Índice
Índice
Em 242 anos, o La Scala, edifício da mítica ópera de Milão, fechou portas apenas seis vezes. A última foi em 2002, quando foram feitos trabalhos de renovação. A que deixou mais marcas foi em 1943, quando um bombardeamento em plena II Guerra Mundial deixou o La Scala parcialmente destruído, como relembra o La Repubblica. Agora, em pleno século XXI, a ópera de Milão volta a ficar suspensa. Não há obras, nem bombas. O motivo é a chegada com estrondo da epidemia de Coronavírus (Covid-19) a Itália, o país que enfrenta o pior surto fora da Ásia.
Em menos de 48 horas, o vírus chegou ao norte do país, infetou mais de 200 pessoas e matou cinco. E já esta segunda-feira de manhã o número de mortes subiu para cinco. A Universidade norte-americana Johns Hopkins confirmou que Itália é já o terceiro país com o maior número de casos registados, (nesta manhã de segunda-feira têm estado sempre a subir, às 9h24 eram 212) apenas atrás da China (quase 77 mil) e da Coreia do Sul (602). E os efeitos têm ido para lá da doença: em Milão, os supermercados ficaram com as prateleiras vazias e são muitas as aldeias isoladas; na fronteira com a Áustria, um comboio foi impedido de passar por suspeitas de que dois passageiros a bordo estivessem infetados e o tráfego ferroviário ficou cortado; e em Ríade, os ministros das Finanças do G20 falam em “risco real” para a economia.
Na capital da Alemanha, o famoso ator e realizador italiano Roberto Begnini descreveu o que se vive atualmente no seu país como “uma psicose”. “Temos de reagir. Não podemos entrar em pânico”, apelou, a partir da Berlinale. “Agora só falamos disto e é claro que chega o pânico. Em vez disso, temos de desvalorizar. Mas, ao mesmo tempo, é claro que não podemos baixar a guarda.”
A corrida aos supermercados. “Os enlatados e as massas foram as primeiras coisas a esgotar”
É esse difícil equilíbrio que as autoridades italianas têm tentado alcançar, mantendo as populações informadas, mas tentando relativizar as notícias que vão chegando. Filipe Batista, português que vive em Besozzo, na região da Lombardia, há dez anos, conta ao Observador como tem funcionado: “Tem havido uma comunicação em contínuo das autoridades. Pelos meios de comunicação social, é claro, mas também através dos municípios, que às vezes nos contactam pelos grupos de WhatsApp, o que tem sido muito útil”, revela. “Dizem-nos para não entrarmos em pânico, mas obviamente que quando as pessoas veem o que se está a passar, muitas entram em pânico à mesma.”
Nas regiões da Lombardia e de Veneto, mais de 50 mil pessoas estão em zonas de onde não é permitido, atualmente, sair — nem entrar. Ali as escolas, teatros e museus estão fechados e todos os eventos públicos foram adiados. “Começámos a perceber a gravidade da situação na sexta-feira, quando se soube que havia 10 ou 11 localidades na Lombardia que tinham sido fechadas, um pouco à semelhança do que aconteceu na China”, conta Filipe Batista. Contudo, ao perceber que se tratavam de localidades pequenas, Filipe e a família não se alarmaram. Foi só na noite de sábado que, ao ver o número de casos a subir, ficaram mais preocupados: “Vimos 50 infetados, 60 infetados… E começámos a ver que estava a tomar outras proporções.”
As autoridades italianas começaram a decretar mais medidas para controlar o surto e a alargá-las a mais localidades. Bresozzo, onde Filipe vive, é um dos locais onde as escolas estarão fechadas pelo menos nos próximos sete dias. Por essa razão, o investigador irá ficar em casa, com a filha, já a partir de segunda-feira. Irá recorrer ao tele-trabalho, tal como a mulher e muitos outros italianos que irão passar esta semana a trabalhar a partir de casa. Outras medidas estendem-se ao resto do país: há jogos da Serie A adiados e múltiplos eventos suspensos. O famoso Carnaval de Veneza acabou mesmo por ser cancelado e já não haverá concentração de milhares na Praça de São Marco até quarta-feira de manhã, já que as autoridades consideraram que isso seria demasiado arriscado.
