Onde estava na manhã de 24 de junho de 2016, quando a Europa e o mundo acordaram para a realidade atordoante de que o Reino Unido tinha votado pela saída da União Europeia? A memória ainda está fresca na cabeça de responsáveis políticos, de investidores, de toda a gente. Na corrida para a Casa Branca, goste-se ou não, Hillary Clinton aparece como a candidata da continuidade, enquanto Trump surge como o candidato mais disruptivo e imprevisível. É por isso que, com o trauma do Brexit, ninguém quer fiar-se na Virgem e os mercados não querem voltar a ser apanhados em contrapé. Mas de que é que os investidores têm medo, em concreto? O que é que está, realmente, ao alcance de Trump e o que é que nunca passará de fantasias e promessas de campanha?
É muito raro que a eleição de um novo Presidente implique uma alteração radical da política económica, social e externa dos EUA. Isso aconteceu, muitos concordarão, com a eleição de Ronald Reagan, republicano, em 1980. Reagan e a sua “economia de vudu” trouxeram um corte drástico na carga fiscal em simultâneo com um aumento do investimento público. Ao mesmo tempo, as empresas foram sacudidas, como um cão que acaba de dar um mergulho no mar, de boa parte da regulação que poderia ser areia na engrenagem.
Estas foram medidas com um impacto significativo na trajetória económica dos EUA. Discutivelmente, nenhum outro Presidente conseguiu (ou tentou) imprimir uma mudança tão drástica e súbita nas políticas públicas. Mas é precisamente isso que Donald Trump diz querer e foi sobre essa plataforma que obteve a nomeação republicana para as eleições da próxima semana. É por isso que existe uma grande incerteza sobre aquilo que o magnata pretende, efetivamente, fazer.
“A verdade” estará algures entre três narrativas
Para o politólogo Carlos Jalali, “não temos uma ideia muito clara do que pode vir a ser ação política de Trump, se ele for eleito, porque ele nunca exerceu um cargo político”. Além disso, acrescenta o diretor do Mestrado em Ciência Política da Universidade de Aveiro, “as posições assumidas ao longo da campanha nunca são explicadas, com detalhe, e, por outro lado, tem havido alguma volatilidade nas opiniões manifestadas” pelo magnata.
Isso faz com que “a verdade irá, provavelmente, estar algures no meio de três narrativas: a que apresenta Trump como um empresário hábil nas negociações, a narrativa que o apresenta como um homem errático e perigoso e, finalmente, uma narrativa que reconhece que o sistema político norte-americano tem mecanismos de freios e contrapesos (os chamados checks and balances) que impedem que Trump possa fazer o que quer”, afirma o politólogo, em conversa telefónica com o Observador.
Entre esses mecanismos de checks and balances estão, por exemplo, a estrutura militar e a rede diplomática que os EUA têm espalhada pelo mundo. Trump não irá — nem tem máquina para isso, diz Carlos Jalali — mudar todas as pessoas nesses cargos. Isto é, o magnata terá — por necessidade e por busca de apoios — de recorrer aos recursos do partido. Por outro lado, há que lembrar que, ainda que os EUA tenham um sistema presidencialista, cabe ao Presidente cumprir a Constituição, estando sujeito ao crivo do Supremo Tribunal. Finalmente, como Barack Obama sabe, por experiência dos últimos dois anos, será muito difícil para Trump fazer passar legislação se o Congresso voltar, como parece provável, a ser dominado pelos democratas.
Quem vai ser o "pato sentado" agora?
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Os deputados da Câmara de Representantes, os congressistas, têm mandatos de dois anos, ao passo que os membros do Senado ficam seis anos no cargo, mais do que o Presidente (4, que pode ser reeleito uma vez). O Congresso é preenchido de acordo com a população de cada Estado (cada Estado tem de ter pelo menos um membro). A Califórnia é o Estado com maior número de congressistas, com 53.
Além do Presidente, são eleitos 435 congressistas e 34 dos 100 senadores também vão mudar. A expectativa é que os democratas podem recuperar a maioria no Congresso, que tem sido dominado pelos republicanos nos últimos anos — tornando Barack Obama um “pato sentado”.
O líder da atual maioria Republicana do Senado, Mitch McConnell, foi um apoiante, pouco efusivo mas sólido, de Donald Trump. E em junho afirmou, em entrevista à CNBC, que não concordava com muito daquilo que Trump dizia mas isso não era importante. “Julgo que a Constituição e as tradições neste país são uma limitação para todos nós — aqueles que estão no Congresso e aqueles que estão na Casa Branca — protegendo-nos de alguns dos nossos, digamos, impulsos a que gostaríamos de dar sequência”.
Caso Trump vencesse, dizia McConnell, não haveria razões para temer. “Ele não vai mudar a plataforma do Partido Republicano nem as posições do Partido Republicano. Julgo que mais cedo nós os mudamos a ele do que ele nos muda a nós. Se ele for votado presidente, terá de lidar com um mundo de centro-direita, que é onde a maioria de nós vive”. Mesmo sendo o candidato apoiado pelo Partido Republicano, Trump não goza de muitos apoios na máquina burocrática que detém, realmente, o poder nos EUA.
