, arranjamos um parceiro comercial para pegar na vacina e conseguir uma licença. Entre 2010 e 2016, tínhamos esta vacina candidata contra o SARS completamente preparada e também estávamos muito avançados com a vacina candidata contra para o MERS, embora não tivesse sido produzida ainda. Depois, claro, deixou de haver interesse no SARS, já não havia interesse no MERS… Mas apesar de termos suspendido os programas de desenvolvimento nos bastidores, mantivemos muitas das atividades mais importantes do projeto, pelo menos mantendo os reagentes em condições.
E decidiram voltar a pôr o projeto em marcha com a pandemia?
Quando ouvimos falar do novo surto, a estratégia foi dupla: usar a vacina contra o SARS como um candidato que também protege contra o SARS-CoV-2; e desenvolver uma nova vacina baseada no RBD do SARS-CoV-2. A vantagem é que já tínhamos desenvolvido tantos processos de produção e todos os testes e ensaios naqueles quatro anos que, agora, estamos a tentar fazê-lo em seis meses a um ano. Já temos as receitas e conhecemos os procedimentos, por isso conseguimos reduzir o cronograma. E estamos a sair-nos muito bem neste processo de levar dois produtos até à prática clínica.
Uma das coisas que detetaram durante o desenvolvimento da vacina contra o SARS foi um aumento da resposta inflamatória. A forma de reduzirem esta resposta desnecessária foi escolher um alvo específico?
Foi por isso e também por prestarmos atenção à maneira como produzimos o RBD, com uma plataforma que usa uma proteína recombinante a partir das leveduras, que é uma tecnologia comprovada e que sabíamos que não teria problemas de regulamentação ou segurança. E ainda juntámos à proteína um composto com alumínio, que não só facilita a imunogenicidade [a capacidade de desencadear uma resposta imune] como mantém sob controlo a resposta inflamatória desfavorável. Já vimos muitas preocupações sobre o aumento do número de anticorpos contra outras coisas [outros antigénios do vírus] que podem não induzir a neutralização [do vírus] ou que podem potencialmente causar este “immune enhancement”. Por isso, reduzimos o tipo de anticorpos produzidos para serem específicos do RBD, porque são altamente neutralizantes, mas não parecem desencadear uma resposta imune que não seja a desejável. Portanto, não só direcionámos a vacina para se focar especificamente nessa ligação ao recetor, como também removemos qualquer ativação desnecessária da resposta imune.
É este potencial descontrolo da resposta imunitária que a preocupa em relação às restantes vacinas?
A preocupação com a avaliação inicial de segurança é principalmente esta ativação, estas respostas inflamatórias. Não sabemos se vai acontecer em humanos, não o vimos em humanos, mas, como vimos nos modelos animais, não é algo que possamos esquecer. Temos de ter métodos que nos permitiam avaliar isso durante os ensaios clínicos.
Os resultados nos modelos animais, ainda que não possam ser extrapolados para humanos, dão pistas para os cuidados que se devem ter quando se está a preparar um ensaio clínico, certo?
Exatamente. E desenhá-lo de forma a que seja possível, pelo menos, detetar os sinais de segurança, que é o objetivo destes ensaios. Daí que seja necessário fazê-los, sem saltar nenhum passo, e que tenhamos algum tempo para avaliar os dados. Não é só porque estamos com pressa que não devemos levar estas coisas em consideração. Por isso é que temos de ser pacientes, há um limite para a velocidade a que podemos avançar. Temos de ter dados para poder tomar decisões, não podemos tomar decisões só porque nos dá na veneta.
Não chegaram a fazer ensaios clínicos com a vacina contra o SARS?
Não, porque nessa altura, quando estávamos prontos para pedir financiamento para avançar para a próxima etapa, as pessoas já não estavam interessadas, achavam que já não havia SARS nem MERS. Investimos anos de trabalho que ficou parado porque não houve modelo de negócio que lhe desse continuidade. Se tivéssemos continuado, provavelmente já teríamos um conjunto de dados clínicos de segurança em humanos, que poderíamos mostrar agora e, provavelmente, acelerar mais o desenvolvimento da vacina. É uma lição: não podemos deixar todas estas vacinas pelo caminho. Há muitas vacinas em desenvolvimento, muitas vão falhar, mas não se pode simplesmente escolher algumas que, do nada, se define como sendo aquelas que vão funcionar. É preciso dar uma hipótese a todos os grupos, que estão a usar estratégias, candidatos e formulações diferentes.
Está a referir-se ao programa de financiamento da Casa Branca — Operação Warp Speed — que selecionou cinco vacinas em desenvolvimento?