À medida que estas regras foram sendo aplicadas, o pânico foi-se espalhando ao longo do fim-de-semana. Este domingo, os supermercados em Milão entraram em rotura, depois de uma corrida às lojas ter deixado as prateleiras vazias, como mostram as imagens que circulam nas redes sociais.
#Milano residents stacking up in fear of #Coronavirus spread, ready to lock down in their homes. No panic but the stress is in the air. pic.twitter.com/jfYnoE2y3Q
— Ashtyn G (@TwoWolfies) February 23, 2020
Empty shelves in supermarkets in #Italy. People have rushed to shop for food, disinfectants and other supplies as the number of people affected by #coronavirus in the country continues to grow. pic.twitter.com/9GsDWP0ERa
— Mariaelena Agostini (@AgostiniMea) February 23, 2020
Filipe Batista e a família deram de caras com essa realidade este domingo de manhã. Quando a mulher de Filipe foi às compras antes da hora de almoço, como faz todos os domingos, deparou-se com um supermercado cheio de gente, onde os clientes tinham os carrinhos apinhados. Mais tarde, alguns amigos foram também às compras e encontraram as prateleiras totalmente vazias. Fotografaram-nas e enviaram as imagens a Filipe pelo Whatsapp. A sua mulher tentou então ir comprar enlatados, antes que esgotassem de vez, mas não teve sorte. Já não havia nada nas prateleiras.
https://twitter.com/filipebatsilv/status/1231654575901478913
“Tem havido uma corrida espontânea aos supermercados, isto foi de facto bottom-up. As pessoas sentiram que precisavam de ter abastecimentos em casa e começaram a trazer do supermercado bens de longa duração, como os enlatados e as massas. Foram as primeiras coisas a esgotar”, conta este cientista, cujo principal receio não está tanto na possibilidade de o coronavírus chegar à sua localidade. O que Filipe mais teme, conta, é que o sistema de saúde não seja capaz de dar resposta a um surto de grande dimensão: “O meu maior receio é que, se o nível de infeções aumentar exponencialmente, o sistema não tenha capacidade de dar resposta a todos os casos. Apesar da mortalidade não ser muito elevada, as pessoas que estão infetadas precisam de tratamento.”
De acordo com o La Stampa, já não é possível encontrar desinfetante em nenhuma loja de Milão e as máscaras já esgotaram nas farmácias. O Repubblica acrescenta outra informação perturbadora: na manhã de domingo, já era possível encontrar na Amazon desinfetante a um preço sete vezes superior ao normal, o que levou o próprio gigante retalhista a intervir e a impor um teto ao preço daquele tipo de produto.
Uma situação que já foi criticada por alguns, como a diretora do instituto de análises do hospital Luigi Sacco, em Milão. Maria Rita Gismondo levou a sua indignação para o Facebook, onde escreve que a sua equipa tem trabalhado dia e noite e que está exausta. “Tratam esta infeção como se fosse uma pandemia letal, mais grave do que uma gripe. Não é, olhem para os números”, afirmou, apontando para o número de mortes, que à altura tinha sido de apenas uma no país, comparada com 217 por gripe na semana anterior.
Coronavírus representa “risco real” para a economia global
“Psicose” para uns, precauções necessárias para outros. E não é apenas no país que se vão sentindo os efeitos deste rápido contágio dentro da Lombardia. Ao longo do fim-de-semana, foram chegando reações de vários países para tentar conter o Covid-19 dentro de Itália. A líder do partido de extrema-direita francês União Nacional (ex-Frente Nacional), Marine Le Pen, sugeriu por exemplo o fecho da fronteira entre França e Itália no caso de o surto ficar “fora do controlo”, dizendo que mais vale fazer demais do que ficar aquém.
