“– Estiveste na última sessão no Parlamento?
— Não! Considero o Parlamento totalmente inútil, exceto no que se refere a cuidar de interesses pessoais. E então o que decidiram sobre a trapalhada financeira na Tritão [companhia de seguros]?
— Decidiram por voto direto que, tendo em conta os ideais patrióticos da Companhia de Seguros e o interesse nacional, o Estado deveria comprar as obrigações enquanto a companhia recupera ou entra em falência.
— Isso significa que o Estado suporta a casa enquanto os alicerces se desmoronam, só para dar aos diretores tempo de fugir.
— Preferias ver todos aqueles pequenos investidores…
— Eu sei, eu sei! Todos aqueles pequenos investidores…”
(Conversa entre dois jornalistas, p. 308 )
Não, esta conversa não aconteceu entre dois jornalistas portugueses a propósito do BES ou do Banif. Esta conversa pertence ao romance O Salão Vermelho, escrito em 1879 por August Strindberg. Isso mesmo. 1879. A Suécia do século XIX, afinal não era assim tão diferente de Portugal no século XXI. A diferença talvez seja que eles tiveram um escritor genial que os pôs frente ao impiedoso espelho da sua ironia.
No início de 2015, estreou nas salas de cinema portuguesas o filme “Miss Julie”, realizado por Liv Ullman, uma das musas de Ingmar Bergman, e protagonizado por Jessica Chastain e Colin Farrell. A obra adaptava uma das peças mais famosas de August Strindberg, romancista e dramaturgo sueco do século XIX. A história de uma relação perversa entre uma jovem aristocrata e o seu criado entrou e saiu de cartaz numas escassas duas semanas e tudo o que arrancou dos nossos críticos de cinema foram uns vagos comentários sobre os supostos erros de casting cometidos por Ullman.
Nem por um momento uma reflexão sobre o prodigioso texto de Strindberg, que descasca o humano como se este fosse uma cebola, até nada restar senão brutalidade e tristeza. Dir-se-ia que nem por um momento os nossos críticos de cinema se aperceberam de que a genialidade deste texto era razão mais do que suficiente para suportarmos quaisquer erros de casting. Que este valeria sempre pela possibilidade de conhecermos mais um texto de Strindberg. E, neste caso, uma das suas obras-primas.
Nós, portugueses, que em mais de 140 anos apenas traduzimos três obras deste autor: o romance Gente de Hemsö, uma edição da Europa-América ainda dos anos 70, o texto autobiográfico Inferno, editado em fevereiro de 2015 pela Sistema Solar, e agora O Salão Vermelho, na E-Primatur, com tradução direta do sueco. É pouco. É muito pouco se considerarmos que Strindberg foi um dos precursores do modernismo literário europeu e que as obras que deixou são um momento irrepetível na arte de traduzir em palavras as piores pulsões do humano. Que foi mestre de Ingmar Bergman, de Eugene O’Neill, de Tennessee Williams, de Edward Albee. É impossível conhecer o teatro contemporâneo sem ler Strindberg.
Se quisermos ser mais claros é provável que as obras deste louco e genial sueco não conquistem uma claque igual à de Jo Nesbø ou à de Karl Ove Knausgård, os noruegueses que nos dizem ser “obrigatório” ler. Não. Strindberg não é recomendado aos que não guardam no seu coração um certo cinismo, nem aos que têm propensão para acreditar que o humano é o “bom selvagem”, nem mesmo aos que pensam que os artistas, os pobres, os doentes, as mulheres, as crianças são criaturas inocentes e virtuosas.
É que, além de autopsiar minuciosamente a alma humana, arrancar todas as máscaras que vivem debaixo da pele de cada um, Strindberg ainda usa o afiado bisturi da ironia para não deixar nada de pé: nem personagens, nem leitores. Ao longo dos seus textos, dramas e romances ele joga habilmente com os nossos preconceitos, ilusões e crenças para no fim fazer de cada personagem um mero espelho das nossas fraquezas.
