O tema das Parcerias Público Privadas (PPP) é uma das marcas mais fortes do período de governação de José Sócrates. E o adjetivo “forte” tanto significa que as PPP foram a grande aposta de investimento público dos dois executivos socráticos entre 2005 e 2011, como também foram das mais polémicas. Enquanto o então primeiro-ministro via o investimento em grandes obras públicas com um custo total de mais de 25 mil milhões de euros (entre fundos públicos, privados e comunitários) como uma forma de “melhorar a competitividade do país e, no curto prazo, garantir que mais gente tem emprego”, a oposição e diversos economistas alertavam para os perigos que esse investimento teria no endividamento público, assim como duvidavam que o país conseguisse pagar essa fatura com o débil crescimento económico que tinha desde 2001.
Até membros do PS, como João Cravinho (ex-ministro das Obras Públicas de António Guterres), afirmaram por várias vezes entre 2005 e 2009 que o Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal teria de crescer 3% ao ano para conseguir pagar essa fatura — taxa de crescimento essa que o país não atingia desde 2001 e que não voltou a alcançar até ao momento.
Para além dos alertas e críticas políticas e económicas à política das grandes obras, as PPP rodoviárias sempre estiveram envolvidas em polémicas. Com Mário Lino, ministro das Obras Públicas, e Paulo Campos, secretário de Estado das Obras Públicas, a liderarem politicamente todo o processo, as polémicas variaram entre estudos de viabilidade económica das novas concessões rodoviárias adjudicados a uma empresa fundada por um adjunto de Campos, a recusa do visto prévio do Tribunal de Contas a cinco contratos das subconcessões com fortes críticas à transparência dos processo de reformulação dos contratos, a pressão política do Governo sobre o Tribunal de Contas e, finalmente, o envolvimento de José Sócrates.
Era previsível, principalmente depois da Operação Marquês, que o inquérito das PPP rodoviárias seria a próxima grande investigação ao Governo Sócrates a ser concluída, sete anos depois de ter sido iniciada. Mas o que se pensava que seria um inquérito para arquivar face à dificuldade na obtenção da prova dos diversos crimes económico-financeiros sob suspeita, acabou por ter uma reviravolta.
Inquérito criminal às PPP em fase de conclusão. Ex-governantes de Sócrates estiveram sob escuta
De acordo com a revista Sábado, o Ministério Público e a Polícia Judiciária preparam-se para avançar para a constituição de arguidos na reta final da investigação, o que faz com que um eventual despacho de acusação seja uma forte hipótese num inquérito que, segundo a Sábado, investiga suspeitas de associação criminosa, corrupção, gestão danosa, tráfico de influências, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Mas, afinal, do que falamos quando nos referimos às PPP, nomeadamente as PPP rodoviárias?
A herança das SCUT de Guterres
Ponto prévio: as grandes obras públicas de Sócrates incluíam a Rede de Alta Velocidade (vulgo TGV, a sigla francesa para o comboio de alta velocidade), a Terceira Travessia sobre o Tejo, o Novo Aeroporto de Lisboa e as PPP rodoviárias. O inquérito aberto no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) diz apenas respeito a estas últimas obras, relacionadas essencialmente com contratos de construção, financiamento, exploração e manutenção de autoestradas — as chamadas PPP rodoviárias.
A investigação do DCIAP, coadjuvado pela Polícia Judiciária, centra-se em dois grandes dossiês que atravessaram os dois governos liderados por José Sócrates:
- A renegociação dos sete contratos das autoestradas Sem Custos para o Utilizador (SCUT) lançadas pelo Governo de António Guterres no final da década de 90. O Governo Sócrates introduziu portagens nessas autoestradas, que eram precisamente conhecidas por serem gratuitas para os utilizadores, o que obrigou a renegociar os termos dos contratos. Tal renegociação terá agravado a fatura a pagar pelo Estado em 700 milhões de euros, segundo dados da investigação citados pela Sábado.
