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Portugal tem médicos a mais ou a menos? As contas que falta fazer

A saúde em Portugal debate-se com um dilema: há médicos em falta ou a mais? Na ausência de números certos, a resposta também fica em aberto. Este ensaio de Mário Amorim Lopes ajuda a perceber porquê.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Todos os anos, sem excepção, surgem os avisos e os alertas. Uns avisam que, caso nada seja feito, teremos um êxodo de médicos a abandonarem o país, resultado de um excesso de licenciados que não conseguem obter uma vaga de especialidade ou da incapacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de absorver todos os profissionais. Outros, por sua vez, alertam para a dificuldade em encontrar um médico no interior do país, para os elevados tempos de espera ou para a necessidade de recorrer a médicos estrangeiros para satisfazer a procura e preencher as vagas dos hospitais e dos centros de saúde. Especialmente do Interior, que ficam sem candidatos – reiteradamente, a região do Algarve é incapaz de preencher muitas das vagas de especialidade que coloca à disposição.

Embora os sinais sejam muitas vezes contraditórios e a complexidade do tema convide à precaução, as opiniões são sempre muito taxativas — ora existe um excesso, ora existe uma falta de médicos, ponto. Como é que se desempata este debate? A resposta óbvia seria recorrer aos dados. Não existe, porém, uma forma simples de apurar se um país tem um número elevado ou reduzido de médicos, sendo provável que ninguém tenha dados para consubstanciar com solidez as suas posições. Mesmo a existência de dados não é garante de um debate informado, como veremos de seguida, pois todos os indicadores têm severas limitações. Portanto, se é um dos que tem uma opinião forte e determinada sobre este tema, prepare-se para ver as suas certezas esmorecerem ao longo deste ensaio.

Portugal, comparativamente com outros países da OCDE, tem um número acima da média: cerca de 4,26 médicos por cada mil habitantes, bem acima dos 3,2 médicos por cada mil habitantes da média da OCDE a 34.

Ninguém sabe ao certo quantos médicos estão a exercer

Consideremos as comparações internacionais. A evidência é de que Portugal, comparativamente com outros países da OCDE, tem um número acima da média de médicos por 100 mil habitantes – cerca de 4,26 médicos por cada mil habitantes, bem acima dos 3,2 médicos por cada mil habitantes da média da OCDE a 34.

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Existem, contudo, vários problemas com estes números. O primeiro é que podem não representar a realidade, especialmente a portuguesa. No caso de Portugal, a OCDE reporta o número de médicos inscritos na Ordem dos Médicos, ou seja, com licença para exercer (com cédula profissional), enquanto nos restantes países é contabilizado o número de médicos no activo, ou seja, que efectivamente exercem. Ora, por muito zelosa que seja a Ordem dos Médicos na gestão da base de dados dos associados, que certamente será, existirão sempre casos de médicos que emigraram, mudaram de profissão, se reformaram ou faleceram, não tendo a Ordem dos Médicos sido notificada.

O problema é tão acentuado que a própria OCDE dá nota de que os números para Portugal estão inflacionados em cerca de 30%, tendo inclusivamente deixado de reportar o indicador “número de médicos no activo” para Portugal, reportando somente o “número de médicos com licença para exercer”. Assim, se descontarmos este efeito, a posição de Portugal altera-se substancialmente, passando para 3,27 médicos por cada mil habitantes, em linha com a média dos 3,2 da média da OCDE a 34.

Como se explica este problema na contagem dos médicos? É fácil: nenhuma entidade, incluindo o Ministério da Saúde ou a Ordem dos Médicos, sabe exactamente quantos médicos exercem no sector privado em Portugal. No SNS o caso é mais simples, pois essa informação encontra-se na base de dados ‘Recursos Humanos e Vencimentos da Administração Central do Sistema de Saúde’. Já no caso do sector privado não existe qualquer obrigatoriedade em registar os profissionais que estão no activo (o Decreto-lei n.º 104/2015, de 24 de Agosto de 2015, cria o Inventário Nacional dos Profissionais de Saúde, que regulamenta a obrigatoriedade de reportar os profissionais nos sectores público, privado e social, mas este ainda não foi implementado na sua plenitude). Como tal, é ainda desconhecida uma parcela muito significativa da equação.