Noutros países concretizaram-se medidas de contenção: a Roménia impôs observação médica a todos os que chegam ao aeroporto de Bucareste e quarentena obrigatória aos que tiverem vindo da Lombardia ou de Veneto; à noite, na Áustria, a empresa ferroviária ÖBB decidiu impedir a entrada de um comboio vindo de Veneza e cancelar as ligações de comboio entre o país e Itália. O motivo? A bordo seguiam dois passageiros, de nacionalidade alemã, que tinham sintomas que podem indicar que estão infetados pelo coronavírus.
Para além dos efeitos na saúde global, há receios face ao impacto económico que o Covid-19 pode trazer. “Acima de tudo, o vírus Covid-19 é uma tragédia humana, mas também tem impacto económico negativo. Relatei ao G20 que, mesmo no caso de rápida contenção do vírus, o crescimento na China e no resto do mundo seria afetado”, disse Kristalina Georgieva, Diretora-Geral do FMI.
“Obviamente que todos esperamos uma recuperação rápida, mas, dada a incerteza, seria prudente prepararmo-nos para cenários mais adversos”, avisou Georgieva, que arriscou mesmo prever um crescimento global inferior ao ano passado em 0,1 pontos percentuais.
O ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, assegurou que todos os presentes na reunião do G20 estão conscientes de que o coronavírus é um “risco real” para a economia mundial. O seu homólogo norte-americano, Steven Mnuchin, garante que daqui a “três ou quatro semanas” já será possível ter uma noção mais concreta do impacto do vírus na economia. Até lá, a preocupação mantém-se.
O impacto internacional da epidemia alastra-se a outras dimensões, chegando até à geopolítica. Este domingo, responsáveis norte-americanos confirmaram à Agência France-Press que detetaram uma ofensiva online de contas “relacionadas com a Rússia” em várias redes sociais que tentavam ligar a epidemia aos Estados Unidos. “O objetivo da Rússia é semear a discórdia e enfraquecer as instituições dos Estados Unidos”, afirmou Philip Reeker, vice-secretário de Estado.
As teorias da conspiração que circulam pelo Instagram, Twitter e Facebook dizem que o vírus foi criado pelos próprios EUA para enfraquecerem a China, como parte da estratégia para vencer a guerra comercial entre os dois países. Algumas contas falam mesmo numa arma biológica criada pela CIA. “Conseguimos ver todo o ecossistema de desinformação deles em ação, incluindo na televisão estatal [Russia Today, RT], nos sites que lhe são próximos e em centenas de contas falsas em redes sociais”, explicou Lea Gabrielle, do Departamento de Estado, à AFP.
O mistério do “paciente-zero” desconhecido
Teorias que se espalham a alta velocidade perante uma situação onde a incerteza e o medo têm tendência a sobrepor-se à calma e à racionalidade. A ajudar ao clima de receio está o facto de as autoridades italianas terem reconhecido este domingo que, ao contrário do que tinha sido dito inicialmente, não saberem ainda quem é o “paciente-zero” no país — o que significa que há por enquanto um total desconhecimento sobre como é que o coronavírus chegou a Itália.
Sabe-se que o primeiro paciente a demonstrar sintomas e que foi diagnosticado com coronavírus foi um homem de 38 anos, da aldeia de Codogno, que acabou por infetar a mulher, grávida de oito meses, e vários profissionais de saúde no hospital. Foi ele o acender do rastilho e é por isso que é identificado como “paciente 1”. Inicialmente, as autoridades italianas suspeitaram de que teria sido um amigo seu, empresário de 40 anos que tinha estado recentemente em Xangai, quem teria trazido o Covid-19 da China e contagiado o amigo.