- A adjudicação de cinco das sete subconcessões rodoviárias lançadas pela Estradas de Portugal durante o primeiro Executivo Sócrates está igualmente sob escrutínio judicial. Os contratos começaram por ter o visto recusado por parte do Tribunal de Contas, mas acabaram por passar após uma reformulação das condições financeiras de modo a responder às objeções dos juízes. Na investigação do DCIAP e da PJ estarão em causa as subconcessões do Douro Interior, Transmontana, Baixo Alentejo, Litoral Oeste e Algarve Litoral, que foram “chumbadas” na primeira avaliação do TdC e cujos contratos foram reformados. Mas também as subconcessões que não chegaram a ver o visto recusado, mas cujos contratos foram alterados para garantir a sua passagem no Tribunal: Baixo Tejo e Pinhal Interior.
A investigação foi iniciada em 2011, em Faro, depois de o procurador António Ventinhas, atual presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e então apenas membro da direção do sindicato, ter aberto um inquérito criminal. Isto após a publicação de várias notícias na comunicação social sobre os alegados contratos ruinosos das PPP lançadas pelo Governo Sócrates. Mais tarde, e quando os autos já estavam no DCIAP, foram juntas várias queixas-crime, entre as quais uma do Automóvel Clube de Portugal.
Em setembro de 2012 foram noticiadas as primeiras buscas domiciliárias do caso, tendo a PJ entrado em casa de Mário Lino, António Mendonça e Paulo Campos. No final do ano, foram realizadas iguais diligências a Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças, Carlos Costa Pina, ex-secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, e Almerindo Marques, ex-presidente da empresa Estradas de Portugal (atual Infraestruturas de Portugal).
Comecemos por explicar o primeiro dossiê: a renegociação dos contratos das autoestradas SCUT.
Lançadas no primeiro Governo de António Guterres, com João Cravinho à frente do Ministério do Planeamento e das Obras Públicas, as SCUT foram o modelo encontrado para acelerar a execução do Plano Rodoviário Nacional, sem envolver um custo direto imediato para o Estado. Isto é, sem ter um impacto direto e imediato no Orçamento de Estado. Portugal estava já a controlar a despesa pública e o défice para assegurar a entrada na moeda única, que viria a concretizar-se em 1999 e, neste período, começou a ganhar força um movimento de desorçamentação de gastos do Estado, com particular ênfase para as infraestruturas. Daí a primeira acusação que a disseminação das PPP com o modelo SCUT serviram para promover a desorçamentação.
As SCUT nascem num contexto político e social favorável à expansão da rede rodoviária e do investimento público em infraestruturas. São apontadas como uma segunda geração de autoestradas que leva para o Interior, ou pelo menos para fora dos principais centros urbanos, vias com qualidade comparável à das autoestradas, mas sem portagens. São lançadas em nome da coesão territorial, mas também do impacto económico favorável que trariam e que, segundo o Governo Guterres, justificaria o custo financeiro para o Estado. Os privados avançavam com o investimento, financiados na banca e com o contributo frequente do Banco Europeu de Investimentos, e o Estado depois pagava uma renda anual em função do tráfego que permitiria amortizar o investimento, pagar aos financiadores e financiar os custos de operação dos privados que ainda asseguravam margem de lucro significativa.
Foram assinados sete contratos SCUT: Costa da Prata, Grande Porto, Litoral Norte, Via do Infante, Interior Norte, Beiras Litoral e Alta e Beira Interior. Os projetos atraíram novos investidores para o negócio das concessões rodoviárias, em particular as construtoras, como a Mota-Engil (dona da Ascendi em parceria com o Banco Espírito Santo) a liderar o movimento no qual seguiam também a Soares da Costa, Edifer, Construtora do Lena e várias construtoras espanholas. Em poucos anos, e aqui com o empurrão do Governo Sócrates, a Ascendi da Mota-Engil e do BES rivalizaria com a Brisa no setor das concessões rodoviárias.
Mas a fatura — cerca de 700 milhões de euros por ano — começa a chegar às contas públicas numa altura em que Portugal já estava a sentir dificuldades em cumprir as metas europeias do défice, que levaram inclusive ao primeiro procedimento por défice excessivo, poucos anos depois da entrada triunfal no euro.
A chegada de Durão Barroso e a primeira polémica com Sócrates
Os anos do Governo de Durão Barroso, que iniciou funções em 2002 após a demissão de Guterres em dezembro de 2001, foram marcados pela necessidade de conter a despesa e aumentar a receita. Ficou famosa a frase do então primeiro-ministro que acusava os socialistas de terem deixado o “país de tanga”. Uma metáfora que simbolizava o estado das contas públicas. Começa-se então a discutir a necessidade de começar a cobrar as estradas sem portagens.