Ainda que fosse possível aferir o número exacto de médicos a exercer em todos os países, incluindo Portugal, uma comparação simples usando este indicador está metodologicamente errada, originando conclusões potencialmente falaciosas. A razão tem a ver com a heterogeneidade dos sistemas de saúde, que têm características, modelos de produção e servem até populações manifestamente diferentes. Por este motivo, o mesmo médico a exercer em Portugal poderá exibir níveis de produtividade substancialmente diferentes de um médico a exercer na Alemanha. O caso do Reino Unido é exemplificativo. O governo britânico decidiu aumentar o número de vagas em 60% para as suas faculdades de medicina após constatar que o seu rácio de médicos por habitante era inferior ao da OCDE. Mas uma investigação subsequente mostrou que a medida política foi um erro, tendo ignorado uma maior produtividade do sistema de saúde do Reino Unido, que resulta de uma delegação de tarefas mais eficiente.

Dito tudo isto sobre as limitações dos números, não se pode esquecer o óbvio: a evidência empírica diz-nos que existe uma relação muito forte e positiva entre o número de médicos e a melhoria de determinados indicadores de saúde, como a carga de doença ou a mortalidade infantil. Isto é, nos países em que o número de médicos é mais elevado, a carga de doença é menor e a mortalidade infantil diminui substancialmente. Estima-se que, em média, o aumento de uma unidade no número de médicos por mil habitantes permita diminuir a carga total de doença entre 1% a 3%.

2. Existe um número ideal de médicos a exercer?

Determinar se existem muitos ou poucos médicos é um problema complexo, especialmente porque depende de vários factores, e as relações entre eles são tudo menos simples. Por um lado, depende dos próprios médicos e da sua formação, ou seja, da oferta. Por outro lado, depende da procura por cuidados de saúde e das características da população. O desafio é identificar o ponto de encontro entre as duas – oferta e procura.

Nenhuma entidade, incluindo o Ministério da Saúde ou a Ordem dos Médicos, sabe exactamente quantos médicos exercem no sector privado em Portugal. No Serviço Nacional de Saúde o caso é mais simples.

Comece-se pela oferta. A oferta de médicos é influenciada, entre muitos outros factores, pelo número de vagas de acesso ao ensino superior, pelo número de vagas de especialidade e pelas pretensões dos alunos que decidem estudar medicina. Em média, um médico demora 6,6 anos a terminar o agora mestrado integrado, sendo que a este prazo acresce ainda a duração do internato de especialidade, que varia entre quatro e seis anos, dependendo da especialidade escolhida. No final, são necessários pelo menos dez anos para formar um médico – pelo que alterações efectuadas hoje demorarão bastante tempo a surtir efeito no sistema de saúde. Durante todo este processo e durante a sua vida profissional o médico pode ainda emigrar, mudar de profissão ou falecer, fluxos de saída que podem não ser despiciendos. Finalmente, há que ter em conta também os médicos que imigram para Portugal e que reforçam a força de trabalho.

Importa também perceber que a capacidade de produzir cuidados de saúde não depende apenas do número de médicos disponível, mas também da forma como estão organizados. O modelo de produção e o modelo organizacional influenciam significativamente a produtividade dos profissionais de saúde. A isto acresce também o grau de substituição, isto é, de delegação de tarefas. A substituição pode ser horizontal (entre especialidades médicas) e vertical (entre diferentes profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros). Em alguns países, os médicos delegam algumas das suas competências clínicas a enfermeiros com formação avançada ou até a assistentes médicos. A rigidez com que as funções estão definidas limita, ou não, os cuidados prestados.

Ainda na óptica da oferta temos a questão da tecnologia, que impacta directamente a produtividade. Em diversas áreas da sociedade, a evolução tecnológica é o grande motor de crescimento económico, que permite um aumento contínuo da produtividade. No caso da saúde, contudo, o seu efeito é contraditório: os avanços tecnológicos não implicaram uma menor necessidade de médicos. Uma das explicações é a de que o modelo de prestação de cuidados não mudou significativamente: da mesma forma que continuam a ser precisos quatro violinistas para tocar um quarteto de cordas, continua a ser necessário um médico para atender os seus pacientes. Mas, lentamente, também isto parece estar a mudar.