Sim. Não sabemos como é que essas decisões foram tomadas. Houve interesses políticos destas grandes empresas farmacêuticas? Onde estão os dados? Porque é que fizeram aquelas escolhas? Pelo menos sabemos que, em algum momento, os reguladores vão ter de tomar decisões com base nos dados e os candidatos não vão poder avançar simplesmente porque são amigos de alguém ou coisa do género. Mas também existem muitas interpretações erradas do que os dados querem dizer, que são ajustadas em benefício próprio. Temos de ser muito rigorosos a nível científico. Olhar para o que os dados dizem realmente e para as limitações e vantagens, porque muitas vezes os estudos são realizados sem protocolos harmonizados, usando espécies diferentes. Temos de olhar para os dados com peso e medida, porque não conseguimos realmente comparar se não soubermos como os estudos foram feitos.
Vacinas. Dos resultados promissores ao que ainda pode correr mal
O vosso grupo de investigação não faz parte destes cinco selecionados para a Operação Warp Speed. Mesmo assim conseguiram financiamento suficiente para prosseguir com o vosso trabalho?
Não temos estes capitais de risco e grandes empresas farmacêuticas a suportar-nos. A nossa missão é pelo bem público e pela saúde global, pelo que a maneira pela qual angariamos fundos é, provavelmente, muito singular. Combinamos bolsas com mecenato, doações e parcerias com fundações privadas ou organizações como a PATH [organização de saúde pública sem fins lucrativos], que sabem como desenvolver e levar vacinas para os países de rendimento médio e baixo. Não estamos interessados em que isto seja um produto apenas para pessoas que podem pagar por ele. Tem de ser para todos, mesmo para aqueles que não têm dinheiro ou para os países que têm de ter uma vacina a preços acessíveis. Algumas destas vacinas serão adequadas para alguns mercados, mas estamos realmente preocupados com quem fará as vacinas para a América Latina, para Portugal, para a Índia e para os países pequenos que não conseguem sequer produzi-las. Por isso estamos a trabalhar com todos esses fabricantes de países em desenvolvimento. Isso também é preocupante. Muitas destas tecnologias [usadas no desenvolvimento das vacinas contra o SARS-Cov-2] são novas e não há historial da capacidade do processo industrial e de produção em larga escala. Pelo menos com a nossa sabemos que podemos dar a receita e pode ser feita facilmente, porque usa o mesmo processo com que [estes países] fabricam a vacina contra a hepatite B e contra o HPV. A infraestrutura, o conhecimento, a capacidade de aceitar uma receita e ampliar a produção já é conhecida. Portanto, não haverá atrasos na curva de aprendizagem do fabricante, como acontecerá com uma vacina de ARN [como a da empresa Moderna], que nunca foi feita antes. E o investimento [numa vacina como a nossa] será muito menor porque os fabricantes já têm a infraestrutura. É o equilíbrio entre produção e a capacidade do fabricante e, ao mesmo tempo, os precedentes de segurança que temos no uso destes produtos.
Além da produção, também estão a pensar na forma como estas vacinas podem chegar às populações dos locais mais remotos?
Neste momento, também não nos vamos aventurar com formas sofisticadas e experimentais de fazer a entrega das vacinas. Se já existe uma maneira de distribuir a vacina contra a hepatite B, incluindo em áreas remotas e com poucos recursos, isso é de valor, porque sabemos que já existe um sistema em uso. Provavelmente vamos usar os mesmos sistemas.
Estão várias vacinas em desenvolvimento. Vamos precisar de mais do que uma vacina?
O mais provável é que não tenhamos um fabricante que possa fazer vacinas para o mundo inteiro. No nosso caso, estamos interessados na rede de fabricantes dos países em desenvolvimento, porque podem, por exemplo, fazer vacinas para a Índia e depois para a região para onde sabem que podem exportar. Depois também temos de ter em consideração que uma vacina que vai ser usada em crianças não é a mesma que vai ser usada nos idosos ou nas pessoas com outros problemas de saúde. Precisamos de uma caixa de ferramentas com vacinas diferentes. É por isso que é tão importante ter várias plataformas de vacinas, porque uma pode ser adequada para uma população ou para um tipo de indicação e outras podem ser mais adequadas para outras situações.
Voltando às vacinas que estão a desenvolver: uma é a que criaram para o SARS e estão a ver se funciona para prevenir a infeção com SARS-CoV-2. O que vos faz pensar que vai funcionar num vírus diferente?