John McCain, senador republicano e antigo candidato à presidência, afinou pelo mesmo diapasão, em conversa com o The New York Times. “Continuo a acreditar que temos instituições de governo capazes de travar alguém que procure ir além das suas obrigações constitucionais. Temos um Congresso. Temos um Supremo Tribunal. Não somos a Roménia”.
Há quem não esteja tão tranquilo, contudo. A política é mais do que pacotes de leis — uma coisa é a legislação, outra coisa (potencialmente tão ou mais importante) é o dia-a-dia, a diplomacia, as intervenções públicas, etc. “Quem é capaz de prever o que é que Donald Trump seria capaz de fazer com uma esferográfica e com um telefone?“, perguntou Ilya Shapiro, jurista do Cato Institute, citado pelo The New York Times.
Muçulmanos, mexicanos e chineses
A proibição de entrada de muçulmanos no país, várias vezes defendida por Donald Trump, é um exemplo de uma iniciativa que o Supremo Tribunal poderia barrar — isto porque a Constituição prevê liberdade religiosa. Contudo, há uma ressalva prevista na lei atual: é possível que Trump consiga algo parecido com um muslim ban se decidir classificar essas pessoas como um grupo cuja entrada “seria prejudicial para os interesses dos Estados Unidos da América”. O mesmo expediente legal foi usado por Ronald Reagan para conter um fluxo muito grande de cidadãos do Haiti que tentavam emigrar para os EUA, no início da década de 80.
A principal bandeira de campanha de Trump é, talvez, a construção de um muro na fronteira com o México. Aí, os enormes custos levariam, muito provavelmente, a que o Congresso tivesse de aprovar a iniciativa. Trump tem dito, contudo, que vai encontrar uma forma de fazer com que fosse o México a pagar, ameaçando o país com tarifas e com a limitação do envio de remessas por parte de mexicanos nos EUA. A resposta do Presidente Enrique Nieto foi, sempre, a recusar a ideia. Um ex-presidente mexicano, Vicente Fox, foi mais longe e garantiu que “o México não vai pagar essa m….. desse muro”.
E há, também, a China, outro alvo preferencial das críticas de Trump ao longo desta campanha. É provável que, para Trump, na first order of business esteja a aplicação de taxas alfandegárias para desincentivar as importações chinesas. E poderia consegui-lo: o Congresso delegou no Presidente o poder de retaliar contra outros países que recorram a práticas comerciais desleais, como o dumping, por exemplo. Caberia ao Presidente determinar se isso estaria ou não a acontecer, já que a definição e a forma de demonstração é tudo menos simples.
George W. Bush aplicou taxas alfandegárias ao aço chinês em 2002, algo que foi considerado ilegal pela Organização Mundial do Comércio (OMC). É difícil imaginar que Trump faça outra coisa que não desprezar juízos como esses, vindos de uma organização como a OMC. Recorde-se que até a NATO é, para Trump, uma organização “obsoleta”.
E se Trump se revelar mais moderado do que se receia?
António Costa Pinto, politólogo e Professor da Universidade de Lisboa, diz ao Observador que uma presidência Trump traria sempre “uma grande incerteza” — e muito dependeria da forma como os Democratas reagissem à perda de poder, se ficariam irados ou manifestassem interesse em fazer pontes. De qualquer forma, António Costa Pinto sublinha que Trump, nas circunstâncias certas, pode acabar por ser mais moderado do que se acredita. “Os outsiders que chegam em conjunturas de crise ao poder ensaiam um tipo de discurso político diferente ao mesmo tempo que se vão conformando com as instituições existentes”, lembra o politólogo.
O Observador falou, também, com Kathryn Rooney Vera, economista da corretora Bulltick Capital Markets, em Miami, que continua confiante numa vitória de Hillary Clinton. Ainda assim, mesmo que Trump seja eleito, acredita que mesmo os republicanos do Congresso colocariam um travão a Trump e a eventuais “alterações mais agressivas. A imposição de taxas alfandegárias receberia a oposição de republicanos e de outros, que poderiam considerar essas medidas desnecessariamente hostis e contraproducentes para os interesses dos próprios EUA”.
Além disso, mesmo na imigração Trump não iria tão longe quando pode querer fazer parecer. “É provável que vejamos um aumento do número de deportações, em especial entre aqueles com algum tipo de cadastro criminal, mas não acredito numa mega-operação de deportações de todos aqueles que estão ilegalmente no país”, antecipa Kathryn Rooney Vera, em declarações enviadas por e-mail.
Mas não faltam vozes, nos EUA, que alertam que o risco de erros políticos, por parte de Trump, é muito elevado. “E nem todos os erros são reversíveis”, avisa Mark Kleiman, um Professor de Políticas Públicas na New York University (NYU) que sumarizou em 27 pontos aquilo que Trump conseguiria, realmente, fazer, seja com “uma assinatura de um papel” seja via aprovação em conjunto com organismos como o Congresso, o Senado ou os poderes estaduais.