O robô ‘da Vinci’ é um dispositivo capaz de fazer cirurgias de alta precisão. Não é difícil imaginar um futuro em que as salas de cirurgia serão compostas por estes robôs. Por outro lado, temos também os avanços na computação e na inteligência artificial. Investigadores de Stanford conseguiram programar um sofisticado sistema de diagnóstico de carcinomas (cancro da pele), através do reconhecimento de padrões, que bateu os diagnósticos de 21 dos melhores dermatologistas dos Estados Unidos. Se esta evolução continuar é muito provável que o mesmo número de médicos seja capaz de cuidar de um número muito superior de pacientes. Ou, por outra, para o mesmo número de pacientes seriam necessários menos médicos.

Vistas as questões relacionadas com a oferta de médicos, vamos ao outro lado da equação: a procura por cuidados de saúde, que depende fundamentalmente da população. Em primeiro lugar, do estado de saúde, do estilo de vida e das morbilidades da população. Os fenómenos epidemiológicos têm um impacto muito significativo – um simples exemplo permite ilustrá-lo. Na China, e em apenas dez anos, a incidência da diabetes do tipo 2 aumentou de 1% para 10% da população – esta evolução requer naturalmente uma reconfiguração das especialidades médicas, especialmente um reforço dos endocrinologistas. Ora, olhando para a evolução epidemiológica dos últimos anos, constata-se que temos transitado de um quadro infeccioso, que dizimou milhões de pessoas ao longo da história, para um quadro pautado por doenças crónicas. Esse é o resultado do avanço da medicina, que nos permite viver mais, mas que coloca novos desafios aos sistemas de saúde.

Há que considerar também a própria demografia. A este respeito, existem dois grandes efeitos a considerar: por um lado, o aumento ou a diminuição da população; por outro, o envelhecimento. É expectável que se a população diminuir, menos indivíduos necessitarão de cuidados de saúde. De facto, as projecções do Instituto Nacional de Estatística apontam para um Inverno demográfico: no cenário mais positivo, seremos cerca de 9,5 milhões em 2060, menos um milhão do que agora; no cenário mais pessimista, seremos somente 6,7 milhões.

Contudo, este efeito demográfico não pode ser desligado do envelhecimento da população. A evidência empírica sugere que à medida que as pessoas vão envelhecendo mais cuidados de saúde serão necessários, especialmente nos cinco a sete anos que precedem a sua morte. Isto deve-se à própria debilidade da pessoa, às doenças crónicas e às co-morbilidades que muitas vezes estão associadas, obrigando, assim, a um acompanhamento clínico mais frequente. Este efeito é geralmente capturado medindo a despesa em saúde por grupo etário.

Se olharmos apenas para a diminuição da população, e admitindo que tudo o resto se mantém constante (i.e., que o número de médicos não se altera), o rácio de médicos por mil habitantes iria aumentar significativamente, ou seja, a densidade de médicos aumentaria. No entanto, se considerarmos também o envelhecimento da população e ajustarmos a evolução demográfica ao efeito do envelhecimento, o rácio não apenas não aumenta como diminui. Ou seja, e é essa a conclusão a retirar neste ponto, o efeito do envelhecimento suplanta largamente o efeito da diminuição da população, pelo que mesmo num cenário de diminuição da população a procura por cuidados de saúde aumentaria face ao presente.

Faltam médicos ou é a sua distribuição geográfica que é má?

Chegados a este ponto, é fácil perceber que muitas variáveis, sobre as quais recai uma enorme incerteza, condicionam o problema, tornando difícil apurar de uma forma rigorosa se existirão médicos a mais ou a menos no futuro. No presente, contudo, podemos usar alguns indicadores económicos e operacionais para nos ajudar a responder a esta questão.

Num sistema de saúde menos centralizado, como é o caso da maior parte dos sistemas de saúde europeus, os indicadores económicos poderão ser úteis para perceber se existe um desequilíbrio no mercado de trabalho. Tipicamente olha-se para a taxa de desemprego médico ou para o rácio do salário dos médicos comparativamente ao de outras profissões. No caso de uma taxa de desemprego muito elevada, e não existindo nenhum outro factor que explique este fenómeno, é imediato concluir que há um excesso de médicos, e vice-versa. No caso de indicadores operacionais, atenta-se ao número de vagas que ficam por preencher, à quantidade de trabalho extra, às listas de espera, aos casos de burnout ou ao número de médicos estrangeiros a trabalhar no país.