O Salão Vermelho, um livro para já
Há muitas razões para não deixarmos de ler este que foi o primeiro romance e o primeiro êxito da carreira de Strindberg. Escreveu-o em 1879 quando estava casado com a primeira mulher, Siri Von Essen, uma baronesa e aspirante a atriz de 24 anos. Dias que não faziam adivinhar o infortúnio futuro, os divórcios, a ostracização social, a loucura…
Uma das razões é a lucidez e a atualidade desta história passada entre o meio artístico e jornalístico de Estocolmo e tendo sempre como pano de fundo o Parlamento e a vida política nos anos que se seguiram à reforma do sistema parlamentar de 1866, que pretendia dar direito de voto ao povo mas onde, na verdade, apenas uma muito pequena minoria podia votar.
Em O Salão Vermelho reúnem-se os jovens aspirantes a poetas, a pintores, a filósofos, a atores, os jornalistas corruptos e idealistas, conservadores e liberais. Os editores que fizeram sucesso à custa de bestsellers de autores imbecis, os diretores de companhias de teatro mais ocupados em destruir a vida dos atores do que em criar arte, as jovens atrizes que conseguem bons papeis à custa de sexo, os jornais que mudam de ideologia consoante os interesses dos empresários que os compram. Um cenário que nos é tão familiar que dir-se-ia ter sido escrito hoje.
Ao longo de 29 capítulos e 358 páginas vemos o percurso destes jovens, em especial de Arvid Falk, o protagonista, um jovem que abandona uma promissora carreira como funcionário público para se tornar poeta e passa a viver do trabalho como jornalista. Do desejo idealista e ingénuo de conquista da liberdade e da conquista da arte como redenção da vida, até à normalização e à aceitação das regras ou ao suicídio passam apenas algumas primaveras. Afinal, a decência não dura muito, a virtude também não. Afinal, a arte não salva, o amor também não. Portanto, mais vale ter uma sopa quente e uma roupa da moda e um casamento tranquilo.
“O Lundell, entretanto, abandonou completamente a religião e já não pinta nada além de retratos de diretores de gestão, o que os levou a torná-lo associado da Academia de Arte. E agora é imortal, tem um quadro no Museu Nacional” (p.354)
Outra das razões para não se perder este livro é a ironia com a qual Strindberg arrasa tudo com apenas uma frase. João Reis, tradutor desta obra e editor da E-Primatur, gosta de sublinhar a ironia como uma das linhas da genialidade do dramaturgo sueco: “Apesar da dureza e da tragédia deste livro ele tem momentos de puro humor que nos fazem rir. E o riso, a ironia, é algo que falta muito na literatura portuguesa e na vida portuguesa em geral”, diz ao Observador. “Era uma vergonha não termos ainda este livro que abriu a janela para a literatura escandinava e para aquilo que ela tem de melhor: a ironia, a subtileza, a capacidade de abordar questões profundas com uma aparente simplicidade narrativa, os diálogos vivos e inteligentes”, afirma ainda João Reis.
O génio, o misógino, o louco
“… já estamos no inferno. A terra é o inferno, prisão que uma inteligência superior construiu de forma a eu não poder dar um passo sem beliscar a felicidade alheia, e os outros não poderem ser felizes sem me fazer sofrer. […] O fogo do inferno é o desejo do êxito; as Potências despertam-no e consentem que os malditos vejam os seus votos realizados. Mas atingido o objetivo e realizados os anseios, tudo se revela destituído de valor e a vitória é nula! É tudo vaidade das vaidades, nada mais do que vaidade. Depois da primeira desilusão, as Potências sopram o fogo do desejo, da ambição; mas o que mais atormenta não é o apetite insaciado; é, antes, a cobiça satisfeita que inspira o nojo de tudo. O Demónio, esse, também padece infinitamente a pena porque obtém quanto deseja no instante em que deseja, e nada mais tem para gozar. ( Strindberg, Inferno)
August Strindberg deixou escritas mais de 90 obras que atravessam o Impressionismo, o Expressionismo e tocam o Surrealismo. Peças de teatro, romances, ensaios históricos e políticos. Nasceu em Estocolmo em 1849 e morreu em 1912, embora tenha passado vários anos fora da Suécia, nomeadamente em França e na Suíça e Berlim.