Mas só com António Mexia como ministro das Obras Públicas, — já com Santana Lopes a liderar o Governo em 2004 depois da ida de Durão Barroso para a Comissão Europeia– é que é apresentada a primeira proposta para introduzir portagens. Um modelo que, refira-se, previa já a cobrança eletrónica — para travar os custos de construir praças de portagens — e com descontos para tráfego local.
Ao ganhar a primeira maioria absoluta do PS em 2005, José Sócrates não deixou cair a intenção, mas Mário Lino, ministro das Obras Públicas, e Paulo Campos, secretário de Estado das Obras Públicas, demoraram muito tempo a concretizá-la.
Em 2006, o ministério de Mário Lino contrata por ajuste direto uma consultora privada, chamada F9 Consulting, para realizar um estudo de viabilidade económica para introduzir portagens nas SCUT com base em vários critérios que, conjugados, obrigavam à introdução de portagens em autoestradas SCUT que tivessem alternativas rodoviárias ou zonas com o rendimento médios e o PIB per capita superior à média nacional. Conclusão: o estudo recomendava a introdução de portagens em apenas três das sete SCUT — Costa da Prata, Grande Porto e Norte Litoral. Uma decisão que gerou protestos de autarcas com providências cautelares e marchas lentas enquanto o Governo negociava com as concessionárias.
Entretanto, a polémica surgiu com uma notícia do semanário Sol: a F9 Consulting tinha como sócio um então adjunto do secretário de Estado Paulo Campos. Pior: Vasco Gueifão, assim se chamava o adjunto, tinha sido “requisitado” pelo Governo à F9 — pelo menos, assim estava descrito num despacho publicado no Diário da República. Campos reagiu à Sócrates: a notícia era uma “mistificação” e um “ataque político” para “descredibilizar o estudo”. Já o então líder do PSD, Marques Mendes, via a questão de outra forma: “relações perigosas”. Mais tarde, o jornal Público noticiou que a consultora tinha sido criada por ex-altos funcionários do BCP, especialistas em banca de investimento, no dia 18 de janeiro de 2001 e um dia depois tinha sido contratada pela empresa Águas de Portugal, liderada por Mário Lino.
As portagens em três SCUT só viriam a chegar depois das eleições, em outubro de 2010, já com o país em plena derrapagem financeira e a meses do resgate. A extensão da cobrança às restantes SCUT era uma questão de tempo. Chegou a ser aprovada pelo Governo socialista, mas já foi implementada pelo Executivo do PSD/CDS em dezembro de 2011.
A cobrança eletrónica avançou através do sistema da Via Verde com a instalação de pórticos para contagem de tráfego e medição do percurso feito. Com a crise económica e o descontentamento a ganhar força, nem os descontos para os utilizadores frequentes travaram a queda a pique do tráfego, que chegou a atingir dimensões de 40% a 50%. Para além da fuga dos condutores para as estradas tradicionais, disparou a taxa de incumprimento, uma situação que penalizou ainda mais a receita da IP que assumiu sozinha o risco de tráfego.
Como as portagens transferiram todo o risco para o Estado
Esse não foi o único impacto negativo para o Estado resultante da renegociação destes contratos. A introdução de portagens nas primeiras três SCUT só foi possível graças ao acordo com a principal operadora privada destas vias (Grande Porto e Costa da Prata): a Ascendi. Esta concessionária, contudo, aproveitou a necessidade do Estado de rever estes contratos para incluir no pacote a renegociação das concessões com portagem (Grande Lisboa e Concessão Norte), que até então não custavam nada ao contribuinte.
Todos os contratos SCUT acabaram por ser renegociados — sendo esse um dos pontos centrais da investigação, considerada muito técnica tendo em conta a complexidade dos contratos das PPP que estão a ser alvo de escrutínio judicial.
O DCIAP e a PJ suspeitam, com base em relatórios técnicos solicitados a peritos independentes, que os estudos de tráfego que estão na origem da construção dos modelos financeiros dos novos contratos SCUT terão sido empolados, o que aumentou o valor a pagar pelo Estado às concessionárias privadas.
