Os ficheiros que contêm dezenas de milhares de contratos públicos no portal Base estão inacessíveis há duas semanas. No dia em que percebeu que estava a violar o Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), o Governo bloqueou de imediato o acesso aos contratos e não voltou a reativá-los. Ao Observador, o Governo diz que em breve começará a repor os contratos celebrados desde janeiro de 2021 e só depois começa a recuar. Mas nem para isso há data.
E este não é o único problema no portal Base, já que a pesquisa regular do site continua com muitas limitações. Os especialistas dizem ao Observador que a situação, mesmo que seja legal, representa uma perda significativa de “transparência”.
Há uma frase agora recorrente: “Não foi possível obter os dados do servidor”. Quem nas últimas semanas acedeu ao portal BASE para consultar os contratos públicos deparou-se várias vezes com esta mensagem. Isto torna-se especialmente relevante porque uma das normas da contratação pública obriga à publicitação do contrato no portal dos contratos públicos. Nas últimas duas semanas o Observador fez consultas permanentes hora a hora e, durante horário laboral, em 70% dos dias a função de pesquisa esteve sem devolver resultados. Ora, não havendo acesso aos próprios contratos e estando o portal inacessível, poderá estar em causa a violação do código dos contratos públicos? Se os especialistas se dividem quanto à questão da validade dos contratos, não têm dúvidas que, quanto à transparência, Portugal está a dar “passos atrás”.
“Há neste momento uma completa opacidade”
Segundo o entendimento da diretora executiva da Transparência e Integridade, Karina Carvalho, “sem sombra de dúvida” que o código dos contratos públicos está a ser violado. As dificuldades no acesso ao Portal começaram depois da notícia do semanário Expresso que dava conta da exposição de dados pessoais nos ficheiros PDF com os clausulados dos contratos. A solução encontrada pelo Governo foi a de impedir a consulta de contratos, algo que devia ter durado apenas cerca de 48 horas, com o próprio ministério das Infraestruturas e da Habitação a explicar, na altura, que apenas a hipótese de “visualizar os textos dos contratos” ficaria indisponível. O objetivo era contornar precisamente o problema da não publicitação, que podia colocar em causa a execução dos contratos celebrados.
O problema é que, de facto, o Portal continua sem funcionar na maior parte do tempo e é entendimento da Transparência e Integridade que está a ser violado o código de contratação pública, frisando ainda que a informação que está no Portal é insuficiente. “A informação colocada no BASE é incipiente. A informação que lá está e as dificuldades que há em fazer o cruzamento de dados”, diz ao Observador Karina Carvalho, que considera que com as atuais falhas no Portal “há neste momento uma completa opacidade” no que diz respeito à contratação pública, considerando que com a violação do código “os contratos não podem ser pagos”.
Contactado pelo Observador, o IMPIC — a entidade gestora do portal dos contratos públicos — responde que os problemas se devem “a uma maior afluência dos utilizadores” e fala numa “sobrecarga pontual” dos servidores do Portal BASE, mas não explica o que está a ser feito para corrigir a situação.
Sobre prazos para resolver problemas técnicos no Portal BASE, o IMPIC nada diz ao Observador. Na mesma linha, o ministério das Infraestruturas e da Habitação diz que “o mais breve possível” serão disponibilizados na área pública do Portal “os contratos celebrados desde 1 de janeiro de 2021 e progressivamente os mais antigos”, mas sem avançar qualquer data ou plano para tal. Diz o ministério responsável pelo Portal que o objetivo é que “todos os contratos constantes do portal BASE voltem a estar públicos”.
O problema é de grandes dimensões e envolve a transparência na contratação de valores muito elevados. A estimativa é que diariamente sejam gastos em contratos públicos 85 milhões de euros, diz ao Observador Nuno Cunha Rodrigues, especialista em contratação pública que considera que o bloqueio no acesso ao clausulado dos contratos é “um passo atrás na transparência” em Portugal.
“Portugal estava num bom caminho a nível internacional, sendo dos poucos países que até disponibilizava o clausulado dos contratos, mas estamos a voltar para trás, perde-se transparência”, aponta o especialista colocando alguma tónica neste tema, numa altura em que Portugal se prepara para receber um grande volume de fundos comunitários.
Já o ministério das Infraestruturas e Habitação rejeita a ideia de que esteja a ser dado um passo atrás e considera o Portal BASE “uma ferramenta poderosa para a transparência e para o combate à corrupção”. “Não está a ser dado qualquer passo atrás, uma vez que a não visualização do texto dos contratos é, como supra referido, uma situação meramente transitória, permanecendo públicos os dados dos contratos celebrados na área pública do portal, em campos estruturados, permitindo-se realizar todas as pesquisas que qualquer cidadão entenda fazer”, defende-se o ministério.
Dados são da responsabilidade das entidades adjudicantes. Quanto tempo para resolver?
No que diz respeito à publicação de dados pessoais, em violação do regulamento geral sobre a proteção de dados, a responsabilidade é “inteiramente das entidades adjudicantes”. É esse, pelo menos, o entendimento do ministério das Infraestruturas e Habitação em resposta ao Observador: “É da inteira responsabilidade das entidades adjudicantes o cumprimento das normas nacionais e comunitárias referentes à proteção de dados pessoais”. Caberá a cada uma das milhares de entidades que utilizam o Portal BASE para publicitar os contratos realizados “expurgar dos dados que violem o RGPD”. Prazos para o fazer? O ministério não esclareceu ao Observador esse calendário nem se existem quaisquer consequências para as entidades que têm violado o RGPD.
Não será difícil antever que o problema demore um longo tempo até ser resolvido. O Portal BASE existe desde 2008, o RGPD passou a aplicar-se depois de 2018. São no mínimo três anos de publicitação diária de contratos no Portal.
E é neste ponto que a Transparência e Integridade volta a ter dúvidas. “Como é que as instituições estão a ser instruídas para fazer isto? Há equipas de contratação pública nas entidades?”, questiona a responsável Karina Carvalho.
Na resposta ao Observador o ministério das Infraestruturas e Habitação deixa claro que “os contratos publicados no Portal BASE pelas entidades adjudicantes continuam carregados no sistema” o que permite “que as entidades com poderes de auditoria e de fiscalização possam a eles ter acesso”. Uma vez mais, este esclarecimento deixa dúvidas à Transparência e Integridade: “Mesmo que tenham de ser retirados da consulta pública não obsta a que estejam disponíveis no Portal e que alguém possa ter acesso, as pessoas sabem que os contratos continuam lá?”.
Já no que diz respeito à eficácia dos contratos, não estando os ficheiros disponíveis para consulta e estando o Portal com sucessivos problemas de acesso, Cunha Rodrigues esclarece ao Observador que as portarias onde está regulada a publicitação no portal dos contratos públicos “não obrigam à publicitação do contrato em si mesmo, apenas algumas informações”, mas frisa que Portugal “tem tradição” de publicitar também os contratos e que devia haver um esforço maior para “corrigir” esta situação.
“A eficácia dos contratos pode ser considerada como uma formalidade não essencial, logo não inviabiliza a execução do contrato, mas se temos esta tradição eles deviam estar a ser publicitados. Se neste momento temos só informação mais residual, algo que devia tentar ser corrigido”, aponta o especialista em contratação pública, que acrescenta ainda que este é um “problema transversal a toda a administração pública” que tem registado várias falhas na regra que dita que “sejam apagados dados pessoais”.