Acontece que o caso de Portugal é ligeiramente diferente, pois a gestão centralizada e a hegemonia do SNS enquanto empregador principal cria algum ruído na interpretação destes indicadores económicos. Escalpelizando estes indicadores para Portugal, constata-se que o número de médicos inscrito no IEFP raramente excede os dois ou três, o que é absolutamente residual. Por outro lado, paulatinamente há casos de vagas por preencher, especialmente no interior do país, como no Alentejo, mas também no Algarve (que, por exemplo, tem dificuldade em preencher as suas vagas para a especialidade de Medicina Geral e Familiar). Ademais, as listas de espera continuam a aumentar, o que também poderá ser indicativo de um défice de profissionais.

Ainda que a análise rápida destes indicadores possa sugerir uma falta de médicos, tal conclusão seria novamente imprudente. Primeiro, porque as assimetrias regionais que existem em Portugal e a incapacidade de fixar médicos no interior não implicam que exista uma falta de médicos a nível nacional, apenas uma má distribuição. Em segundo lugar, porque a prestação de cuidados de saúde em Portugal dá-se maioritariamente através do SNS, pelo que as listas de espera poderão ser apenas um indicador da falta de médicos no sistema público, e não necessariamente da falta de médicos no país.

Nestes últimos anos, ocorreu um fenómeno inusitado no contexto português: houve mais candidatos do que vagas. Em 2017, por exemplo, houve cerca de 2.400 candidatos para 1.758 vagas de especialidade, um diferencial de cerca de 636 vagas.

Mas, se não há médicos a mais, como explicar a emigração médica?

Um dos argumentos geralmente levantados por aqueles que dão conta de um excesso de médicos é o risco da emigração. De facto, quando o mercado de trabalho está em desequilíbrio, e admitindo que não existem barreiras à circulação de pessoas, o mercado ajusta ou através dos preços (i.e., aumento ou redução dos salários) ou, não sendo tal possível devido a rigidezes na economia, através das quantidades (i.e., aumento ou redução do emprego). Em situação de desemprego, incapazes de encontrar trabalho no seu país de residência, muitas pessoas vêem-se forçadas a emigrar.

Independentemente do juízo que cada um possa fazer a este respeito, a emigração pode, de facto, criar problemas no sistema de saúde, especialmente se puser em causa a prestação de cuidados. Isto não significa que o mercado não se ajuste: com a saída de profissionais o salário de equilíbrio tende a subir, o que acaba por atrair médicos estrangeiros ou incentivar até aqueles que emigraram a retornarem. No entanto, este processo é moroso e, no curto prazo, poderá causar desequilíbrios e carências.

Problema prático: não existe nenhum indicador que reporte o número exacto de médicos emigrados. No caso de Portugal, o melhor indicador indirecto é o certificado de boas práticas que os médicos têm de solicitar junto da Ordem dos Médicos para poderem exercer no estrangeiro. No entanto, este indicador apresenta um problema fundamental: solicitar um certificado de boas práticas não implica que o médico emigre, da mesma forma que solicitar um passaporte não implica necessariamente que façamos uma viagem nos meses seguintes. Como tal, não há uma noção precisa de quantos médicos efectivamente emigraram.

Acresce a isto o facto de que muitos daqueles que emigram acabam por voltar anos mais tarde. Estudos realizados com médicos húngaros, num período entre 2003 e 2011, revelam que mais de metade dos médicos emigrados acaba por voltar à Hungria. Mais ainda, o estudo mostra que uma parte muito significativa desta emigração é de médicos altamente qualificados que vão exercer em condições que não são equiparáveis às do seu país de origem. Nesses casos, as políticas públicas serão incapazes de mitigar o efeito migratório.

Abordando o caso de Portugal, dois tipos de fluxos migratórios são geralmente apontados: alunos que não conseguiram entrar nos cursos de medicina e que decidem ir estudar para fora, tipicamente para Espanha ou para a República Checa; médicos generalistas que não conseguiram entrar na sua especialidade de escolha, optando por ir tirar essa especialidade no estrangeiro. O primeiro caso é geralmente negligenciado, não obstante estarem a ser goradas as expectativas, tão válidas como quaisquer outras, destes portugueses. No segundo caso, tende-se a olhar somente para um lado do problema — há médicos a mais para o número de vagas disponíveis — como contraponto a uma outra interpretação possível — há vagas a menos para o número de médicos existentes.

As assimetrias regionais que existem em Portugal e a incapacidade de fixar médicos no interior não implicam que exista uma falta de médicos a nível nacional, apenas uma má distribuição.

Capacidade formativa: um gargalo à formação médica?