Temos muitos dados, não apenas sobre as semelhanças entre as sequências genéticas, mas também sobre a neutralização cruzada com pseudovírus [vírus sintéticos, sem capacidade de replicação, usados para introduzir material genético nas células]. Também analisámos a estrutura dos nossos dois RBD. Sabemos, por exemplo, que o RBD do primeiro SARS se liga ao recetor [da célula hospedeira] de forma muito semelhante ao que faz o RBD do SARS-CoV-2, por isso já sabemos que os anticorpos contra o RBD do SARS podem bloquear o SARS-CoV-2. A questão agora é se vai induzir anticorpos neutralizantes suficientes e de quantos anticorpos precisamos para conferir proteção. Sabemos que os anticorpos neutralizantes contra o SARS e SARS-CoV-2 podem proteger contra uma infeção com o vírus nativo. E já vimos, por exemplo, que o plasma de doentes que tinham tido SARS tem efeito na neutralização do vírus atual. Portanto, existem muitas evidências de que estes dois vírus são tão semelhantes que ao induzirmos uma resposta imune contra um podemos também proteger contra o outro. E a boa notícia é que, se já tivermos estas duas vacinas e aparecer um terceiro SARS, podemos combiná-las. E mesmo que não sejam 100% perfeitas, podemos, pelo menos, reduzir a carga da doença e talvez até mesmo reduzir a transmissão.
As vossas duas vacinas, uma contra o SARS e a outra contra o SARS-CoV-2, estão no mesmo estádio de desenvolvimento?
Não. A vacina contra o SARS já foi produzida e vai ser enviada para os testes de toxicologia e para os restantes estudos que o regulador exige. Também já submetemos a estratégia [dos ensaios clínicos] à FDA, para poderem comentar. Os ensaios de fase 1 devem começar em setembro. A outra ainda não foi produzida, mas, como já sabíamos como fazer a anterior, em vez de criarmos uma receita nova, estamos a transferir a mesma tecnologia para o fabricante. Será produzida, provavelmente, este outono e acreditamos que possa entrar em ensaios clínicos no primeiro trimestre do próximo ano. Eventualmente, teremos as duas em ensaios clínicos [ao mesmo tempo] e podemos até pensar em compará-las num único ensaio. À medida que muitas destas [e outras] vacinas prosseguem, poderia haver, eventualmente, ensaios clínicos em que diferentes candidatos fossem avaliados ao mesmo tempo para ver como se comportam e como se comparam no mesmo contexto.
Isso significaria que as empresas farmacêuticas teriam de estabelecer parcerias, quando, na verdade, são competidores. É diferente quando estamos a falar só dos trabalhos desenvolvidos pela academia, não?
Ou então uma abordagem de saúde pública global muito altruísta, em que não se tem nenhuma propriedade intelectual e não nos importa se os resultados são compartilhados. Isso é o que nós queremos. Os outros podem ser mais protetores, porque não querem misturar o trabalho deles, com direitos de propriedade, com o nosso. Provavelmente trabalharemos mais com os grupos que possuem tecnologias sem direitos de propriedade, ou seja, que não tenham nada que os impeça de trabalhar em colaboração.
Toda a vossa receita para o fabrico das vacinas está acessível?
Qualquer um a pode fazer. O nosso valor é dar ao fabricante o nosso conhecimento, sobre o qual temos dados, para que não precisem de começar do zero. Portanto, os nossos dados podem ser facilmente usados. A nossa tecnologia é tão conhecida que estamos surpreendidos que ninguém lhe esteja a prestar atenção. Às vezes tentam complicar, em vez de fazer as coisas de forma mais simples. O mais fácil e o mais rápido é pegar numa coisa que toda gente já sabe fazer e fazê-lo. Porquê complicar colocando todas estas complexidades e barreiras? Os chineses estão a usar o tradicional vírus inativado. Até já publicaram os resultados do ensaio clínico de fase 1. Depois veremos se realmente vai funcionar e se os dados de suporte são reais. Mas porquê complicar com toda esta tecnologia de ARN que ninguém sabe exatamente como é, o que faz e como funciona? E nem sequer sabemos o que está exatamente por trás, porque tem direitos de propriedade e não há dados.
Pois, mas a inovação atrai mais dinheiro.