Filho de uma criada, cresceu num ambiente de pobreza e fanatismo religioso, estudou na universidade de Uppsala mas abandonou o curso. Colecionou empregos precários até conseguir um lugar na Biblioteca Real, que haveria de abandonar. Durante anos trabalhou em jornais de Estocolmo como redator e crítico e relacionou-se com artistas que se juntavam no salão vermelho do restaurante Bern’s. Tempos que hão-de ser transpostos para o livro homónimo.
O casamento com Siri Von Essen há-de ser o primeiro de vários. Terá cinco filhos, com os quais manterá poucas relações. Uma vida amorosa e familiar sempre atribulada vai dar origem a muitas das suas peças de teatro. Quem leu A Lanterna Mágica, a autobiografia do cineasta Ingmar Bergman, verá que há muitas coisas em comum na vida deste dois suecos.
Vele a pena ouvir este depoimento de Bergman sobre a influencia que Strindberg teve no seu cinema e no seu teatro. Ao longo de quatro décadas o cineasta encenou 30 peças do dramaturgo.
https://www.youtube.com/watch?v=Bc8DpjM4c-c
Se O Salão Vermelho (1879) lhe valeu a aclamação na Suécia e na Dinamarca, outras obras haveriam de fazer dele um inimigo público, como Casados, sobre a igualdade entre homens e mulheres e pela qual foi acusado de blasfémia. Apesar de acreditar na igualdade de direitos das mulheres, quer na vida conjugal, quer social, Srindberg nunca deixava de as apresentar como criaturas pérfidas, ambiciosas, amorais.
Por volta de 1890, Strindberg começou a manifestar alguns sinais de insanidade. Aos 40 anos começou a ter delírios persecutórios, místicos. Apesar do sofrimento psicológico, escreveu como nunca e a primeira década do século XX foi uma das mais profícuas. Chegou a ser conjeturado para o Nobel da Literatura, em 1909. Mas o prémio acabou por ser entregue a outra sueca, Selma Lagerlöf. Morreu em maio de 2912 em consequência de uma pneumonia.
Strindberg desconhecido e a falta cultura editorial em Portugal
Só termos três obras de August Strindberg traduzidas para português em quase 150 anos é, para João Reis, o reflexo da “falta de cultura editorial” que grassa em Portugal, onde “os editores confundem os seus gostos pessoais com o interesse público”, onde “se traduzem sempre os mesmos”, onde se está “preso ao mundo anglo-saxónico e se acha que só é válido editar o que está escrito em inglês”.
Basta percorrermos as livrarias para verificarmos que assim é: em 2015, por exemplo, duas editoras colocaram no mercado duas novas traduções da Guerra e Paz de Tolstoi, mas nenhuma publicou traduções de jovens autores russos. “Não há, por parte dos editores, curiosidade ou vontade de risco”, continua João Reis. “Com os conglomerados editoriais as coisas pioraram. Os mesmos editores circulam pelas editoras e por onde vão passando vão publicando sempre os mesmos livros. É verdade que os escandinavos estão na moda. Mas agora só se publicam esses, só se fala desses, que aliás nem são os melhores…”
O Salão Vermelho tem, como todos os livros da E-Primatur, uma tiragem pequena. O ter saído em dezembro, em plena avalanche natalícia, fá-lo-á ficar obscurecido pela profusa oferta de bestsellers. O site da editora tem sido afinal o principal ponto de vendas deste ilustre desconhecido. E ainda sem saber se o livro vai vingar entre os leitores portugueses, João Reis, promete voltar a traduzir Strindberg.