Todos os anos são abertas vagas nos diversos hospitais e centros de saúde do país para o internato de especialidade. Estas vagas são publicadas pela ACSS, sendo o limite máximo definido pela Ordem dos Médicos através dos seus colégios de especialidade, que avaliam a idoneidade formativa das instituições para poderem formar médicos especialistas nas várias áreas clínicas, não clínicas e cirúrgicas. Em concreto, os colégios de especialidade avaliam a capacidade que as instituições têm de garantir uma formação de qualidade aos internos que desejam acolher. Tal implica perceber se existem os especialistas, os recursos e os pacientes para que a formação possa ocorrer. Por exemplo, um hospital sem cirurgias de oftalmologia dificilmente poderá oferecer uma boa formação especializada nessa área.

Nestes últimos anos, ocorreu um fenómeno inusitado no contexto português: houve mais candidatos do que vagas. Em 2017, por exemplo, houve cerca de 2.400 candidatos para 1.758 vagas de especialidade, um diferencial de cerca de 636 vagas. Isto significa que alguns ficarão de fora e terão de concorrer novamente no ano seguinte. É justamente sobre estes que recai a preocupação de terem de emigrar – e eles constituem de facto um dos grupos mais susceptíveis a emigrar. Mais ainda, sabemos que é justamente nas especialidades onde há menos médicos que os tempos de espera são superiores.

Por regra, este desajuste entre número de vagas e número de candidatos é reportado nas notícias como um excesso de candidatos. Mas poderá ser visto, de igual forma, como um défice de vagas. Há que ter em atenção, naturalmente, a capacidade das instituições de saúde para formarem os especialistas, até porque estes requerem um supervisor clínico especialista, mas tal não torna evidente que seja um problema de excesso. Mais ainda, há que ter em conta que o número global pode estar ajustado, mas existe um grande declive entre especialidades. Por exemplo, no ano passado abriram somente oito vagas para Neurocirurgia, enquanto que para Medicina Geral e Familiar abriram 462 vagas.

Há ainda uma outra questão no que à formação médica diz respeito: não existem universidades privadas a formar médicos em Portugal, isto por falta de acreditação da agência de acreditação do ensino superior, a A3ES. Em particular, o hospital universitário da Universidade Fernando Pessoa, que solicita desde 2009 autorização para o fazer, e a Católica Lisboa, juntamente com o grupo Luz Saúde, que também está à espera do aval. A justificação oficial é a de que estas universidades poderão não reunir as condições para conferir o grau; outra explicação possível é que existe uma desconfiança quanto à actuação do sector privado nesta área científica do ensino superior. Seja qual for a razão, isto limita a capacidade do sistema em formar novos médicos caso haja necessidade disso.

Assim, importa saber se se deve actuar do lado da procura, limitando o número de médicos a montante, ou do lado da oferta, aumentando o número de vagas. Ora, responder a esta questão requer responder à questão fundamental – temos falta ou excesso de médicos? – para a qual não parece haver resposta certa.

Existe um grande declive entre especialidades. Por exemplo, no ano passado abriram somente oito vagas para Neurocirurgia, enquanto que para Medicina Geral e Familiar abriram 462 vagas.

Conclusão: afinal, há ou não falta de médicos?

A resposta à questão que motiva este ensaio, como deverá ser claro por esta altura, está longe de ser óbvia. O problema é demasiado complexo e sujeito a demasiadas incertezas para que possa ser dada uma resposta taxativa. É possível, contudo, com algum grau de confiança, mostrar que actualmente há falta de médicos, seja porque o SNS não os integra, seja porque não existem, de facto, profissionais suficientes no país para satisfazer as necessidades actuais. Não é raro, muito pelo contrário, encontrar médicos que excedem largamente as 40 horas de trabalho e que estão em situação de burnout, uma situação que a própria Ordem dos Médicos acompanha com preocupação. No entanto, avaliar cenários futuros e se a situação se manterá ou se inverterá é uma questão em aberto. A evolução futura das necessidades de recursos humanos depende de muitos factores, de entre os quais a demografia e a epidemiologia.