Esta alteração foi um dos temas escrutinado na Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as PPP em 2012. O relatório deste inquérito cita uma avaliação sobre os impactos financeiros para o Estado desta renegociação efetuada pelo regulador rodoviário, entretanto integrado na Autoridade de Mobilidade e Transportes.
Segundo se lê no relatório do Instituto Nacional das Infraestruturas Rodoviárias (INIR), o então regulador reconheceu que, no caso das antigas SCUT, os “acordos revelam fluxos financeiros claramente benéficos para a EP (Estradas de Portugal) resultantes da introdução de portagens”. Mas ao mesmo tempo alerta, no caso das concessões com portagem, que não só os benefícios são incertos como existe até “a forte probabilidade de os acordos se virem a revelar muito desvantajosos do ponto de vista financeiro [para o Estado], caso os cenários de tráfego extremamente otimistas presentes nos casos base não sejam atingidos”.
Basta olhar para este exemplo da SCUT do Grande Porto: o contrato original estipulava um tráfego médio diário de 58,3 mil carros para o período entre 2008 e 2010; na renegociação, tal valor desceu para 45,5 mil carros — um valor otimista tendo em conta a crise que já se adivinhava –, sendo que o valor real foi de apenas 39,2 mil viaturas.
Qual era a consequências destes alegados números empolados? Uma das mudanças foi passar de um pagamento do Estado calculado essencialmente em função do tráfego para um modelo de pagamento por disponibilidade da infraestrutura, o que passou para a esfera pública o risco de tráfego. De acordo com um relatório do Tribunal de Contas, esta renegociação dos contratos SCUT terá levado a um aumento de encargos de 700 milhões de euros, o que fez disparar a fatura total para 4,3 mil milhões de euros.
O INIR questiona ainda que esses pagamentos tenham sido calculados em função dos casos base iniciais para a previsão de tráfego que evidenciavam números mais elevados do que a realidade.
“Apesar do menor risco associado às receitas de disponibilidade, os parceiros privados asseguraram globalmente receitas idênticas às previstas no casos base iniciais, mesmo nas concessões cujo tráfego se vinha revelando bastante inferior à dos casos base”. Segundo este relatório da autoria do deputado do PSD, Sérgio Azevedo, e fortemente contestado pelos socialistas, nas concessões ex-SCUT, o somatório dos encargos da EP com pagamentos de disponibilidade, e da prestação de serviços de cobrança de portagens — contas do então presidente da EP, António Ramalho indicam que por cada 5 euros cobrados só chegam 3,3 euros à empresa pública — “é superior à expetativa dos encargos do Estado com os pagamentos SCUT decorrentes das versões iniciais dos contratos de concessão”.
Para validar hoje esta conclusão seria necessário perceber até que ponto as receitas nas ex-SCUT recuperaram face às quedas dos primeiros anos pós-portagem e se as previsões de tráfego descritas como “otimistas” que serviram para calcular pagamentos se aproximaram da realidade. De acordo com os dados da investigação publicados pela revista Sábado, o Estado terá sido prejudicado.
As subconcessões de Sócrates. Contra tudo e contra todos
Ao mesmo tempo que preparava o início da cobrança das SCUT, o primeiro Governo de Sócrates pôs em marcha um programa ambicioso de investimento, público e privado, que prometia gerar crescimento económico e, sobretudo criar emprego. O plano para infraestruturas prioritárias, apresentado em 2005, previa um investimento total de 25 mil milhões de euros. O novo aeroporto de Lisboa e a rede de alta velocidade (TGV) eram os projetos emblemáticos deste pacote e aqueles que mais debate suscitaram. Mas enquanto a oposição à direita, economistas, engenheiros e colunistas arrasavam as grandes obras faraónicas, as concessões rodoviárias — que no seu conjunto custavam tanto como o TGV ou o aeroporto, mas cuja fatura da ordem dos 400 milhões de euros anuais só chegaria a partir de 2014 — avançaram, sem grandes obstáculos. Pelo menos até 2008.