Entre as decisões e iniciativas que Trump poderia tomar estão, por exemplo, o abandono por parte dos EUA do Acordo de Paris para o meio-ambiente e aquecimento global, que acaba de entrar em vigor, e o rasgar do acordo nuclear com o Irão, assinado por Obama, o que poderia levar a uma guerra com o Irão e a criação de uma bomba nuclear por parte desse país.
Trump teria capacidade, também, segundo a lista de Mark Kleiman, para fazer a vida difícil a jornalistas, adversários políticos (através da Justiça) e, até, rivais empresariais (através da concessão discricionária de benefícios e penalizações fiscais). Muitas das reformas na regulação do sistema financeiro pós-crise de 2008, como o Dodd-Frank, poderiam, também, ter os dias contados. Tal como teriam, também, os programas de cuidados de saúde universais, como o MedicAid, por exemplo, e os programas de Planeamento Familiar. Pode consultar o resto da longa lista aqui (texto em inglês).
O The Washington Post, que já recomendou o voto em Hillary Clinton, escreveu em editorial há algumas semanas um alerta para quem possa achar que uma presidência Trump não iria alterar assim tanta coisa no país. “Um Presidente Trump iria conseguir, unilateralmente, mudar este país até ao seu núcleo. Ao reconfigurar as relações dos EUA com os outros países, poderia, também, mudar o mundo”.
Donald Trump não foge a acusações de que atribuiria muito pouco valor à ideia da separação de poderes. Não teve pejo em dizer, em pleno debate com Hillary Clinton, que iria nomear um investigador especial para analisar a conduta de Hillary Clinton enquanto era secretária de Estado, designadamente na questão dos e-mails enviados com a conta pessoal. Para o The Washington Post, isto é um sinal que deve ser levado a sério.
“Conseguiria Trump rasgar acordos internacionais antigos? Conseguiria ele reunir e expulsar milhões de pessoas que há muito vivem nos EUA? Conseguiria Trump usar o waterboarding [simulação de afogamento] para torturar suspeitos de terrorismo? Sim, sim e sim“, escreve o The Washington Post.
Um risco enorme. Trump não gosta da toda-poderosa Yellen
Carlos Jalali, politólogo ligado à Universidade de Aveiro, acredita que uma presidência Trump seria, também, fruto das circunstâncias que se formarem e do grau de instabilidade que o mundo viver. “Instabilidade alimenta, muitas vezes, mais instabilidade”, aponta o diretor do Mestrado em Ciência Política da Universidade de Aveiro. E a julgar pela reação dos mercados na semana passada, uma presidência Trump traria, certamente, muita instabilidade nos mercados e na economia — por todas as razões referidas acima e mais algumas. Uma, em particular, chamada Janet Yellen.
Yellen é a presidente do banco central norte-americano, a Reserva Federal, e já confirmou todos os pergaminhos que trazia quando substituiu Ben Bernanke no cargo: trata-se de uma banqueira central que prefere pecar por excesso do que por carência, no que a estímulos monetários diz respeito. Isso é um fator crucial (ainda) para os mercados financeiros, já que uma retirada dos estímulos (e subida das taxas de juro) mais brusca do que o previsto causaria grandes desequilíbrios na economia mundial. O dólar pode subir, as bolsas caírem e os juros da dívida subirem.
O problema é que Donald Trump já disse várias vezes que não concorda com a política seguida por Janet Yellen – “ela devia ter vergonha do que está a fazer”, afirmou Trump – e deixou claro que, caso seja eleito Presidente, Yellen tem os dias contados à frente da Reserva Federal, num cargo que é de nomeação direta por parte do Presidente. Para os investidores, isto é um enorme fator de incerteza, já que outra pessoa que não Yellen à frente da Fed poderia ser menos permissiva na concessão de liquidez financeira aos mercados financeiros, a juros baixos.
Kathryn Rooney Vera salienta, contudo, que “Trump não pode demitir Yellen, terá de esperar que ela acabe o seu mandato”. Ou, então, “que ela própria se demita”, acrescenta a economista-chefe da Bulltick Capital Markets.
Seja como for, para já, por via das dúvidas, os analistas do banco holandês Rabobank dizem que “os investidores estão a lembrar-se das duas lições aprendidas com o referendo britânico”. Por um lado, ficou claro que “as sondagens de opinião são um fraco indicador sobre os resultados reais das votações”. Recorde-se que na própria tarde em que os britânicos estavam a votar no referendo, o Evening Standard apontava para uma vitória clara do Ficar, isto para não falar das primeiras sondagens que saíram após o fecho das urnas, que apontavam no mesmo sentido.
Por outro lado, o Rabobank lembra que, no referendo do Brexit, a comunidade financeira aprendeu, também, a lição de que “não se deve subestimar a força do sentimento populista nas sociedades”.