Não queremos, contudo, ser inconsequentes. Portanto, é importante dar nota de algo que, pese embora poder ser politicamente incorrecto e chocar alguns, deve ser dito: é mau que não haja, ainda que residualmente, desemprego de médicos. Porquê? Porque tal facto tem duas implicações. A primeira implicação é a de que não é possível filtrar entre profissionais e excluir aqueles que têm piores desempenhos – se todos os médicos estão empregados, não há folga para retirar os que trabalham pior e colocar no seu lugar outros que trabalhariam melhor. Isto seria grave em qualquer sector, mas é de gravidade acrescida num em que a vida e a saúde das pessoas está em causa. A segunda implicação é que se torna muito complicado realocar profissionais, dado que não existem substitutos. Ou seja, esta situação é uma artificialidade, pois não existe desemprego zero: existem sempre pessoas à procura de emprego, em trânsito, pelo que é de certa forma estranho que tal não aconteça também neste mercado de trabalho. Finalmente, importa salientar que alguma folga ou “excesso” de médicos permitiria reforçar a presença destes no interior do país, dado que, na impossibilidade de encontrarem emprego nas grandes urbes, poderiam ter a sua oportunidade nas zonas interiores, mais carenciadas e com menor acesso a cuidados de saúde.

Não obstante, se alguma ilação pode ser retirada dos dados é a de que a prudência é devida no que concerne a este assunto. Especialmente no momento de produzir declarações sonantes que afirmem peremptoriamente que estamos com um excesso ou uma falta de médicos, sob pena de estarem categoricamente erradas.

Mário Amorim Lopes é Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Porto, Assistente Convidado na Católica Porto Business School, Investigador no INESC-TEC, membro do Parlamento da Saúde, doutoramento na área de Gestão e Economia da Saúde.

[Referências]

[1] – Amorim Lopes, Mário; “Porque é que há listas de espera? E como podemos melhorar?”, Observador. Fevereiro de 2018
[2] – Amorim Lopes, Mário; Soares, C.; Almeida, A.; Almada-Lobo, B. (2015). “Comparing comparables: an approach to accurate cross-country comparisons of health systems for effective healthcare planning and policy guidance“. Health Systems. doi:10.1057/hs.2015.21
[3] – Bloor K, Hendry V, Maynard A. (2006), “Do we need more doctors?” J R Soc Med, 99:281–7.
[4] – Castillo-Laborde, Carla. 2011. “Human Resources for Health and Burden of Disease: an Econometric Approach.” Human Resources for Health 9 (1): 22. doi:10.1186/1478-4491-9-4.
[5] – Chen, Lincoln, Timothy Evans, Sudhir Anand, Jo Ivey Boufford, Hilary Brown, Mushtaque Chowdhury, Marcos Cueto, et al. 2004. “Human Resources for Health: Overcoming the Crisis.” The Lancet 364 (9449). Elsevier: 1984–90. doi:10.1016/S0140-6736(04)17482-5
[6] – Amorim Lopes, Mário; Almeida, A.; Almada-Lobo, B. (2015). ”Handling healthcare workforce planning with care: where do we stand?”. Journal of Human Resources for Health. doi:10.1186/s12960-015-0028-0.
[7] – Amorim Lopes, Mário; Almeida, A.; Almada-Lobo, B. (2016). Forecasting the medical workforce: a stochastic-agent based simulation approach. Health Care Management Science. doi:10.1007/s10729-016-9379-x
[8] – Amorim Lopes, Mário; Almeida, A.; Almada-Lobo, B. (2016). Physician emigration: should they stay or should they go? A policy analysis. FEP Working Papers 585.
[9] – Varga, Júlia. 2016. “Out-Migration and Attrition of Physicians and Dentists Before and After EU Accession (2003 and 2011): the Case of Hungary.” The European Journal of Health Economics 18 (9). Springer Berlin Heidelberg: 1079–93. doi:10.1007/s10198-016-0854-6.
[10] – Amorim Lopes, Mário; Almeida, A.; Almada-Lobo, B. (2015) ”Assessing current imbalances in the healthcare workforce”, handbook of the EU Joint Action on Healthcare Workforce Planning (pp. 299-309), European Commission, ISBN 978-80-89825-00-4
[11] – Esteva, Andre, Brett Kuprel, Roberto A Novoa, Justin Ko, Susan M Swetter, Helen M Blau, and Sebastian Thrun. 2017. “Dermatologist-Level Classification of Skin Cancer with Deep Neural Networks..” Nature 542 (7639): 115–18. doi:10.1038/nature21056
[12] – Santana, P. 2013. “Estudo de evolução prospectiva de médicos no Sistema nacional de saúde”. Universidade de Coimbra.

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