Certo. Nós não atraímos biliões de biliões. Lutamos para conseguir dois ou três milhões de dólares [cerca de 1,8 a 2,7 milhões de euros]. Mas estamos a conseguir e vamos mostrá-lo. Talvez amanhã cheguem ao pé de nós e digam: “Ora bolas, devíamos ter vindo ter convosco mais cedo”. Mas não vamos deixar de o fazer por pensarmos que não será atraente, vamos fazê-lo porque, para o benefício do mundo, se tudo o resto falhar, nós estamos aqui. Estamos prontos. Acho que muitos fabricantes de vacinas, como no Brasil e na Índia, também não se querem envolver em processos muito complicados. Primeiro, porque não têm tempo. Segundo, porque querem realmente ser úteis, querem produzir milhões e milhões de doses. Não querem perder tempo a montar novas tecnologias.
O vírus inativado, como as equipas chinesas estão a testar, tem alguma hipótese de vingar ou tem riscos?
Tem hipóteses, porque funciona com outras vacinas. Mas voltamos à cautela do que podemos ver nos ensaios de segurança, porque eles usam o vírus todo e, claro, tem todas as outras coisas que desencadeiam uma resposta imune. É preciso ser muito cauteloso com o método de inativação, quão fidedigna é a confirmação da inativação e se estamos a adicionar riscos externos. Provavelmente terão de ter mais cuidado com a segurança, comparado com uma tecnologia sintética, pura e muito controlada. Mas, mais uma vez, é uma tecnologia antiga que já funcionou corretamente com outras vacinas. Acho que não devemos complicar. Pelo menos, sabemos que são fáceis e mais baratos.
Que resultados já têm neste momento com as vossas vacinas?
A proteína recombinante RBD funciona. E funciona quando é expressa [produzida] pelas leveduras, mimetizando o sistema usado na vacina da hepatite B. Mostrámos que confere proteção em modelos animais. Mostrámos um nível baixo de resposta inflamatória indesejável. E sabemos que podemos extrapolar para o uso em humanos tendo em conta os dados do plasma de pessoas recuperadas da doença. Temos agora uma lista de coisas para testar nos ensaios clínicos. Os outros nem essa lista têm, assumiram que podiam ir diretamente para os ensaios clínicos — o que é um pouco preocupante.
Uma das vossas vacinas vai começar os ensaios clínicos em setembro. Não estão preocupados que, por essa altura, haja menos vírus em circulação e seja mais difícil conseguir voluntários suficientes para os ensaios clínicos? Um pouco como aconteceu com o ébola [o surto de 2014-2016 terminou antes de haver uma vacina aprovada, o que só aconteceu em 2019].
Não é tão exagerado como no caso do ébola — que era muito localizado e não teve a dimensão de uma pandemia. É certo que há áreas no mundo onde pode haver um melhor controlo [da transmissão] e onde, portanto, a curva não está a aumentar. Mas veja-se o Brasil, está um desastre. A Índia será, muito provavelmente, um desastre. Há tantos países que posso apontar que acho que não teremos esse problema. Quero dizer, pode haver alguma carga adicional no desenho dos ensaios clínicos multicentro a nível global, mas vai ser possível fazê-lo. Acho que não será tão extremo como o ébola, em que tiveram de esperar até terem um novo surto.
Para finalizar: o que podemos aprender com esta pandemia em relação às vacinas para doenças novas?
Mesmo que tenhamos avançado no desenvolvimento das vacinas e ainda que amanhã desapareça como o SARS e o MERS, não devemos deixar de investir de todo. Temos de dar seguimento à ciência e levar os produtos, no mínimo, até ao ponto em que já tenham passado pelos ensaios iniciais de segurança, onde os materiais são armazenados com qualidade clínica e não precisamos voltar ao laboratório para começar do zero. Tem de haver uma maneira de ir escalonando o desenvolvimento, mesmo que se reduza ou coloque em pausa, mas que não se pare completamente. Como com o ébola: tiveram de esperar, mas, assim que aconteceu alguma coisa, conseguiram rapidamente implementar os ensaios. Com o SARS e o MERS, avançámos, mas não avançámos o suficiente, e como tal não havia nada para ser implementado. Porque, de repente, tivemos o zika e o ébola e toda a investigação parou porque o dinheiro foi desviado para outro lado. Neste momento, também estamos a ser afetados [no Centro de Desenvolvimento de Vacinas], porque desenvolvemos vacinas contra todo o tipo de doenças negligenciadas. Mas agora não há dinheiro para isso. É assim, avançamos e paramos, avançamos e paramos. Quando há uma crise, avançamos; quando não há, paramos. É ridículo. Não podemos trabalhar assim, é muito dececionante, muito desanimador. Investimos muito, fazemos descobertas científicas e depois paramos. Perdemos o ímpeto, perdemos a inovação, perdemos a tecnologia e, quando voltamos, temos de descobrir onde raio ficámos há 10 anos.