O empresário não tinha qualquer sintoma, mas isso não seria razão para assumir que não tinha contagiado. Só que o alegado “paciente-zero” foi testado uma e outra vez e os testes para coronavírus continuaram a dar negativo. O vice-ministro da Saúde italiano, Pierpaolo Sileri, confirmou este domingo: o homem nunca esteve sequer infetado, razão pela qual não é ele o “paciente-zero”.
O mistério é particularmente relevante porque demonstra que talvez ainda não saibamos tudo o que há para saber sobre este vírus e a forma como se comporta. Mais: alguns membros da comunidade científica explicam mesmo que, caso não seja encontrada uma ligação epidemiológica clara entre Itália e a China, pode ser sinal de que já não é possível conter totalmente o vírus. “Já não acredito que seja possível evitar uma pandemia”, avisou o epidemiologista alemão Christian Drosten a uma agência de notícias alemã, apontando para um estudo recente da Imperial College, em Londres, que estima que apenas um terço dos casos importados da China são detetados, neste momento.
Isso mesmo já reconheceu oficialmente a Organização Mundial da Saúde (OMS). “O que preocupa na situação italiana é que nem todos os casos registados têm um historial epidemiológico claro. Ou seja, uma ligação a uma viagem à China ou a contactos com outras pessoas infetadas”, explicou ao La Repubblica o diretor da OMS para a Europa, Hans Kluge. O responsável sublinha que, no entanto, os dados mostram que não há razão para pânico: “98% dos casos são na China, em mais de 80% dos casos as pessoas têm sintomas ligeiros, os casos graves são menos de 15%” e “a mortalidade é de apenas 2%”.
Mas se na Europa a situação ainda está controlada, noutras partes do mundo o cornavírus parece estar a saltar fronteiras e a implantar-se com mais força para lá da China. No Irão, na manhã de segunda-feira já 50 pessoas tinham morrido, vítimas do Covid-19. A Coreia do Sul tem registado um aumento exponencial de casos ao longo dos últimos dias, estando já em segundo lugar no número de casos, apenas atrás da China, epicentro da epidemia. Nesta segunda-feira registou dois mortos. A probabilidade de o coronavírus evoluir para uma pandemia é cada vez maior, razão pela qual haja já quem alerte para o facto de que esta pode ser a famosa doença X, a grande pandemia que a OMS previu em tempos que poderia abalar o mundo.
"In 2% of reported cases, the #coronavirus is fatal, and the risk of death increases the older a patient is, and with underlying health conditions.
We see relatively few cases among children. More research is needed to understand why"-@DrTedros #COVID19
— World Health Organization (WHO) (@WHO) February 22, 2020
Para evitar que o coronavírus alastre por toda a Ásia, Médio Oriente e Europa — e que não chegue à América nem a África, continente que preocupa a OMS em particular pela tibieza dos seus sistemas de saúde — as autoridades de saúde têm de trabalhar rapidamente e com agilidade. “O ponto de viragem a partir do qual perdemos a capacidade de impedir uma pandemia global ficou muito mais próximo nas últimas 24 horas”, avisou Paul Hunter, professor da Universidade de East Anglia, ao The Guardian.
No final de contas, olhando com frieza para os números, na Europa ainda estamos longe de uma situação descontrolada. Uma simples gripe, explicou Hans Kluge, provoca 50 mil mortes por ano na Europa, um número infinitamente superior às cinco mortes registadas em Itália. No entanto, a situação é suficientemente séria para o responsável da OMS alertar para a necessidade de cumprir todas as regras: “O Covid-19 é um vírus novo e ainda estamos a fazer investigação para descobrir uma cura e preparar uma vacina. Mas isso leva tempo. Portanto temos de nos focar nas medidas de saúde pública que podem ser adotadas hoje, para salvar vidas.”
(texto atualizado às 11h42 de segunda-feira, dia 24 de fevereiro, com o número de infetados em Itália e de mortos no Irão e na Coreia do Sul)