No novo pacote de concessões, estavam o Túnel do Marão, a autoestrada Transmontana, o Douro Interior, Autoestradas do Centro, Litoral Oeste, Baixo Tejo, Algarve Litoral, Baixo Alentejo e Pinhal Interior. Com exceção da primeira, esta terceira vaga de concessões incluía autoestradas com e sem portagem, construção de novos troços e a exploração, requalificação e manutenção de estradas já existentes que estavam na esfera da então Estradas de Portugal. Em vez do Estado, é a empresa EP, ela própria uma concessionária da rede rodoviária pública, a lançar os novos projetos (daí o termo subconcessões).
As regras do concurso ditavam que na fase final, chamada the best and final offer (BAFO) e que se caracteriza por uma negociação direta com os dois concorrentes qualificados diretamente com o Estado, os concorrentes baixassem o valor da proposta apresentada na primeira fase.
Mas não foi isso que aconteceu. A crise financeira e o pânico que se seguiu à falência do Lehman Brothers fizeram disparar os custos financeiros, com os bancos financiadores a exigir spreads mais elevados, refletindo a falta de liquidez e o risco mais elevado destes projetos. As propostas finais não foram melhores do que as iniciais, porque os custos financeiros eram mais elevados.
A subida do preço infringia claramente as regras do concurso público, entendem também as autoridades judiciais, mas o Governo Sócrates queria avançar na mesma com as obras — até porque, de todas as comissões de avaliação, apenas uma recusou adjudicar porque considerou que havia violação das regras.
A concessão da Autoestradas do Centro, que muitos apontavam como mais interessante do ponto de vista de tráfego, cai, mas as restantes prosseguem, com o fundamento de que a crise financeira era uma razão excecional que justificava a subida dos custos financeiros. Mas não sem os financiadores obterem antes garantias adicionais do Estado de que a Estradas de Portugal teria condições para cumprir os compromissos futuros.
Privados exigiram o conforto do Estado, Tribuna de Contas recusa visto
A 29 de setembro de 2008 é assinada uma carta de conforto pelos ministros das Finanças e Obras Públicas — Teixeira dos Santos e Mário Lino — a dar essas garantias aos privados e entidades financiadoras. Por trás desta garantia adicional esteve uma análise técnica elaborada pela Credip — instituição financeira criada pela Caixa Geral de Depósitos e pela Parpública para apoiar a montagem de financiamentos de projetos de investimento público. Esta entidade sinalizou ao Estado que a Estradas de Portugal não teria condições de financiar encargos superiores a 7,5 mil milhões de euros.
Sérgio Monteiro, que à data de Comissão Parlamentar de Inquérito era secretário de Estado das Obras Públicas mas que tinha desempenhado em 2008 o cargo de administrador da Credip, afirmou: “A partir do momento em que ultrapassasse o limite de 7,5 mil milhões de euros, tinha a expetativa, do ponto de vista técnico, de que não haveria cabimento orçamental por parte da Estradas de Portugal”.
O relatório elaborado pelo deputado social-democrata Sérgio Azevedo conclui que o Governo de José Sócrates “entendeu não acatar essa recomendação técnica, tendo recusado a sugestão de a EP não incorrer em encargos superiores a 7,5 mil milhões de euros com as subconcessões rodoviárias a 30 anos” e acabou por dar ordens para assumir encargos muito superiores, na ordem dos “11 mil milhões de euros.” Isto apoiado na carta de conforto, na qual ficou expresso que o Estado português “procurará criar sempre as condições necessárias para que a EP possa cumprir tais obrigações”.
Com a adjudicação feita, contratos assinados e custos já comprometidos, o Tribunal de Contas (TdC) recusa o visto prévio a cinco das subconcessões no final de 2009, invocando vários argumentos, entre os quais a violação das regras do concurso. Estava criada uma situação inédita — o que levou mesmo a uma alteração legal que estabeleceu a obrigação prévia do visto do Tribunal antes de um contrato começar a produzir efeitos financeiros.
O embaraço político com a decisão do TdC foi evidente mas também existia um risco muito real de o Estado ter de indemnizar os privados com quem tinha assinado os contratos.
Seguiu-se uma maratona negocial para salvar os contratos e as novas concessões rodoviárias, um processo no qual houve pressões do Governo e do primeiro-ministro, veio a admitir na comissão parlamentar de inquérito o antigo presidente da Estradas de Portugal, Almerindo Marques.
Almerindo Marques: Agora sei — é público e notório, e conhecidíssimo — da pressão que era feita sistematicamente para se adjudicar mais e mais obras obras. Era conhecidíssima a posição, por exemplo, do primeiro-ministro à época.
Altino Bessa (deputado do CDS): O primeiro-ministro eng. José Sócrates pressionava a Estradas de Portugal para concretizar mais e mais obra?
Almerindo Marques: Eu não disse que o eng. José Sócrates pressionava as estruturas políticas. (….) Disse que o [então] primeiro-ministro pressionava as estruturas políticas, o senhor secretário de Estado [das Obras Públicas], para me dar instruções nesse sentido: ser contratualizada mais e mais obra.
Reunião na Presidência do Conselho de Ministros a um sábado à tarde
Almerindo Marques, que já terá sido ouvido como testemunha na investigação judicial, confirmou ainda a intervenção do Governo junto do Tribunal de Contas, revelando que “houve diligências entre o poder político e o poder institucional para se encontrar uma solução”.
Uma dessas diligências consistiu num encontro realizado num sábado à tarde no prédio do Conselho de Ministros entre o então secretário de Estado das Obras Públicas, Paulo Campos, e o diretor-geral do Tribunal de Contas, José Tavares, com o objetivo de reformar os contratos e garantir o visto prévio, o que veio a acontecer já em 2010.
“O contrato reformado foi feito pelos serviços da Estradas de Portugal, ponto final. Não há qualquer dificuldade em perceber isso. Havia, de facto, um caminho a percorrer, havia procedimentos a adotar e, para isso, sempre que necessário, o sr. dr. Tavares dava indicações: ‘Olhem, aí a abordagem é fazer isto’.”
Esta matéria também está a ser alvo de escrutínio judicial por parte do DCIAP e da PJ. O envolvimento de membros do Governo de José Sócrates num acto de alegada pressão sobre o Tribunal de Contas para aprovar o visto prévio dos contratos das subconcessões pode ter relevância para uma eventual imputação de alguns dos ilícitos criminais que estão em investigação.
Numa auditoria de 2012, o Tribunal de Contas estima em 705 milhões de euros o agravamento de encargos que resultou da “enorme alteração” verificada nos mercados durante a crise financeira. Almerindo Marques justifica que essa fatura extra — cujo valor não confirma — seria diluída em 30 anos. E sustentou que a empresa estudou todas as alternativas. “Fosse qual fosse a outra opção que se pusesse, a verdade é que sempre seria escandalosamente mais caro”, afirmou.
Tribunal de Contas detecta alterações contratuais não comunicadas
Depois de aceitar, em sede de fiscalização prévia, a reformulação dos contratos para assegurar que era cumprida a regra de não agravamento das condições financeira das propostas, tendo para tal o valor das mesmas sido alvo de redução, o TdC acaba por detetar a existência de “compensações contingentes”, definidas em acordos entre os bancos, concessionárias e Estradas de Portugal, que não terão sido comunicados em sede de visto prévio à respetiva secção do Tribunal.
Estas compensações são “devidas às subconcessionárias sem reservas ou condições e têm por objetivo compensar as mesmas pelos custos financeiros adicionais sofridos, em resultado da crise financeira internacional”. Um dos aspetos reformado foi a introdução da cláusula que dava ao Estado (Estradas de Portugal) todos os ganhos financeiros que viessem a ser obtidos com o refinanciamento dos projetos ou a descida das taxas de juro. Mas só se essa vantagem se concretizasse é que a situação do Estado ficaria melhor do que estava nos contratos originais.
Segundo a auditoria, o valor atualizado dos encargos previstos com os contratos reformados, mais os encargos relativos aos acordos de compensações contingentes “equivaleria, na prática, ao valor atualizado — o VAL mede o esforço público — previsto nos contratos que foram objeto de recusa pelo Tribunal”. Estes acordos representam assim “uma forma adicional de remuneração das subconcessões que não estava prevista” e que não foi refletida nos contratos principais nem visada pelos juízos. “Neste contexto, o Tribunal vai estar atento aos eventuais pagamentos a realizar sob a forma de compensações contingentes, uma vez que podem, os mesmos, vir a constituir infrações financeiras”.
Todas estas matérias estão a ser analisadas pela investigação do DCIAP e da PJ.